Assistir ao episódio “Esquadrão do Sabonete” da série de TV brasileira
“Mundo da Lua” apresentado em 1991 é a oportunidade de ter uma desconcertante experiência de "dèjá
vu": teria lá no passado o protagonista Lucas previsto a atual crise da água? O
episódio reserva estranhas conexões entre passado e futuro – coincidências ou
sincronicidades? Essas possíveis conexões trazem a discussão sobre as
fronteiras entre ficção e realidade tal como propostas por escritores como Charles Bukowski e Philip K. Dick: para o primeiro, a realidade consegue
superar a ficção em bizarrice, por isso a literatura deve ser mais estranha que
o real; para o segundo, a realidade é o futuro como profecia auto-realizável. É
a hipótese sincromística: haveria um subtexto com linhas sincrônicas que dariam
um sentido (natural ou conspiratório) a uma realidade aparentemente caótica? Pauta sugerida pelo nosso leitor Carlos Vinícius.
Certa vez o escritor underground e maldito
Charles Bukowski (1920-1994) foi questionado sobre o porquê do seu estilo bizarro e
exagerado de escrever, para começar os títulos que costumava a dar aos seus
contos (“A Máquina de Foder”, “Kid Foguete no Matadouro, “Doze Macacos Alados
não conseguem trepar sossegados” etc.): “em um mundo onde notícias e
acontecimentos são tão estranhos, somente uma ficção literária bizarra pode
tentar superar a realidade”.
Essa estranha percepção de Bukowsky sobre o limiar entre a ficção
e a realidade vai de encontro a atual hipótese do Sincromisticismo: a
onipresença do contínuo midiático e a forma como os meios de comunicação
exploram verdadeiras egrégoras de formas-pensamento e arquétipos, torna os
limites entre ficção e realidade cada vez mais tênues e confusos – a vida imita
a ficção ou vice-e-versa?
Um estranho emaranhado
quântico, porque nunca saberemos se o observador altera a realidade que observa
ou a realidade é que altera o olhar do observador, resultando de volta
alterações na própria realidade.
Um exemplo disso é a suspeita conexão sincromística entre um
episódio da série de TV Mundo da Lua
e a atual crise da água.
A família Silva e Silva |
Poderia Lucas Silva e Silva, personagem da série de sucesso Mundo da Lua exibida pela TV Cultura de
São Paulo entre 1991 e 1992, ter previsto a atual crise da água?
Se o leitor assistir aos quase 12 minutos do episódio “Esquadrão do Sabonete”,
certamente terá uma estranha sensação de dèjá
vu - veja abaixo o vídeo.
Para quem não conhece a série, apresenta o menino Lucas Silva e
Silva que ganha um gravador aos 10 anos. Em meio aos típicos problemas da
passagem da infância para a adolescência, cria no gravador histórias de como
ele queria que as coisas acontecessem. Vive na casa do avô com os pais (Rogério
e Carolina) que se desdobram em trabalhar em diversos empregos.
Nesse segundo episódio da série acompanhamos a luta da família
para obrigar Lucas a tomar banho. Para isso, os familiares criam o “esquadrão
do sabonete” com o intuito de encontra-lo e arrastá-lo para o banho. Após a
perseguição, Lucas tranca-se no banheiro, começa a sonhar acordado e relata
pelo microfone do gravador como seria a história de um Brasil sem água.
Sincronismos
Em vários momentos do episódio, o sincronismo com a atualidade é
desconcertante: imagens da TV de um telejornal descreve a falta de chuvas e
imagens de pessoas carregando baldes: “a ausência de chuvas traz problemas à
população... e o principal é a falta d’água nas torneiras. Isso porque os
reservatórios das cidades são alimentados pelas chuvas que caem...”.
Esse é o mantra que atualmente os telejornais repetem para
esconder a reponsabilidade dos agentes públicos pela falta de planejamento e
investimento, colocando a culpa em uma suposta catástrofe ambiental.
A certa altura no episódio, o presidente anuncia em cadeia
nacional pela TV, curto e grosso, de que o abastecimento de água entrou em
colapso e a partir daquele momento todos os banhos estão proibidos.
Essa é a única diferença em relação a atualidade, onde Sabesp e o
governador Alckmin brincam de esconde-esconde com a opinião pública, não
assumindo o racionamento por meio de eufemismos como “redução de pressão da
água”.
A canequinha
- Estou com coceira mamãe!
- Claro, estamos há quatro dias sem tomar banho...
- Pelo amor de Deus, não dá pra tomar um banhozinho só, nem que seja de canequinha?
