Mais um daqueles filmes estranhamente proféticos. “Eles Vivem” (“They
Live”, 1988) do mestre do terror John Carpenter parece antever de gadgets
tecnológicos de vigilância como os drones até a atual agenda política global
onde a Publicidade e as marcas transnacionais substituem as nações. Um sem-teto
desempregado encontra uma caixa de óculos de sol que revela um estranho mundo
submetido a uma espécie de hipnose coletiva que impede que enxerguemos os
comandos subliminares na Publicidade e a ação de seres alienígenas infiltrados
nas ruas e na TV. Uma ataque explícito à sociedade de consumo que vai muito
além dos clichês da crítica ao consumismo: “Eles Vivem” revela o secreto
mecanismo psíquico esquizofrênico que nos mantém prisioneiros do circuito
fechado individualismo-consumo.
Assistir ao filme Eles Vivem (They Live, 1988) é uma experiência conflitante. O filme do mestre
do terror John Carpenter (A Coisa,
Halloween, Christine) ora parece uma sátira com atores protagonistas
propositalmente canastrões e efeitos especiais que lembram os sci-fi B dos anos
1950, ora uma séria crítica social e política. Muitas vezes parece que
Carpenter não que que levemos o filme a sério. Por outro lado, Eles Vivem
torna-se um daqueles filmes subversivos que, depois do final, nos faz olhar
para o redor para então passarmos a questionar tudo até o limite da paranoia.
O filme foi
baseado no conto Eight O’Clock in the
Morning de Ray Nelson sobre um homem que desperta de uma espécie de hipnose
em massa para descobrir que a Terra é controlada por uma elite de empresários
alienígenas com a ajuda da elite política humana.
As críticas do
cinema politicamente engajado contra o consumismo que denunciam o poder
propagandístico da Publicidade ou a mercantilização da vida humana tornaram-se
tão clichês que parecem regurgitações de platitudes. Carpenter sabia disso. Por
isso, para tornar mais poderoso o comentário social de Eles Vivem, embalou a crítica subversiva do conto original numa
embalagem pop palatável.
O truque de
Carpenter foi expor sua mensagem de uma forma que a princípio parecesse
satírica e canastrona, para começar com o protagonista que à época era um
conhecido personagem do mundo da luta livre televisiva (Roddy Piper) – uma
evidente paródia dos heróis dos anos 1980 ao estilo Rambo e Braddock.
Piper é George
Nada, um sem teto que abandonou sua cidade natal no Colorado em busca de
trabalho braçal em Los Angeles. Até um dia que descobre um par de óculos que
lhe permite ver as mensagens subliminares escondidas em anúncios de outdoors,
revistas e TVs, assim como a verdadeira face terrível dos alienígenas
mascarados de seres humanos que andam entre nós nas ruas, com a intenção de
dominar e explorar o planeta em segredo.
Além disso, Eles Vivem parece ser outro daqueles
filmes estranhamente proféticos: está lá no filme a tecnologia dos drones como
instrumento de vigilância policial e a chamada agenda política global como
estratégia alienígena de, através da publicidade transnacional, eliminar as
nações para criar uma nova orgem globalizada – um ano depois cairia o Muro de
Berlim que foi o evento político que deflagraria a queda do bloco soviético e a
unificação midiático-financeira que sustentaria a Globalização da próxima
década.
O Filme
Desde o início
vemos George Nada caminhando ao redor de Los Angeles com sua mochila em busca
de trabalho e morada. Enquanto Nada nos parece um daqueles mochileiros felizes
em busca da fortuna, a cidade não parece feliz: há um clima de morte no ar. A
pobreza é galopante, helicópteros voam ao redor da cidade e pregadores nas ruas
falam em serem sem alma que supostamente regem esse mundo.
A câmera fixa nos
rostos de sem tetos que olham atentamente para as mensagens sobre consumismo e
a vida das celebridades na TV. Até que uma organização obscura de hackers
intercepta as transmissões para transmitir mensagens subversivas sobre
governantes ocultos alienígenas que dominam secretamente o planeta com a ajuda
de uma elite humana corrompida.
“Nossos impulsos
são direcionados. Vivemos em um estado de consciência que artificialmente se
assemelha ao sono. Eles criaram uma sociedade repressive, e nós seus cúmplicas
involuntários. Sua intenção de governar coincide com a aniquilação da
consciência. Fazem nos tornar indiferentes uns aos outros. Estamos focados
apenas em nossos próprios interesses. Por favor entendam. Eles são pacíficos,
desde que eles não sejam descobertos. Esse é o seu principal método de
sobrevivência: Mantendo-nos dormindo, mantendo-nos egoístas, mantendo-nos
sedados." – essa é a denúncia que periodicamente intercepta as
transmissões de TV diante dos indiferentes espectadores.
