Estranhos carros tunados que correm o Outback australiano
provocando acidentes cujas vítimas serão ou assassinadas, ou incorporadas à
comunidade de um lugarejo chamado Paris ou se transformarão em cobaias de um estranho
experimento psiquiátrico. O clássico cult “The Cars That Ate Paris” (1974),
dirigido por Peter Weir (“Show de Truman”, “Sociedade dos Poetas Mortos”) em
início de carreira, é um filme estranho e enigmático e que por décadas se
mostrou impossível de ser rotulado em um gênero. Apesar da sua estranheza, a produção acabou influenciando diversos
filmes por gerações como “Mad Max”, “Veludo Azul”, “Chumbo Grosso” ou “Velozes
e Furiosos”. Como mais tarde faria em “Show de Truman”, em “The Cars” Peter
Weir quer encontrar o bizarro e o anormal por baixo da aparente rotina de um
lugarejo com doces vovós em cadeiras de balanço e fiéis que não perdem uma
missa aos domingos. Mas todos escondem um terrível segredo.
Um filme estranho? Com certeza. Gnóstico?
Talvez, ainda mais sabendo que o diretor australiano Peter Weir tem um especial
interesse pelas teorias sobre os mitos e sonhos e nos seus filmes sempre
demonstra estar atento ao tema de como o senso comum sobre a realidade pode ser
frágil e como podemos encontrar o extraordinário dentro da vida ordinária. Seu
filme Show de Truman foi a
consolidação desses temas que sempre estiveram na cabeça do diretor.
The
Cars That Ate Paris (1974, “Os
Carros que Comeram Paris”) é um estranho filme do início da carreira de Peter
Weir, ainda no cenário cinematográfico australiano. Uma das primeiras características de um
“filme estranho” – sobre esse conceito fílmico clique
aqui – é a dificuldade em rotulá-lo em um gênero: nos anos 1970, o filme
teve uma difícil comercialização, porque era impossível categorizá-lo: humor
negro? Comédia dramática? Ficção Científica? Terror? Na era do VHS nos anos
1980, as locadoras colocavam o filme nas prateleira de “terror”.
Mas não era nada disso, além do título ser
duplamente enganador: nenhum carro come ninguém, não há carros que ganham vida
própria e viram monstros como em Cristine,
o Carro Assassino (1983). E também nada se passa em Paris. Na verdade, Paris
é uma pequena e misteriosa cidade no Outback australiano.
Com o recente lançamento em DVD pela Criterion
Collection, o filme de Weir foi reclassificado como um clássico cult. Isso deu
uma nova vida comercial a um filme praticamente esquecido pelos cinéfilos.
O fato é que The
Cars That Ate Paris criou uma imagerie que secretamente influenciou muitos
filmes até hoje: Mad Max (as cenas de
carros tunados no deserto australiano são até hoje emblemáticas, um mix de western
spaghetti de Sérgio Leone com sci fi), Christine
(a imagem assustadora dos carros como tivessem bocas abertas), Dead Race 2000 (corridas de carros
mortais), Velozes e Furiosos (The Cars faz um curioso mix entre os
espírito das gangs do filme Laranja
Mecânica com os rachas de automóveis).
O Filme
Austrália, meados nos anos 70. O país está em meio
a uma crise econômica com desemprego elevado e nenhum sinal de que as coisas
melhorarão.
Arthur e seu irmão George viajam em estradas
vicinais em seu automóvel, pulando de cidade em cidade em busca de trabalho.
Uma noite, decidem seguir em direção a uma cidadezinha chamada Paris. Próximo à
cidade, uma forte luz acompanhada de um som ensurdecedor provocam um sério acidente com o carro: George morre no e Arthur é levado para o hospital de Paris ,
com vagas lembranças do que ocorreu.
Mais tarde, Arthur decide ir embora da cidade, mas o psiquiatra e o
prefeito o convencem que ele não está bem mentalmente pela fobia com carros e a culpa pela morte do irmão. Arthur não consegue entrar em um carro de novo para sair de Paris.
Aos poucos o
espectador vai percebendo que Paris é uma cidade muito peculiar: o hospital
vive estranhamente cheio de vítimas de acidentes automobilísticos.
