sábado, outubro 24, 2015

Desperte da sua vida esquizofrênica com o filme "Eles Vivem"

Mais um daqueles filmes estranhamente proféticos. “Eles Vivem” (“They Live”, 1988) do mestre do terror John Carpenter parece antever de gadgets tecnológicos de vigilância como os drones até a atual agenda política global onde a Publicidade e as marcas transnacionais substituem as nações. Um sem-teto desempregado encontra uma caixa de óculos de sol que revela um estranho mundo submetido a uma espécie de hipnose coletiva que impede que enxerguemos os comandos subliminares na Publicidade e a ação de seres alienígenas infiltrados nas ruas e na TV. Uma ataque explícito à sociedade de consumo que vai muito além dos clichês da crítica ao consumismo: “Eles Vivem” revela o secreto mecanismo psíquico esquizofrênico que nos mantém prisioneiros do circuito fechado individualismo-consumo.

Assistir ao filme Eles Vivem (They Live, 1988) é uma experiência conflitante. O filme do mestre do terror John Carpenter (A Coisa, Halloween, Christine) ora parece uma sátira com atores protagonistas propositalmente canastrões e efeitos especiais que lembram os sci-fi B dos anos 1950, ora uma séria crítica social e política. Muitas vezes parece que Carpenter não que que levemos o filme a sério. Por outro lado, Eles Vivem torna-se um daqueles filmes subversivos que, depois do final, nos faz olhar para o redor para então passarmos a questionar tudo até o limite da paranoia.

O filme foi baseado no conto Eight O’Clock in the Morning de Ray Nelson sobre um homem que desperta de uma espécie de hipnose em massa para descobrir que a Terra é controlada por uma elite de empresários alienígenas com a ajuda da elite política humana. 

As críticas do cinema politicamente engajado contra o consumismo que denunciam o poder propagandístico da Publicidade ou a mercantilização da vida humana tornaram-se tão clichês que parecem regurgitações de platitudes. Carpenter sabia disso. Por isso, para tornar mais poderoso o comentário social de Eles Vivem, embalou a crítica subversiva do conto original numa embalagem pop palatável.

O truque de Carpenter foi expor sua mensagem de uma forma que a princípio parecesse satírica e canastrona, para começar com o protagonista que à época era um conhecido personagem do mundo da luta livre televisiva (Roddy Piper) – uma evidente paródia dos heróis dos anos 1980 ao estilo Rambo e Braddock.


Piper é George Nada, um sem teto que abandonou sua cidade natal no Colorado em busca de trabalho braçal em Los Angeles. Até um dia que descobre um par de óculos que lhe permite ver as mensagens subliminares escondidas em anúncios de outdoors, revistas e TVs, assim como a verdadeira face terrível dos alienígenas mascarados de seres humanos que andam entre nós nas ruas, com a intenção de dominar e explorar o planeta em segredo.

Além disso, Eles Vivem parece ser outro daqueles filmes estranhamente proféticos: está lá no filme a tecnologia dos drones como instrumento de vigilância policial e a chamada agenda política global como estratégia alienígena de, através da publicidade transnacional, eliminar as nações para criar uma nova orgem globalizada – um ano depois cairia o Muro de Berlim que foi o evento político que deflagraria a queda do bloco soviético e a unificação midiático-financeira que sustentaria a Globalização da próxima década.

O Filme


Desde o início vemos George Nada caminhando ao redor de Los Angeles com sua mochila em busca de trabalho e morada. Enquanto Nada nos parece um daqueles mochileiros felizes em busca da fortuna, a cidade não parece feliz: há um clima de morte no ar. A pobreza é galopante, helicópteros voam ao redor da cidade e pregadores nas ruas falam em serem sem alma que supostamente regem esse mundo.

A câmera fixa nos rostos de sem tetos que olham atentamente para as mensagens sobre consumismo e a vida das celebridades na TV. Até que uma organização obscura de hackers intercepta as transmissões para transmitir mensagens subversivas sobre governantes ocultos alienígenas que dominam secretamente o planeta com a ajuda de uma elite humana corrompida.

“Nossos impulsos são direcionados. Vivemos em um estado de consciência que artificialmente se assemelha ao sono. Eles criaram uma sociedade repressive, e nós seus cúmplicas involuntários. Sua intenção de governar coincide com a aniquilação da consciência. Fazem nos tornar indiferentes uns aos outros. Estamos focados apenas em nossos próprios interesses. Por favor entendam. Eles são pacíficos, desde que eles não sejam descobertos. Esse é o seu principal método de sobrevivência: Mantendo-nos dormindo, mantendo-nos egoístas, mantendo-nos sedados." – essa é a denúncia que periodicamente intercepta as transmissões de TV diante dos indiferentes espectadores.