Assim como o
protagonista George Nada, um assumido crente do chamado Sonho Americano
meritocrático de que a vida resume-se em trabalhar para subir na vida – e
eventualmente tornar-se uma celebridade televisiva. Até que um dia descobre uma
estranha caixa com pares de óculos de Sol em uma Igreja onde lê uma estranha
pichação na parede: “Eles Vivem, nós dormimos”.
Chocado, através
dos óculos descobre a verdade nua e crua: por trás de cada anúncio publicitário
há um tipo de comando subliminar – por exemplo, em um anúncio de turismo lê-se
“case e se reproduza”. Em outros vê-se: “Obedeça”, “Consuma”, “Não há livre
pensar”, “Não Questione a Autoridade” etc.
Mensagens subliminares contraditórias
O grande insight de Eles Vivem é mostrar que essas mensagens subliminares (reforçada
por um sinal transmitido do alto de uma torre de TV que mantém todos em um
estado de transe que impede a todos de verem os seres alienígenas infiltrados
nas ruas e nos programas de TVs) são estranhamente contraditórias: de um lado,
exigem obediência e destruição da individualidade e livre-arbítrio. Mas por
outro, reforçam a ambição, a ganância e o sucesso financeiro individual – nas
notas de dólar está “Esse é seu Deus”; há ainda mensagens incentivando o
consumo e o sucesso individual.
Percebe-se no
filme que as pessoas mais bem sucedidas com estilos de vida consumistas são os
ETs mascarados de humanos em lojas e supermercados, como fossem modelos vivos
nos quais os humanos devam se espelhar para buscarem uma vida melhor.
Dessa maneira, Eles Vivem vai à fundo na crítica a
sociedade de consumo, muito além da crítica tradicional e clichê do “Pensar em
Ter no lugar do Ser” – o filme desvenda o mecanismo esquizofrênico do chamado
“duplo vinculo” que nos mantém de forma sadomasoquista presos ao estilo de vida
consumista.
Esquizofrenia e “Duplo Vínculo”
O conceito de
“Duplo Vínculo” foi criado pelo psiquiatra e antropólogo ingles Gregory Bateson
(1904-1980) durante pesquisas sobre quadros de esquizofrenia nas relações
familiares que se caracterizaram por situações de “duplo vinculo” - crianças
que são aprisionadas em uma cilada linguística e emocional ao ouvirem dos pais
mensagens variantes de um discurso com o seguinte teor: “gostamos muito de você, mas temos de castigá-lo porque se não o
fizermos você irá se comportar mal, e não queremos que isso aconteça porque
queremos continuar gostando de você”.
Diante de tal
paradoxo a criança ficaria presa num jogo de “se ficar o bicho pega, se corer o
bicho come”, resultando em imobilismo e impotência.
Muitos
pesquisadores em psicanálise da comunicação (no qual se inclui esse humilde
blogueiro) acreditam que esse jogo esquizofrênico e sadomasoquista do “não pode
ganhar” estaria no núcleo da submissão do indivíduo à sociedade de consumo.
Para criar-se a
armadilha do duplo vincula é necessário que haja um forte laço afetivo e
emocional entre os jogadores. Ao nos oferecer materializações dos nossos sonhos e
desejos a mídia e a publicidade realiza essa condição. Mas, paradoxalmente, o
preço a ser pago é a renúncia de qualquer livre-arbítrio ou liberdade.
Um exemplo disso
pode ser observado no slogan de uma campanha de telefonia cellular da empresa
Oi: “Liberdade é estar na Moda”. Por trás desse slogan, que é o primor da
linguagem orwelliana (a “novilíngua” do livro 1984 de Orwell), está o paradoxo
esquizofrênico do Duplo Vínculo: Liberdade é a capacidade de renunciar a
qualquer livre-arbítrio.
No filme Eles Vivem o objetivo da elite
empresarial alienígena é criar a indiferença e o egoísmo com o propósito bem
maquivélico: divider para reinar. Quanto mais nos concentramos na ambição
individual, mais perdemos a individualidade por nos resignarmos às regras do
jogo coletivo que é essa: esqueça do outro e de si mesmo – DURMA!
Como Bateson
verificava nas crianças vítimas dessas relações familiares, o resultado era um
patológico estado de alienação onde o indivíduo alterava metalmente a realidade
para que ela se mostrasse menos ameaçadora.
Dessa maneira,
Eles Vivem é um filme que merece ser revisto à luz de tudo que aconteceu nesse
planeta depois de 1988. O filme parece ser estranhamente profético.
Ficha Técnica |
Título: Eles
Vivem
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Diretor: John Carpenter
|
Roteiro: John Carpenter baseado no conto “Eight O’Clock in the Morning” de Ray
Nelson
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Elenco: Roddy Piper, Keith David, Meg Foster
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Produção: Alive Films
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Distribuição: Universal Pictures
|
Ano: 1988
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País: EUA
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