Além de ressuscitar mortos, multiplicar peixes e pães e supostamente
redimir a humanidade, Jesus também realizou um milagre semiótico: através das
parábolas superar o problema da memória da comunicação oral presencial –
passado o calor do momento, tendemos a esquecer o conteúdo da comunicação.
Graças às fortes alegorias e a narrativas curtas e circulares, suas parábolas
se tornaram virais, assim como os atuais memes nas redes sociais. Os memes
repetem a mesma estrutura narrativa alegórica, dessa vez em uma outra mídia
efêmera – as timelines e chats dos ambientes digitais. Uma estrutura narrativa
marcada por dois fatores que impulsionam o alcance de vídeos e imagens:
“importância e “ambiguidade”. Se os memes são as “neoparábolas” atuais, Jesus
poderia ser considerado o primeiro criador de memes da História?
Em uma churrascada
alguém anuncia aliviado que ainda há latas de cerveja na geladeira: “É o
milagre da multiplicação das cervejas!”, jubila; um grupo discute e o seu líder
reivindica: “precisamos separar o joio do trigo!”; “aqui tem lobo em pele de
cordeiro!”, diz desconfiado o político na reunião de um partido. O que há em
comum em todas essas falas? São alusões a milagres e parábolas de Jesus
encontrados em diversos versículos do livro bíblico de Mateus.
Talvez o grande
milagre de Jesus, além de fazer mortos ressuscitarem e multiplicar pães e
peixes, tenha sido também o semiótico – conseguir transformar suas alegorias e
parábolas em imagens persistentes e virais que atravessaram 2.000 anos e
continuam com força de disseminação.
Derivado do grego “parabolé” (narrativa curta), parábolas
são narrativas breves, com um conteúdo repleto de alegorias, utilizadas por
Jesus como principal estratégia discursiva nos seus sermões com a finalidade de
transmitir ensinamentos. Misturando personagens fictícios com situações reais,
Jesus procurava ensinar lições éticas ou de sabedoria através de prosa
metafórica e linguagem simbólica.
E por que
considerar a persistência das alegorias de Jesus como um milagre semiótico?
Jesus enquanto esteve entre nós, jamais utilizou-se da escrita para transmitir
seus ensinamentos. Tradicionalmente é atribuído a dois dos doze apóstolos
(Mateus e João) e dois colaboradores (Marcos e Lucas) a autoria de textos que
somente foram aparecer no formato atual no século 3 – mais de 150 anos depois
da data em que os textos foram escritos.
Os ensinamentos de
Jesus foram transmitidos pela comunicação oral onde, apesar dos índices não
verbais darem força à relação (empatia, gestos, carisma etc.), é ameaçada pela
efemeridade, pelo esquecimento.
A comunicação performática de Jesus
A comunicação oral
é essencialmente performática. Como forma de comunicação indicial,
caracteriza-se pelo emaranhamento: enunciado (conteúdo) se confunde com a
enunciação (interação + contexto), o conteúdo com a relação (empática,
antagônica ou agressiva) e o emissor com o receptor (os parceiros reagem uns
sobre os outros como se vê na comunicação viral ou nas ressonâncias em
massa). Por isso, a oralidade é presa ao
aqui e o agora, à performance contaminada pelo calor emocional e a qualidade da
interação do momento.
Passada a catarse,
passado o momento, a tendência é o conteúdo da comunicação ser esquecido por estar
impregnado pelas qualidades indiciais de um contexto que se passou.
Portanto, o grande
problema da comunicação oral é a memória. Como então transmitir ideias tão
inovadoras e revolucionárias como a nova ética cristã da compaixão, o perdão e
o amor ao próximo através de uma mídia tão frágil e efêmera? Como tornar universal
conceitos transmitidos pela oralidade presencial, tão presa a um instante, a
uma localidade, a um contexto?
Certamente, o
gênio semiótico de Jesus esteve na escolha da sua estratégia discursiva: as
parábolas. Estrutura narrativa simples, alegórica, destinada à disseminação
boca-a-boca para ser recontada diversas vezes. Assim como os memes atuais,
destinados à replicação.
Muito mais que a
palavra escrita, a palavra falada é ocorrência, acontecimento. Na antiguidade
grega Homero dizia que as palavras são “aladas”. Certamente Jesus sabia que a
comunicação oral é relacional, dominada pelo calor da autenticidade – seu lado
negativo é a efemeridade. Mas, por outro lado, é capaz de impulsionar
alegorias, metáforas e narrativas curtas e circulares, assim como os memes
atuais.
