segunda-feira, agosto 29, 2016

Anjos, demônios e LSD no filme "Alucinações do Passado"


“Mestre Eckhart [teólogo da filosofia medieval] também viu o inferno. Sabe o que ele disse? Ele disse que a única coisa que queima no Inferno é a parte de você que não te deixa ir adiante na sua vida, suas memórias, suas amizades. Eles as queimam por completo. Mas eles não estão te punindo. Estão libertando a sua alma. Se você está com medo de morrer e resiste você verá demônios arrancando sua vida. Mas, se estiver em paz, então os demônios se tornam anjos libertando-o da Terra” - Louis (Danny Ayello) no filme “Alucinações do Passado”(Jacob's Ladder, 1990). 

Mestre Eckhart foi um polêmico teólogo da filosofia medieval expoente do misticismo cristão e julgado pela Inquisição. Essa citação de um dos sermões do pensador em uma das linha de diálogo do clássico cult Alucinações do Passado (Jacob’s Ladder, 1990) é a chave de compreensão de um filme com um poderoso visual evocativo e enigmático.

O filme foi escrito pelo roteirista Bruce Joel Rubin cujo auge da carreira foi o blockbuster Ghost. Rubin começou a escrever o roteiro de Alucinações do Passado em 1980 e quase foi dirigido por Ridley Scott. Mas o script permaneceu no limbo até atrair o interesse de Adrian Lyne, diretor de sucessos bem comerciais como Flashdance, 9 ½ Semanas de Amor e Atração Fatal.

Quando estreou em 1990 atraiu pouca atenção do público e dividiu a crítica entre “poderosamente escrito, dirigido e atuado” e “um deturpado conjunto de clichês.

Mas o fato é que o roteiro de Rubin reflete muito as suas crenças budistas e as experiências místico-alucinógenas com LSD no anos 1960 com futuros VIPs do cinema como Martin Scorsese e Brian De Palma. Milhares de microgramas do ácido levaram Rubin a um caminho de descoberta pessoal e transformação espiritual.

Rubin juntou a sua formação na escola de cinema Universidade de Nova York e a nova consciência espiritual para escrever Alucinações do Passado.

O filme desce fundo na vida interior do protagonista Jacob (daí o título original “Escada de Jacob”) mostrando a ambiguidade e os perigos de uma jornada de autoconhecimento: dentro de cada um de nós podemos encontrar o Inferno com todos os demônios que lá vivem, absorvendo as energias etéricas provenientes de tudo aquilo que nos faz se apegar firmemente a nossa vida terrena: amores, família, amigos, desejos etc.


Se são as energias dessas memórias e desejos que nos fazem seguir em frente e dão sentido aos afazeres e projetos da nossa caminhada por esse planeta, o momento da morte pode transformar tudo isso em um inferno pessoal povoado de culpa, ressentimentos, medo e paranoia. E nos fazer se apegar ainda mais fortemente as lembranças do mundo físico, impedindo a libertação espiritual.

Porém, esse inferno pessoal pode ser útil para forças organizadas (Governos, Exércitos sejam físicos ou espirituais) para nos manter ainda mais fortemente prisioneiros de propósitos sinistros alheios à nossa vontade.

Ao unir um roteirista com forte background místico e esotérico com um diretor de blockbusters hollywoodianos como Adrian Lyne, Alucinações do Passado foi certamente o filme que vislumbrou a possibilidade da exploração pop dos temas do Gnosticismo, que se iniciaria mais tarde com Dead Man (1995) de Jim Jarmuch, cujo auge no final daquela década seria Matrix dos irmão Wachowski.

O Filme


A princípio, o plot do filme é simples: Jacob (Tim Robbins) é um veterano da Guerra do Vietnã, cujo conflito deixou profundas marcas. Diariamente Jacob vê seres estranhos que os ameaçam de morte. Jacob só pode contar com o apoio de sua namorada Jezebel (Elizabeth Peña) e dou seu melhor amigo, o quiropraxista Louis (Danny Aiello). Jacob procura desesperadamente encontrar o porquê dessas visões que o perseguem.

Alucinações do passado começa em plena ação de um grupo militar de Jacob Singer nas selvas do Vietnã. Eles são atacados e Jacob é mortalmente ferido. Corta a sequência para vermos Jacob em um vagão de metrô, despertando de um cochilo. Tudo aparentemente foi um pesadelo. Mas a partir daí começa a descida pela escada interior de Jacob.

O roteiro começa a ficar propositalmente confuso, misturando passado, presente e futuro, criando três realidades que o espectador mais atento ao conceitos esotéricos perceberá uma analogia com os nossos diferentes planos de consciência ou corpos energéticos.