Assim como o protagonista George Nada, um assumido crente do chamado Sonho Americano meritocrático de que a vida resume-se em trabalhar para subir na vida – e eventualmente tornar-se uma celebridade televisiva. Até que um dia descobre uma estranha caixa com pares de óculos de Sol em uma Igreja onde lê uma estranha pichação na parede: “Eles Vivem, nós dormimos”.

Chocado, através dos óculos descobre a verdade nua e crua: por trás de cada anúncio publicitário há um tipo de comando subliminar – por exemplo, em um anúncio de turismo lê-se “case e se reproduza”. Em outros vê-se: “Obedeça”, “Consuma”, “Não há livre pensar”, “Não Questione a Autoridade” etc.

Mensagens subliminares contraditórias


O grande insight de Eles Vivem é mostrar que essas mensagens subliminares (reforçada por um sinal transmitido do alto de uma torre de TV que mantém todos em um estado de transe que impede a todos de verem os seres alienígenas infiltrados nas ruas e nos programas de TVs) são estranhamente contraditórias: de um lado, exigem obediência e destruição da individualidade e livre-arbítrio. Mas por outro, reforçam a ambição, a ganância e o sucesso financeiro individual – nas notas de dólar está “Esse é seu Deus”; há ainda mensagens incentivando o consumo e o sucesso individual.

Percebe-se no filme que as pessoas mais bem sucedidas com estilos de vida consumistas são os ETs mascarados de humanos em lojas e supermercados, como fossem modelos vivos nos quais os humanos devam se espelhar para buscarem uma vida melhor.

Dessa maneira, Eles Vivem vai à fundo na crítica a sociedade de consumo, muito além da crítica tradicional e clichê do “Pensar em Ter no lugar do Ser” – o filme desvenda o mecanismo esquizofrênico do chamado “duplo vinculo” que nos mantém de forma sadomasoquista presos ao estilo de vida consumista.


Esquizofrenia e “Duplo Vínculo”


O conceito de “Duplo Vínculo” foi criado pelo psiquiatra e antropólogo ingles Gregory Bateson (1904-1980) durante pesquisas sobre quadros de esquizofrenia nas relações familiares que se caracterizaram por situações de “duplo vinculo” - crianças que são aprisionadas em uma cilada linguística e emocional ao ouvirem dos pais mensagens variantes de um discurso com o seguinte teor: “gostamos muito de você, mas temos de castigá-lo porque se não o fizermos você irá se comportar mal, e não queremos que isso aconteça porque queremos continuar gostando de você”.

Diante de tal paradoxo a criança ficaria presa num jogo de “se ficar o bicho pega, se corer o bicho come”, resultando em imobilismo e impotência.

Muitos pesquisadores em psicanálise da comunicação (no qual se inclui esse humilde blogueiro) acreditam que esse jogo esquizofrênico e sadomasoquista do “não pode ganhar” estaria no núcleo da submissão do indivíduo à sociedade de consumo.

Para criar-se a armadilha do duplo vincula é necessário que haja um forte laço afetivo e emocional entre os jogadores. Ao nos oferecer materializações dos nossos sonhos e desejos a mídia e a publicidade realiza essa condição. Mas, paradoxalmente, o preço a ser pago é a renúncia de qualquer livre-arbítrio ou liberdade.

Um exemplo disso pode ser observado no slogan de uma campanha de telefonia cellular da empresa Oi: “Liberdade é estar na Moda”. Por trás desse slogan, que é o primor da linguagem orwelliana (a “novilíngua” do livro 1984 de Orwell), está o paradoxo esquizofrênico do Duplo Vínculo: Liberdade é a capacidade de renunciar a qualquer livre-arbítrio.


No filme Eles Vivem o objetivo da elite empresarial alienígena é criar a indiferença e o egoísmo com o propósito bem maquivélico: divider para reinar. Quanto mais nos concentramos na ambição individual, mais perdemos a individualidade por nos resignarmos às regras do jogo coletivo que é essa: esqueça do outro e de si mesmo – DURMA!

Como Bateson verificava nas crianças vítimas dessas relações familiares, o resultado era um patológico estado de alienação onde o indivíduo alterava metalmente a realidade para que ela se mostrasse menos ameaçadora.

Dessa maneira, Eles Vivem é um filme que merece ser revisto à luz de tudo que aconteceu nesse planeta depois de 1988. O filme parece ser estranhamente profético.



Ficha Técnica


Título: Eles Vivem
Diretor: John Carpenter
Roteiro: John Carpenter baseado no conto “Eight O’Clock in the Morning” de Ray Nelson
Elenco: Roddy Piper, Keith David, Meg Foster
Produção: Alive Films
Distribuição: Universal Pictures
Ano: 1988
País: EUA

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