A psicologia de parábolas e memes
Essa aproximação entre as parábolas de Jesus e os memes atuais parece
confirmar a fórmula da chamada “psicologia do rumor” criada por Gordon Allport
e Leo Postman em 1947:
A = i X a
Onde /A/ de alcance
é igual à /i/ de importância multiplicada por /a/ de ambiguidade.
O fator “importância”
(a importância de uma fato tem uma relação direta com a sua novidade,
inesperado e bizarro) esteve presente nas parábolas de Jesus – muitas vezes Ele
tinha diante si um auditório composto pelos seus inimigos teológicos e, desta
forma, o conflito intenso era a tônica das apresentações. Através de parábolas, Jesus respondia às
perguntas de forma inesperada: com outra pergunta que encadeava uma nova
analogia. O inesperado e a quebra de paradigmas desconcertava os doutores e
teólogos opositores.
Hoje os memes atendem
a esse mesmo princípio: basta uma olhada nos videos virais de um YouTube e
veremos o inesperado e o bizarro que quebra leis da gravidade ou de
verossimilhança.
E o fator
“ambiguidade” foi o elemento multiplicador do alcance das parábolas jesuânicas:
ao contrário da fábula que sempre começa com um “era uma vez…” (criando um tom
atemporal de uma realidade paralela), na parábola temos a ficção da alegoria
misturada com elementos da realidade do interlocutor. Isso dá o outro sentido
do grego “parabolé” – “comparar”, “colocar lado a lado”. Fição e realidade são
comparados e misturados: ao invés de “era uma vez…” temos o “poderia ser
assim…”.
Da mesma forma nos
memes atuais: de um vídeo do YouTube mostrando pessoas que supostamente flutuam
segurando alguns balões comuns ao chamado “meme do irônico” (Willie Wonka rindo
ironicamente segurando o queixo com uma das mãos), vemos alegorias que
facilmente poderiam aderir à realidade. A polaridade verossímel/inverossímel é
trocada pelo “virtualmente possível”.
O meme/parábola de uma surreal conversa de rádio
Um exemplo desse
encontro entre memes e a estrutura das parábolas jesuânicas podemos encontrar
em um vídeo que está circulando nas redes sociais desde 2014. Nele se mostra
uma surreal conversa de rádio entre um navio da marinha norte-americana e o
Noroeste da Espanha. No áudio, o comandante americano pede para que a embarcação
espanhola mude seu curso para que não se choquem no meio do mar, mas fica
extremamente bravo ao receber a resposta de que o “obstáculo” espanhol não
iria mudar de rumo – assista ao video abaixo.
Ao final da conversa
tensa, o comandante norte-americano de uma poderosa esquadra escoltada por
submarinos e destróiers descobre que o navio espanhol não mudará de curso pois
tratava-se, na verdade, de um farol.
O diálogo é uma
verdadeira alegoria de como a arrogância do poderio bélico dos EUA pode
converter-se em cegueira e burrice. O vídeo viralizou e transformou-se em lenda
urbana justamente porque a força de uma parábola está na comparação da alegoria
com a realidade – um fato que supostamente teria acontecido em 1995 seria virtualmente verdadeiro.
Memes são neoparábolas?
Paradoxalmente essas
verdadeiras neoparábolas que são os memes atuais ocorrem em uma nova mídia de
natureza bem diversa da época de Jesus: as simbólicas digitais. Enquanto as parábolas
de Jesus se disseminaram pela oralidade (presencial e relacional), os memes
espalham-se através de mídias que simulam
o presencial e o relacional.
O paradoxo das novas
tecnologias digitais é que, apesar dos interlocutores estarem à distância, os
emoticons, letras em caixa alta e onomatopéias simulam os índices da
comunicação não verbal da oralidade presencial. Em um chat, diálogos inbox,
timelines de redes sociais etc. simula-se fazer parte de uma comunidade
presencial, de estar em uma comunicação performática com as mesmas
características da oralidade.
Assim, encontramos
uma inesperada linha de continuidade entre o poder viral das parábolas de Jesus
no seu tempo e os atuais memes dos ambientes digitais. Por meio das parábolas
Jesus foi o primeiro criador de memes graças à força das suas diversas
alegorias. Hoje, os memes são as neoparabólas em uma mídia tão efêmera como as
comunicações presenciais.
Lá como cá, o grande
problema sempre foi a perda da memoria, solucionada por pequenas narrativas
feitas para serem repetidas. Hoje, os memes também tentam ser a solução para a
efemeridade das timelines das redes sociais.
Resta saber se numa
mídia que simula o presencial, também os memes poderiam apenas simular uma
suposta persistência da memória digital.
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