Em junho deste ano houve a exposição "Darcílio Lima - Um Universo Fantástico" na Caixa Cultural, no Rio de Janeiro. Cearense de Cascavel, tornou-se um dos principais artistas brasileiros do Movimento Surrealista, mas seu trabalho, assim como de muitos outros nomes do surrealismo mundial, contém influências gnósticas que passam, como sempre, despercebidas do grande público.
Conspiracionistas atestam que os conteúdos gnósticos presentes em obras
midiáticas possuem o intuito de inculcar mensagens subliminares nas mentes do
grande público; outros que tudo não passa de mera paranoia da parte de quem
assim pensa. Outros ainda, que os autores de tais obras não teriam conhecimento
real acerca das referências gnósticas presentes em suas obras. Se isso é
verdade, ao menos teríamos, talvez, a prova cabal do Inconsciente Coletivo
postulado por Carl Jung, posto que os mitos e arquétipos se repetem em
obras midiáticas mambembes sem o conhecimento de causa de seus autores.
Certa vez conheci um escultor autodidata, filho de torneiro mecânico, que
auxilia o pai em seu ofício e manufatura cinzeiros em forma de animais
biomecânicos. Sua obra me pareceu fantástica e comprei um cinzeiro, que tem a
forma de um escorpião. Perguntei-lhe se havia estudado alguma coisa de Belas
Artes e se conhecia a estética biomecânica desenvolvida pelo pintor e escultor
suíço H.R. Giger, bem como o Movimento Surrealista. Embora já soubesse a
resposta de antemão, não custava nada perguntar, pois era difícil acreditar que
o Inconsciente Coletivo, de forma não arbitrária, escolhera ao redor do mundo
seus gênios.
Da mesma forma, Darcílio Lima, cearense e autodidata, passaria
invariavelmente pelo escrutínio do preconceito, sendo considerado, sem dúvida
alguma, simplório. Mas um olhar mais atento à sua obra, trazida de forma
displicente pela fraca curadoria que veiculou a exposição, perceberá que as
referências gnósticas não estão ali de forma arbitrária ou mesmo salpicadas por
mero acaso.
Mais louco é quem me diz
No ano de 1966, ano do Cavalo de Fogo, conhecido na Astrologia
Chinesa por ser um período nefasto e repleto de acontecimentos fatídicos,
Darcílio esteve internado na instituição psiquiátrica Casa das Palmeiras,
fundada pela psiquiatra e terapeuta Jungiana Nise da Silveira, criadora
do Museu de Imagens do Inconsciente. Segundo ele, “o ano em que aceitara
completamente sua verdadeira natureza”. O carvão só se torna diamante sob
extrema pressão.
Darcílio foi então apadrinhado pelo pintor e designer Ivan Serpa, que o levou para morar em sua
residência. Lá, pôde ler sobre determinados assuntos que, não por acaso, se
tornaram os seus prediletos: mitologia, misticismo, cosmologia, astrologia,
religião, ficção científica e sexualidade. Vamos analisar algumas de suas obras.
Gnosticismo Oculto – Conhecimento ou manifestação do Inconsciente Coletivo?
Figura 1 |
No figura 1, temos uma reinterpretação
do Caduceu de Hermes. Os dois seres
reptílicos entrelaçados representam as duas serpentes, Ob e Od, encimados pela
síntese de ambas, Aur. Abaixo na figura 2, uma
ilustração do Caduceu de Hermes para maior entendimento da comparação.
Na figura 3, embora diversos símbolos místicos estejam nele gravados (assim como em
quase toda a sua obra), os mais evidentes são os dos signos zodiacais Áries e Libra; respectivamente, os signos que representam os equinócios da
primavera e do outono. Juntos, ambos
formam o chamado Eixo dos Equinócios - figura 6.
Figura 2 |
A figura 4 mostra uma mulher que em muito poderia representar Lilith, a obscura “primeira mulher de Adão”. Ao lado esquerdo de sua face temos a figura do próprio Adão
representando a Árvore do Conhecimento,
enroscado pela famigerada Serpente do
Éden, ladeado por duas “Evas” e encimado por uma terceira - figura 7.
Figura 3 |
O Adão e as
duas Evas podem muito bem estar representando a carta do tarô O Diabo, enquanto a terceira Eva, de
ponta-cabeça, a carta O Enforcado.
A mão direita
está situada no canto inferior direito do quadro, ao lado de uma garrafa de
Coca-Cola e logo abaixo alguns signos zodiacais. Embora os signos não estejam
na ordem correta, os símbolos correspondentes a cada dedo na mão representam
perfeitamente as atribuições da Quiromancia,
sendo o dedo polegar, Vênus; o indicador, Júpiter; o dedo médio, Saturno; o anelar,
Sol e o mínimo, Mercúrio. Abaixo, a almofada carnuda correspondente à Lua e, na
palma da mão, o símbolo de Marte, já que, para a quiromancia, há Marte
Ascendente (entre o Polegar e o Indicador) e Marte Descendente (entre Mercúrio
e a Lua). A representação na palma da mão visa abranger ambos.
Figura 4 |
Na figura 5,
a figura da deusa egípcia Nuth aparece,
de forma sub-reptícia, formada pela gestalt de ambos os braços da mulher de
costas.
