“Mestre Eckhart [teólogo da filosofia medieval] também viu o inferno.
Sabe o que ele disse? Ele disse que a única coisa que queima no Inferno é a
parte de você que não te deixa ir adiante na sua vida, suas memórias, suas
amizades. Eles as queimam por completo. Mas eles não estão te punindo. Estão
libertando a sua alma. Se você está com medo de morrer e resiste você verá
demônios arrancando sua vida. Mas, se estiver em paz, então os demônios se
tornam anjos libertando-o da Terra” - Louis (Danny Ayello) no filme “Alucinações
do Passado”(Jacob's Ladder, 1990).
Mestre Eckhart
foi um polêmico teólogo da filosofia medieval expoente do misticismo cristão e
julgado pela Inquisição. Essa citação de um dos sermões do pensador em uma das
linha de diálogo do clássico cult Alucinações do Passado (Jacob’s
Ladder, 1990) é a chave de compreensão de um filme com um poderoso visual
evocativo e enigmático.
O filme foi
escrito pelo roteirista Bruce Joel Rubin cujo auge da carreira foi o
blockbuster Ghost. Rubin começou a escrever o roteiro de Alucinações do
Passado em 1980 e quase foi dirigido por Ridley Scott. Mas o script
permaneceu no limbo até atrair o interesse de Adrian Lyne, diretor de sucessos
bem comerciais como Flashdance, 9 ½ Semanas de Amor e Atração Fatal.
Quando estreou
em 1990 atraiu pouca atenção do público e dividiu a crítica entre
“poderosamente escrito, dirigido e atuado” e “um deturpado conjunto de clichês.
Mas o fato é que
o roteiro de Rubin reflete muito as suas crenças budistas e as experiências
místico-alucinógenas com LSD no anos 1960 com futuros VIPs do cinema como
Martin Scorsese e Brian De Palma. Milhares de microgramas do ácido levaram
Rubin a um caminho de descoberta pessoal e transformação espiritual.
Rubin juntou a
sua formação na escola de cinema Universidade de Nova York e a nova consciência
espiritual para escrever Alucinações do Passado.
O filme desce
fundo na vida interior do protagonista Jacob (daí o título original “Escada de
Jacob”) mostrando a ambiguidade e os perigos de uma jornada de
autoconhecimento: dentro de cada um de nós podemos encontrar o Inferno com
todos os demônios que lá vivem, absorvendo as energias etéricas provenientes de
tudo aquilo que nos faz se apegar firmemente a nossa vida terrena: amores,
família, amigos, desejos etc.
Se são as energias
dessas memórias e desejos que nos fazem seguir em frente e dão sentido aos
afazeres e projetos da nossa caminhada por esse planeta, o momento da morte
pode transformar tudo isso em um inferno pessoal povoado de culpa,
ressentimentos, medo e paranoia. E nos fazer se apegar ainda mais fortemente as
lembranças do mundo físico, impedindo a libertação espiritual.
Porém, esse
inferno pessoal pode ser útil para forças organizadas (Governos, Exércitos
sejam físicos ou espirituais) para nos manter ainda mais fortemente
prisioneiros de propósitos sinistros alheios à nossa vontade.
Ao unir um
roteirista com forte background místico e esotérico com um diretor de
blockbusters hollywoodianos como Adrian Lyne, Alucinações do Passado foi
certamente o filme que vislumbrou a possibilidade da exploração pop dos temas
do Gnosticismo, que se iniciaria mais tarde com Dead Man (1995) de Jim
Jarmuch, cujo auge no final daquela década seria Matrix dos irmão
Wachowski.
O Filme
A princípio, o
plot do filme é simples: Jacob (Tim Robbins) é um veterano da Guerra do Vietnã,
cujo conflito deixou profundas marcas. Diariamente Jacob vê seres estranhos que
os ameaçam de morte. Jacob só pode contar com o apoio de sua namorada Jezebel
(Elizabeth Peña) e dou seu melhor amigo, o quiropraxista Louis (Danny Aiello).
Jacob procura desesperadamente encontrar o porquê dessas visões que o
perseguem.
Alucinações do
passado começa em plena ação de um grupo militar de Jacob Singer nas selvas do
Vietnã. Eles são atacados e Jacob é mortalmente ferido. Corta a sequência para
vermos Jacob em um vagão de metrô, despertando de um cochilo. Tudo
aparentemente foi um pesadelo. Mas a partir daí começa a descida pela escada
interior de Jacob.
O roteiro começa
a ficar propositalmente confuso, misturando passado, presente e futuro, criando
três realidades que o espectador mais atento ao conceitos esotéricos perceberá
uma analogia com os nossos diferentes planos de consciência ou corpos
energéticos.
No primeiro
plano, o Corpo Físico, Jacob ainda está no Vietnã sendo socorrido por
uma equipe de resgate médico.