Muitos deles não são vistos novamente e outros
sofre um “trauma cerebral irrecuperável” e se tornam como zumbis. O psiquiatra
emprega métodos poucos convencionais de tratametos. E os jovens da cidade são
violentos e indisciplinados, rondando as ruas com carros bizarramente
modificados.
Apesar dos habitantes parecerem honestos,
hospitaleiros e religiosos, eles escondem um estranho segredo. Todos os
acidente de carro no entorno de Paris são provocados para que os moradores
saqueiem os destroços: numa cidade imersa na crise econômica e desemprego, os
itens saqueados se transformam em moeda de troca em uma economia local que vive
a base do escambo. Os sobreviventes são assassinados, transformam-se em cobaias
das experiências em lobotomia do psiquiatra ou são absorvidos pela comunidade.
Como farão com Arthur, promovido pelo prefeito a
“fiscal de trânsito” da pequena cidade.
The Cars That Ate Paris e Show de Truman
Além de The
Cars That Ate Paris ter influenciado uma série de filme como os citados
acima, pode-se perceber claramente alguns ideias seminais que mais tarde Peter
Weir, ao lado do roteirista Andrew Niccol, expandiriam no filme Show de Truman (The Truman Show, 1998).
Primeiro, a falsa normalidade cotidiana de uma
pequena cidade. As casas, objetos de decoração e os personagens são
visivelmente estereotipados na sua aparente honestidade e respeitabilidade. Parece
que Peter Weir, no melhor estilo de David Lynch no filme Veludo Azul (Blue
Velvet, 1986), quer encontrar o bizarro e o realismo fantástico no meio da
rotina de um lugarejo perdido no interior da Austrália.
A cena mais marcante é onde vemos uma
aparentemente doce e religiosa vovó balançando-se numa cadeira na varanda
enquanto limpa as calotas de um carro saqueado onde seu ocupantes foram
assassinados.
Para reforçar a existência do estranho por trás
da normalidade cotidiana, a primeira sequência que abre o filme causa
estranheza ao espectador: parece um filme publicitário de alguma marca
australiana de cigarro ou da Coca-Cola: um casal com um look publicitário guiam
um conversível em uma linda estradinha, enquanto fumam e tomam o refrigerante.
Inexplicavelmente, uma das rodas simplesmente se desprende do carro, fazendo-os
se precipitarem num abismo. É uma cartão de visitas de Peter Weir: o diretor
vai na próxima hora e meia explorar o estranho que existe por trás da
normalidade da vida.
Muito parecido com o argumento de Show de
Truman: um protagonista que aos poucos desperta para uma estranha realidade por
trás do cotidiano da pequena Seaheaven – há algo de artificial e corrupto por
trás de tudo: um gigantesco reality show. Assim como na Paris do protagonista
Arthur: há um esquema corrupto e mortal por baixo da rotina aparentemente comum
do lugarejo.
Culpa e fobia
E segundo, a fobia e culpa que prendem Arthur na
cidade de Paris, tornando-se resignado e conformado a um cargo dado pelo
prefeito. Assim como em Show de Truman
onde a produção do reality show consegue inserir na mente de Truman uma fobia
pelo mar pelo sentimento de culpa de suposta ser o responsável pela morte do
pai em um naufrágio, da mesma maneira em The
Cars o psiquiatra e o prefeito de Paris conseguem convencer Arthur da sua
suposta fobia e culpa.
A diferença é que em The Cars, Arthur é extremamente resignado e orgulhoso pelo cargo
dado a ele com direito a uniforme e insígnia - ao contrário de Truman que se
rebela contra o reality show. Por isso, o filme é bem pessimista em relação a
alguma luz humana interior que conduza à consciência e revolta.
A sua conversão em um clássico cult pela
Criteriom Collection é justa, pois The Cars That Ate Paris reúne os dois
principais quesitos para uma autêntico filme cultuado: é uma relíquia de um
lugar distante no tempo e que tem muito a dizer sobre o seu lugar e sua época;
e também é um filme repleto de temas, sequências e imagerie que continuam
influenciando filmes atuais.
Ficha Técnica |
Título: The
Cars That Ate Paris
|
Diretor:
Peter Weir
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Roteiro:
Peter Weir
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Elenco: Terry Camilleri, John Meilon, Kevin Miles,
|
Produção:
Australian Film Development Corporation
|
Distribuição:
Criterion Collection (DVD)
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Ano: 1974
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País: Austrália
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