Pois foi isso que Paulo Yoshimoto, um dos diretores da Sabesp,
sugeriu: falou em “distribuir água de canequinha” e disse que é possível que
haja um racionamento de cinco dias por semana, caso não chova de forma
satisfatória.
E no final do episódio, a mesma atmosfera de paranoia com os
possíveis ladrões de água invadindo a casa da família Silva. Esse é o mesmo
clima midiático proto-fascista que a grande mídia vem promovendo nesse momento
ao incentivar as pessoas a enviarem fotografias e denúncias daquele que estejam
supostamente desperdiçando água – sobre isso clique
aqui.
Sucateamento da água e da cultura
Porém, a mais irônica das sincronias é que a série Mundo da Lua foi produzida por uma
emissora estatal (a TV Cultura) que aos longo das décadas foi sistematicamente
sucateada, assim como a Sabesp e todo o sistema de captação e distribuição de
água.
Nunca mais a TV Cultura foi capaz de produzir séries premiadas e
elogiadas como Mundo da Lua ou Castelo Ra-Tim-Bum, assim como a Sabesp
não conseguirá mais distribuir o produto que é o motivo da sua existência. Cultura
e água, crises metodicamente sincronizadas.
Sereias da Cantareira, Mad Max e ECO-92
Acima clipe do "Sereias da Cantareira". Abaixo, filme "Mad Max" |
Um ano depois da apresentação desse episódio, ocorria a ECO-92 no
Rio de Janeiro, conferência sobre o meio ambiente com representantes de 108
países. Produziram um documento chamado Agenda 21 onde apontavam à necessidade
de combate ao efeito estufa, mudanças climáticas e, para enfrentar tudo isso, a gestão
eco-sustentável dos recursos hídricos.
A ECO-92 era o segundo grande evento sobre meio ambiente, dez anos
depois da Conferência de Estocolmo. Paralelo a esses encontros, crescia número
de lançamento de filmes ficcionais sobre futuros distópicos, representando
cinematicamente os mesmos cenários futuros discutidos nesses eventos.
No carnaval desse ano de São Paulo o bloco “Sereias da Cantareira”
criou uma marchinha e um videoclipe para a canção. Não há como não lembrar pela
imagerie do clipe as icônicas imagens dos filmes Mad Max (1979 e 1985), filme produzido nesse crescendo de filmes distópicos
ambientais entre 1972-1992.
E numa sincromística coincidência, no período em que mais se
agrava a tragédia hídrica de São Paulo, no circuito de cinemas estreia filmes
como Interestellar,
cujo cenário é de uma catástrofe climática onde tempestades de areia arrasam a
agricultura obrigando a humanidade buscar um outro planeta para sobreviver à
extinção; e o filme bíblico Êxodo:
Deuses e Reis ambientado em paisagens desérticas e sugerindo que as
pragas do Egito na verdade foram catástrofes ecológicas.
Philip K. Dick e a profecia auto-realizável
Essa discussão sobre os sincronismos entre ficção e realidade
lembra o conto Paycheck
do escritor gnóstico Philip K. Dick (1928-1982): o protagonista descobre uma máquina de
“prever o futuro” bem especial: o futuro previsto não acontece porque está lá,
mas porque a divulgação da profecia faz ela própria acontecer – a chamada
“profecia auto-realizável”- prevê-se a guerra, o países se reúnem para evita-la,
o que produz desentendimentos que provocarão a própria guerra; prevê-se uma epidemia,
os países tentam isolar os primeiros doentes o que só produz mais mutações e
efeitos epidêmicos ainda maiores.
Da mesma forma, poderíamos afirmar que houve uma conexão entre o “massacre do Colorado”
em 2012 com um capítulo da HQ de 1988 “Cavaleiro das Trevas” de Frank Miller?
(sobre isso, clique
aqui) Ou então entre a série de filmes sobre a destruição de Nova York
e o atentado de 2001 ao WTC? (sobre isso, clique
aqui) Ou ainda uma conexão entre o filme O Clube da Luta e o “maníaco
do shopping” em São Paulo? – também sobre isso clique
aqui.
Temos portanto a hipótese sincromística: a ficção estaria baseada
em matrizes (formas-pensamento, arquétipos) produzidos pela realidade que,
transformados em produtos culturais (filmes, séries, conferências etc.) só
acelerariam a sua replicação na própria realidade? Apesar da aparente desordem
e caos, existiria uma textura secreta de linhas de sincronismos que unificaria
todos os eventos aparentemente fragmentados?
Seriam esses sincronismos “naturais” ou produzidos por alguma deliberada
conspiração? Escritores como Charles Bukowski e Philip K. Dick escolheriam a
segunda opção.
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