Na figura 6, entre outras coisas, uma serpente saindo da cabeça decepada da
mulher, puxando um crucifixo cravado no peito.
No cristianismo, uma religião patriarcal e consequentemente solar, o
Cristo representa o Sol e, não por acaso, o crucifixo está sendo retirado do
peito pela serpente, local no corpo onde se situa o chackra do Plexo Solar. A serpente representaria a
Kundalini.
Bem abaixo,
no canto inferior esquerdo do quadro, uma outra serpente segura um maço de
folhas de papel onde há os dizeres: Querida, ainda estou no inferno. Aqui a
primavera é uma festa sem fim. Os dizeres fazem pensar que a mulher presente no
quadro seria uma representação da deusa grega Perséfone, enquanto a figura masculina reptílica seria o deus Hades.
O mito de Perséfone
Figura 6 |
Segundo o
mito, a deusa havia sido raptada por Hades, imperador do mundo subterrâneo dos
mortos, uma versão grega para o Inferno. Deméter,
mãe de Perséfone e deusa da agricultura e da fartura, revoltada com a Terra por
ter aberto a passagem para os reinos subterrâneos, recusou-se a voltar ao Olimpo, morada dos deuses, e a terra
sucumbiu a um período estéril, e portanto infértil.
Preocupado
com a situação em que se encontrava a humanidade, Zeus pede a Hades que liberte Perséfone, mas o deus abissal a faz
comer um pedaço de romã. Segundo as regras do submundo, quem comesse qualquer
Figura 7 |
alimento nessa região ficaria condenado a regressar eternamente.
A partir de
então, Perséfone passaria a primavera na companhia de sua mãe, e o outono na
companhia de seu esposo Hades. Tendo em vista que aceitou a oferta do deus do
submundo, o “fato” leva a crer que gostou da companhia de Hades, o que
justifica a sentença “(...) ainda estou no inferno. Aqui a primavera é uma festa sem fim.”
A figura 7 mostra mais uma vez a intimidade de Darcílio com a astrologia. Na roda,
situada por detrás da perna da figura feminina, há apenas onze signos, sendo o
de Virgem o único não revelado - veja figura 8. A serpente
enroscada em sua perna esconde tal signo enquanto lambe a genitália da “moça”.
Uma possível alusão à perda da virgindade e ao martírio de Santa Ágata.
Santa Ágata e as pinturas de Darcílio
Figura 8 |
Vários dos
quadros aqui apresentados mostram corpos femininos nus tendo seus seios
“martirizados”, por assim dizer, de alguma forma. Essa menção nos remete à
lenda de Santa Ágata.
Ágata (ou
Águeda) da Sicília foi uma virgem martirizada durante a perseguição de Diocleciano. Após diversas tentativas
de estupro por parte do pró-Cônsul Quinciano,
este ordenou que ela fosse torturada, tendo seu corpo queimado por ferro em
brasa e seus seios arrancados. Segundo a lenda, após sua morte (devido à
tortura por brasas) ocorreu um tremor de terra e, um ano após sua morte, o vulcão
Etna entrou em erupção; erupção esta
que só cessou após os habitantes da Sicília colocarem um véu sobre sua
sepultura.
Tendo quase
três vezes o tamanho do Vesúvio, o
Etna (cujo nome deriva de aitho, queimar violentamente) é presença constante na
mitologia grega, sendo um personagem assim como uma estrada o é em um Road
Movie. Em três dos relatos míticos um monstro ou criatura beligerante é preso
sob suas encostas. O gigante Encélado
foi morto e sepultado sob o vulcão após se rebelar contra os deuses do Olimpo,
num misto de Prometeu acorrentado à
montanha com Adão expulso do Paraíso. Éolo, rei dos ventos (cujo nome deu origem ao termo “eólico”)
confinou seus asseclas voláteis e esvoaçantes nas cavernas existentes sob o
vulcão. O poeta Ésquilo relata a prisão
da serpente Tífon sob o mesmo
vulcão, o que acarretou em suas consecutivas erupções.
Chamado de Gibel Utlamat, ou “montanha de fogo”, pelos árabes, o Etna nos remete
tanto ao martírio de Santa Ágata quanto à constante lenda de uma serpente
admoestada, elucidada no artigo “Tropa
de Elite e Guerra ao Terror: o São Jorge do BOPE e um Dragão que nunca existiu”.
Atentem para o nome com o qual os árabes chamam a montanha: Gibel Utlamat. O
segundo termo remete à Ti´Âmat, a serpente subjugada pelo deus babilônico
Marduk.
Segundo a
lenda, a cidade natal de Darcílio, Cascavel,
tem esse nome porque, sob seu solo, habitaria uma enorme serpente. Sua aparição
se deu após a morte de uma senhora de engenho, que, adivinhem por que, foi
transformada no animal-entidade. Para aprisioná-la ao solo, foi construída uma
torre. A ideia da torre como símbolo fálico admoestando o mal já foi deveras
elucidada no artigo supracitado, e as pinturas de Darcílio mostram várias
figuras femininas híbridas com figuras reptílicas. Se Darcílio as fez
propositalmente, isso mostra que “sabia das coisas”. Se não, é mais uma mostra
do que o Inconsciente Coletivo é capaz.