Nas últimas décadas adaptações da Alegoria da Caverna de Platão têm sido recorrentes em diversos filmes, nos
mais diversos gêneros e narrativas. O filme grego “Dente Canino” (Kynodontas,
2009) é mais uma adaptação dessa alegoria, dessa vez numa surpreendente mistura
do filme “A Vila” de Shyamalan com “Dogville” de Lars von Trier: para tentar
manter a inocência dos filhos em um mundo corrompido, um pai os mantém isolados
do exterior dentro de uma propriedade rural cercada por altos muros – a TV só
mostra vídeos caseiros e a linguagem e sexualidade são manipulados e
controlados a um nível patológico levando o conceito de educação doméstica para
um extremo bizarro. “Dente Canino” mostra como a Alegoria da Caverna pode ser
real, assim como as possibilidades de escaparmos por meio de uma gnose selvagem. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.
"SOCRATES: Olhai! Seres humanos vivem em uma
caverna subterrânea e têm a boca aberta em direção à luz. Esses homens estão aí
desde a infância, e têm suas pernas e pescoços acorrentados para que eles não
possam se mover e só consigam ver a frente deles, sendo impedido pelas cadeias
de virar suas cabeças. Acima e atrás deles há uma fogueira acesa, e entre o
fogo e os prisioneiros há um caminho elevado; e você verá diante deles um muro
baixo construído ao longo do caminho como fosse uma tela onde sombras
projetadas pelo fogo mostram homens passado ao longo da parede transportando
todos os tipos de vasos, e estátuas e figuras de animais feitas de madeira e
pedra e vários materiais. Alguns deles estão falando, outros em silêncio.
Glauco: Você me mostrou uma imagem estranha, com estranhos
prisioneiros.
SÓCRATES: Assim como nós mesmos ... (Platão, A
República, Livro VII)
Esse diálogo
metafórico sobre a Alegoria da Caverna escrito por Platão no século IV A.C.
tornou-se não apenas uma imagem sobre a condição humana perante o mundo como na
Filosofia e no Hermetismo, como também tornou-se um argumento recorrente na
cinematografia contemporânea. Dos clássicos filmes gnósticos como Dark City, Matrix e Show de Truman a versões que se estendem a outros gêneros como A Vila (2004) de Shyamalan ou a animação Uma Aventura Lego (2014).
Eleito o melhor
filme na mostra “Um Certo Olhar” do Festival de Cannes de 2009, Dente Canino (Kynodontas, 2009) do diretor grego Yorgos Lanthimos é mais um filme
que revisita a alegoria platônica. Muitos críticos apontam que Dente Canino é o resultado de uma
mistura entre o terror que mantém os habitantes presos em um lugarejo no filme A Vila e a atmosfera sadomasoquista de Dogville de Lars von Trier - assista ao filme abaixo com opção de legendas em português.
Mas a novidade
nessa revisita à Alegoria da Caverna está na mudança de foco: embora Lanthimos
detalhe as formas como a ilusão pode ser criada para manter os prisioneiros
acorrentados numa caverna metafórica (no filme uma confortável propriedade
rural), Dente Canino concentra-se no
próprio simbolismo do título – no dente canino humano está a memória de que
ainda continuamos selvagens e carnívoros, embora sejamos tratados como
bebedores de leite.
Lanthimos propõe
um simbolismo duro e violento para mostrar que não só fora mas também dentro de
cada um dos prisioneiros da caverna existe uma fogueira acesa que pode ser a
fonte da energia que liberte a todos.
O Filme
Um pai e uma mãe criam
seus três filhos (duas garotas e um jovem com idades entre o final da
adolescência e os vinte anos) em uma propriedade rural isolada onde há um grande gramado e uma piscina, sem
eles terem qualquer conhecimento do mundo exterior. A propriedade é cercada por
um muro cujo protão está sempre trancado e o pai é o único a sair de casa para
trazer alimentos que têm metodicamente seus rótulos retirados para não terem
nenhuma identificação externa.
A mãe parece ser
também prisioneira por opção e nunca discorda dos bizarros métodos de educação
caseira dos filhos.
Os jovens passam o
dia disputando estranhos jogos como, por exemplo, quem acorda primeiro depois
de ter sido anestesiado. Aprendem novas palavras com definições incorretas –
“mar” significa uma poltrona ou “auto-estrada” que dizer “vento forte”.
A única pessoa de
fora que todos conhecem é Christina, uma prostituta que o pai traz semanalmente
para satisfazer os impulsos sexuais do filho. Ela acabará revelando fatos do
mundo exterior que perturbará a harmonia artificial daquela família.
