segunda-feira, agosto 15, 2016

O peso da decadência moderna no filme "High-Rise"


Um misterioso arquiteto planeja um arranha-céu que deveria ser uma incubadora de mudanças na sociedade. Um edifício idílico com todas as comodidades modernas destinado a ser uma “máquina de morar” autogerida. Mas algo deu errado, transformando o projeto em um pesadelo apocalíptico que mistura horror, sexo, drogas e a principal ironia: a Razão e a Racionalidade de um projeto futurista se converte em niilismo, hedonismo e violência. É o filme “High-Rise” (2015), adaptação de obra do escritor J.G. Ballard de 1975 cujas visões sobre o futuro são considerados por muitos como proféticas – a sociedade corroída pelos seus principais males: a luta do homem contra si mesmo e de todos contra todos.


A sociedade parece funcionar basicamente sob duas categorias de conflito: do homem consigo mesmo (o inconsciente, pulsões, desejos, instintos etc.) e dos homens entre si (lutas entre classes, grupos, estamentos etc.). Os pessimismo freudiano sobre o mal estar da civilização e as visões marxistas da violência como “parteira da História”, deram o tom para as ciências sociais do século XX.

E no cinema a ficção científica, principalmente a distópica, o desenvolvimento desses dois tipos diferentes de conflitos foram bem marcantes: a luta do homem contra si mesmo (em filmes como Blade Runner ou Planeta dos Macacos nos quais o maior inimigo do homem é ele próprio); ou a luta de classes e a exploração em filmes Expresso do Amanhã (a dialética do senhor e do escravo) ou até mesmo Jogos Vorazes – uma elite ociosa explorando mão de obra farta e barata.

No filme High Rise (adaptação do livro homônimo do escritor J.G. Ballard) assistimos a uma satírica fusão desses dois conflitos sociais em um arranha-céu que se transforma em um microcosmo dos pesadelos humanos resultantes de três traços contemporâneos: a violência, o niilismo e o hedonismo.

Falecido em 2009, Ballard foi um brilhante escritor, mas principalmente um crítico social e, para alguns, um profeta. O Cinegnose já faz uma análise de outra adaptação de uma obra de Ballard, o filme Crash – Estranhos Prazeres (1996) – clique aqui.

O livro High-Rise de 1975 é um exemplo da sua visão de decadência apocalíptica, numa mistura de horror e excitação, sexo e drogas, ironia e sátira.

À esquerda, pintura de Eric Fischl. Ao lado, cena do filme

Ao assistirmos ao filme, não é possível deixar de lembrar da estranha pintura do artista norte-americano Eric Fischl de 1982 chamado The Old Man’s Boat and The Old Man’s Dog. Para muitos, uma pintura também profética sobre os tempos que viriam: jovens no convés de um barco em uma atmosfera de orgia e beberagem. Parecem se preocupar apenas com o prazer momentâneo, alheios ao futuro ameaçador: uma tormenta se aproxima no oceano. O velho homem, suposto comandante, não mais existe. O barco está à deriva decorrente do niilismo e hedonismo dos seus passageiros.

Se substituirmos o barco de Fischl pelo arranha-céu de High-Rise, teremos uma situação idêntica, agravada pela luta de classes e pela presença do arquiteto que planejou tudo, mas perdeu o controle da sua criação.

O Filme


O filme se passa em 1975, mesmo ano da publicação do livro de Ballard, com uma produção em detalhado design retro-futurista que mistura suavidade com agressividade. Uma mistura adequada que capta a atmosfera do livro original.

A narrativa acompanha Robert Laing (Tom Hiddleston), um médico fisiologista assombrado pela memória de sua irmã morta. Ele se muda para um arranha-céu futurista projetado por um arquiteto misterioso e idealista chamado Royal – Jeremy Irons.

O edifício faz parte de um complexo ainda não inteiramente concluído que Royal concebia como um experimento social: transformar em uma incubadora para mudanças sócio-culturais. Mas o edifício acaba se transformando em um microcosmo paranoico, no qual são potencializadas as diferenças de classes e as disfunções sociais.


O arranha-céu é cercado por um amplo estacionamento para os moradores que apenas saem para o trabalho – além dos apartamentos, há andares com supermercado, piscinas coletivas e toda uma infraestrutura como fosse um condomínio fechado.