No primeiro plano, o Corpo Físico, Jacob ainda está no Vietnã sendo socorrido por uma equipe de resgate médico.

No segundo plano, Jacob está vivendo com Jezebel, depois de perder o filho e se separar da sua esposa Sarah (Patrícia Kalember), corroído pelo sentimento de culpa por ter presenciado o acidente de seu filho Gabe (Macaulay Culkin) sem nada poder fazer. Esse nível da descida da escadaria interior é o do Corpo Emocional – no qual se refletem as emoções e os desejos. O corpo que penetramos corpos mais densos: etéricos e físicos. E nesse plano que Jacob viverá mais intensamente a paranoia e a perseguição de estranhos agentes que exigem que ele pare com as investigações sobre o porquê das estranhas visões.


Jacob tenta reunir outros sobreviventes do seu pelotão para tentar processar o Governo pelos prejuízos psíquicos, além da suspeita deles terem sido vítimas de alguma operação psicológica envolvendo drogas.

Mas é no terceiro plano que Jacob avança em uma narrativa mais complexa – ele se encontra casado com Sarah e começa a ter sonhos e pesadelos com outros níveis. Na medida em que o filme avança, o roteiro começa a embaralhar as cartas e passamos a ficar em dúvida se Jacob já está morto, se todos os pesadelos são sintomas de um trauma de guerra ou se há alguma conspiração da Inteligência militar para esconder algo de muito sinistro que teria ocorrido com aquele pelotão.

Esse terceiro plano é a descida mais profunda da escada: o Corpo Mental que contém as nossas ideias, pensamentos e processos mentais. No filme será o plano de transição entre os planos da matéria e do espírito para alcançar no final o Plano Astral, a porta para os planos celestes.

Se o roteirista Bruce Rubin esboçou de forma superficial essas transições no filme Ghost, em Alucinações do Passado essa evolução através dos corpos vibratórios até chegar à gnose (iluminação) é representada de forma muito mais detalhada. 


O “Projeto Escada” – aviso de spoilers à frente


Não é mais segredo que por décadas o exército norte-americano empreendeu experimentos clínicos secretos com drogas como versões sintéticas e potentes de marijuana e, principalmente, o LSD. O que começou como “guerra psicoquímica” nos anos 1940 (substituir as armas e granadas por produtos que incapacitassem mentalmente o inimigo) e depois instrumentos de inteligência (usar drogas em interrogatórios), mais tarde transformou-se em pesquisas mais sinistras: aplicar drogas nos próprios soldados para perderem a vontade e tornarem-se mais manipuláveis e predispostos à carnificina – tornarem-se mais agressivos, corpo e mente mais aguçados e, principalmente, não temer a morte.

Projetos durante a Guerra Fria como o Edgewood Arsenal nos anos 1950 e o Projeto Montauk nos anos 70 e 80 foram exemplos das intensas pesquisas cujos resultados em seres humanos o filme Alucinações do Passado explora.


No filme, fala-se do projeto psy op denominado “Escada” que teria sido aplicado no pelotão de Jacob durante a Guerra do Vietnã. O objetivo: tornar os soldados ainda mais violentos e com um potente desejo de matar. Paradoxalmente, o mecanismo da droga era tornar o soldado mais violento e sem medo da morte na medida em que ele mais ele se apegasse às suas memórias de tudo aquilo que o faz desejar viver.

O que produziria um estado paranoico, já que essas memórias (acompanhando o raciocínio do Mestre Eckhart) tornar-se-iam demônios queimando no Inferno pessoal. Maquiavelicamente, a droga mobilizaria todas as energias mais negativas desse inferno (dor, culpa, ressentimento, vingança, frustração etc.) para serem direcionados contra o inimigo. Mas como o leitor acompanhará no filme, algo deu muito errado e Jacob sofre as consequências disso.

Presos a esse inferno pessoal a que chegaram após descerem a “escadaria”, nem mesmo mortos seriam capazes de escapar do controle da experiência.

Alucinações do Passado vai fundo nesse universo sinistro. Mais tarde filmes como Beyond the Black Rainbow (2010 – clique aqui) ou Ink (2009 – clique aqui) vão explorar facetas diferentes desse tema: como uma jornada espiritual pode se transformar em um pesadelo autoritário ou como memórias traumáticas de humilhações e ressentimentos podem se transformar em combustível para organizações totalitárias.


Ficha Técnica


Título: Alucinações do Passado (Jacob’s Ladder)
Diretor: Adrian Lyne
Roteiro:  Bruce Joel Rubin
Elenco:  Tim Robbins, Elizabeth Peña, Dany Aiello
Produção: Carolco Pictures
Distribuição: International Video Entertainment
Ano: 1990
País: EUA

Postagens Relacionadas




Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review