O pai acredita que o confinamento dos filhos é
a única maneira de preservar a suas inocências diante de um mundo corrompido:
na TV só assistem aos filmes caseiros que a família faz. E na vitrola Frank
Sinatra é apresentado como sendo o avô dos meninos e a letra da música Fly Me To The Moon é traduzida para o
grego com uma letra que supostamente enalteceria os valores familiares e o amor
que todos os pais e filhos devem ter entre si.
Leite e cães
O filme faz um
simbólico contraste entre uma dieta familiar à base de leite (sempre assistimos
aos personagens com um copo de leite) e a forma como o pai adestra os filhos
como fossem uma experiência comportamental dos cães do Pavlov (psicólogo russo
que descobriu o condicionamento das reações fisiológicas) – enquanto ele
adestra os filhos, um cão da família está sendo também adestrado em um escola
para cães.
Bebedores de
leite, porém ainda com uma essência selvagem – o pai fala que os filhos somente
poderão sair de casa no dia que um dos dentes caninos cair, ou seja, deixar de
ser selvagem e “ascender” ao conformismo. Ou “inocência”, como prefere pensar o
pai.
O leitor observará
que a narrativa do filme é dividida em duas partes bem distintas: primeiro, a
descrição dos processos de manutenção da ilusão que mantém toda aquela família
prisioneira na “caverna”.
O controle da
mídia (são exibidos somente conteúdos caseiros dirigidos pelo pai), o controle
tecnológico (toda a tecnologia é propositalmente retrô com um telefone de
disco, toca-discos e aparelho de TV com tubo catódico com um aparelho de vídeo
VHS) e a manutenção do medo e do terror como forma de manter a união familiar –
um pobre gato que inadvertidamente aparece no jardim é morto pelo filho
aterrorizado. Aproveitando-se disso, o pai elege o animal como o perigo externo
que espreita a todos.
Destaque também
para a manipulação linguística: palavras que potencialmente poderiam revelar
uma realidade exterior são redefinidas: “xoxota” vira “lâmpada” e “zumbi”
torna-se “flor amarela”.
Mas o principal é
a forma como o pai incita a competição e a melhoria do desempenho entre os
filhos. Por meio de jogos bizarros, a família cria uma hierarquia de
premiações. Como dizia O Príncipe de Maquiavel, “dividir para reinar”. A
competição entre todos acaba com qualquer forma coletiva de resistência.
A gnose selvagem
Mas Dente Canino vai mostrando também como,
lentamente, a harmonia simulada daquela família vai desmoronando. A suposta
inocência que o pai quer preservar aos poucos reverte-se contra a simulação: os
impulsos sexuais do filho, que obrigou ao pai trazer uma prostituta do mundo
exterior, revela-se aos poucos uma forma de contaminação – as fitas VHS de
filmes trazidos por ela como Rock, Um
Lutador e Flashdance traz linhas
de diálogos que inspiram a filha mais velha.
Para assustar os terríveis gatos comedores de
gente, o pai ensina a todos a ficar de quatro e latir ferozmente como um cão de
guarda, para defender a casa dos supostos monstros lá de fora. Mas lentamente o
cão começa a querer morder a mão do dono. E a metáfora canina do impulso
selvagem presente dentro de cada um de nós se transforma no impulso de
liberdade presente nos jovens que o mundo adulto do futuro irá matar – como no
caso da mãe, submissa e apática.
Dente Canino é como um acidente de carro – não dá
para desviar o olhar. O diretor Yorgos Lanthimos conta a história com o domínio
total dos recursos visuais e as performances dos atores, submetidos a muitas
cenas de nudez, violência e constrangimento.
A fotografia do
filme é perturbadora: as cenas parecem fotografias de uma família feliz ou
inspiradas em filmes publicitários sobre cereais matinais, mas com algo errado
– os diálogos são compostos por frases que parecem memorizadas de livros
turísticos.
Tudo soa fake,
artificial, simulação. Mas a qualquer momento o selvagem, o sexual e o violento
podem emergir rompendo tudo. É a proposta da gnose selvagem para escaparmos na
caverna de Platão.
Nossa esperança por liberdade nunca termina,
assim como os dentes caninos jamais caem das nossas bocas, mesmo nos tornando
vegetarianos.
Ficha Técnica |
Título: Dente
Canino (Kynodontas)
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Diretor: Yorgos Lathimos
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Roteiro: Efthymis Filipou, Yorgos Lanthimos
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Elenco: Christos Stergioglou, Michele Valley, Angeliki Papoulia, Hristos
Passalis, Mary Tsoni
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Produção: Boo Productions, Greek Film Center
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Distribuição: Kino International
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Ano: 2009
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País: Grécia
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