No segundo plano,
Jacob está vivendo com Jezebel, depois de perder o filho e se separar da sua
esposa Sarah (Patrícia Kalember), corroído pelo sentimento de culpa por ter
presenciado o acidente de seu filho Gabe (Macaulay Culkin) sem nada poder fazer.
Esse nível da descida da escadaria interior é o do Corpo Emocional – no
qual se refletem as emoções e os desejos. O corpo que penetramos corpos mais
densos: etéricos e físicos. E nesse plano que Jacob viverá mais intensamente a
paranoia e a perseguição de estranhos agentes que exigem que ele pare com as
investigações sobre o porquê das estranhas visões.
Jacob tenta
reunir outros sobreviventes do seu pelotão para tentar processar o Governo
pelos prejuízos psíquicos, além da suspeita deles terem sido vítimas de alguma
operação psicológica envolvendo drogas.
Mas é no
terceiro plano que Jacob avança em uma narrativa mais complexa – ele se
encontra casado com Sarah e começa a ter sonhos e pesadelos com outros níveis.
Na medida em que o filme avança, o roteiro começa a embaralhar as cartas e
passamos a ficar em dúvida se Jacob já está morto, se todos os pesadelos são
sintomas de um trauma de guerra ou se há alguma conspiração da Inteligência
militar para esconder algo de muito sinistro que teria ocorrido com aquele
pelotão.
Esse terceiro
plano é a descida mais profunda da escada: o Corpo Mental que contém as
nossas ideias, pensamentos e processos mentais. No filme será o plano de
transição entre os planos da matéria e do espírito para alcançar no final o
Plano Astral, a porta para os planos celestes.
Se o roteirista
Bruce Rubin esboçou de forma superficial essas transições no filme Ghost,
em Alucinações do Passado essa evolução através dos corpos vibratórios
até chegar à gnose (iluminação) é representada de forma muito mais detalhada.
O “Projeto Escada” – aviso de spoilers à frente
Não é mais
segredo que por décadas o exército norte-americano empreendeu experimentos
clínicos secretos com drogas como versões sintéticas e potentes de marijuana e,
principalmente, o LSD. O que começou como “guerra psicoquímica” nos anos 1940
(substituir as armas e granadas por produtos que incapacitassem mentalmente o
inimigo) e depois instrumentos de inteligência (usar drogas em
interrogatórios), mais tarde transformou-se em pesquisas mais sinistras:
aplicar drogas nos próprios soldados para perderem a vontade e tornarem-se mais
manipuláveis e predispostos à carnificina – tornarem-se mais agressivos, corpo
e mente mais aguçados e, principalmente, não temer a morte.
Projetos durante
a Guerra Fria como o Edgewood Arsenal nos anos 1950 e o Projeto Montauk nos
anos 70 e 80 foram exemplos das intensas pesquisas cujos resultados em seres
humanos o filme Alucinações do Passado explora.
No filme,
fala-se do projeto psy op denominado “Escada” que teria sido aplicado no
pelotão de Jacob durante a Guerra do Vietnã. O objetivo: tornar os soldados
ainda mais violentos e com um potente desejo de matar. Paradoxalmente, o
mecanismo da droga era tornar o soldado mais violento e sem medo da morte na
medida em que ele mais ele se apegasse às suas memórias de tudo aquilo que o
faz desejar viver.
O que produziria
um estado paranoico, já que essas memórias (acompanhando o raciocínio do Mestre
Eckhart) tornar-se-iam demônios queimando no Inferno pessoal. Maquiavelicamente, a droga mobilizaria todas as energias mais negativas desse
inferno (dor, culpa, ressentimento, vingança, frustração etc.) para serem
direcionados contra o inimigo. Mas como o leitor acompanhará no filme, algo deu
muito errado e Jacob sofre as consequências disso.
Presos a esse
inferno pessoal a que chegaram após descerem a “escadaria”, nem mesmo mortos
seriam capazes de escapar do controle da experiência.
Alucinações do
Passado vai fundo nesse universo sinistro. Mais tarde filmes como Beyond the
Black Rainbow (2010 – clique aqui) ou Ink (2009 – clique aqui) vão explorar facetas
diferentes desse tema: como uma jornada espiritual pode se transformar em um
pesadelo autoritário ou como memórias traumáticas de humilhações e
ressentimentos podem se transformar em combustível para organizações
totalitárias.
Ficha Técnica |
Título: Alucinações
do Passado (Jacob’s Ladder)
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Diretor:
Adrian Lyne
|
Roteiro: Bruce Joel Rubin
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Elenco: Tim Robbins, Elizabeth Peña,
Dany Aiello
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Produção: Carolco Pictures
|
Distribuição:
International Video Entertainment
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Ano:
1990
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País: EUA
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