Como todos os projetos modernistas em arquitetura e urbanismo, de Le Corbusier a Oscar Niemayer, que vislumbravam uma sociedade mais igualitária com áreas de convívio público, tudo resultou no inverso: acabaram contaminados pelas próprias mazelas da sociedade que pretendiam sanar.

No filme vemos a cobertura habitada pelo arquiteto em um jardim suspenso idílico onde sua esposa cavalga por um lindo gramado como uma versão futurista da Lady Godiva. Royal continua projetando o restante do complexo, mas parece ter perdido o fio da meada.

Nos andares superiores está uma elite de esnobes brutos e inclinados a devassidão e embriaguez em constantes festas da qual ocasionalmente o arquiteto participa. Nos andares abaixo estão a classe média e o populacho. Tentam imitar a elite com suas festas  e orgias, porém com bebidas e drogas baratas e em apartamentos bem mais lotados.

O pesadelo hobbesiano


Através dos olhos de Laing vamos acompanhando o arranha-céu se transformando em um pesadelo hobbesiano de anarquia quando os moradores dos andares inferiores começam a escalar para os superiores, comprometendo a hierarquia social.


Tudo começa quando Richard Wilder (Luke Evans), um residente dos andares inferiores, pretende fazer um documentário sobre o arquiteto e inicia uma ascensão simbólica pelos andares em busca de Royal: quem é ele? O que pretende? Qual o sentido daquele edifício? Wilder é agressivo e repulsivo, mas também um aspiracional – acredita que pode subir na vida com seu documentário apresentado pela TV.

Como médico fisiologista, Laing é frio e calculista: com a mesma frieza que disseca um crânio diante de assistentes no hospital onde trabalha, ele apenas vê o mundo caindo aos pedaços sem fazer nada – apenas aprende a se adaptar.

No filme a figura do arquiteto tem um simbolismo ambíguo: é tanto o fracasso da Razão e da racionalidade de um prédio planejado com todos os confortos modernos; como também representa a própria divindade e o complexo planejado por ele como fosse o próprio cosmos.

Natureza humana e pessimismo


Como o leitor perceberá no filme, Ballard possui a mesmo pessimismo hobbesiano a cerca da natureza humana. O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) na sua obra O Leviatã acreditava que o homem necessitava do Estado e sociedade fortes para estabelecer um contrato social – entregue ao seu estado natural, o homem tenderia a uma constante guerra de todos contra todos.


A experiência social do arquiteto é transformar o edifício com seus moradores numa máquina autônoma, funcionando por si mesma sem a necessidade de um “síndico”. Tudo seria autogerido. O projeto de Royal lembra muito o arquiteto modernista Le Corbusier e suas “máquinas de morar” – concepção funcional da arquitetura que almejava uma sociedade utopicamente funcional, comunitária, criando um forte sentido de “coisa pública”. Assim como os grandes vãos livres dos seus projetos seriam áreas de convivência públicas onde as diferenças de classe se diluiriam.

O que deu errado?


Mas algo deu errado, tanto na Modernidade como no arranha-céu de High-Rise: a utopia comunitário-funcional converte-se em sociedade de consumo individualista e competitiva.

No filme, o andar do supermercado é o ponto de encontro e principal atividade para os moradores.  Independente da classe social, a vida de todos se limita a compras, decidir a cor da parede que pintará o apartamento e festas, muitas festas regadas a álcool e drogas.

Hedonismo e niilismo tomam conta da convivência entre os moradores, ao ponto de o documentarista Wilder, em busca do arquiteto, perguntar sobre a existência dele a um garoto cético que responde: “o arquiteto está no céu, mas o céu não existe!”.

Essa é a pessimista profecia de Ballard: o Deus/Arquiteto/Modernidade desapareceu, assim como o velho homem da pintura de Eric Fischl. Todos alheios e preocupados consigo mesmos enquanto a tormenta se aproxima no horizonte.


Ficha Técnica


Título: High-Rise
Diretor: Ben Wheatley
Roteiro:  Amy Jump baseado no livro de J.G. Ballard
Elenco:  Jeremy Irons, Tom Hiddleston, Sienna Miller, Luke Evans, Elisabeth Moss
Produção: Recorded Picture Company
Distribuição: Magnolia Pictures
Ano: 2015
País: Reino Unido, Bélgica

Postagens Relacionadas












Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review