O fantasma da adolescência assombra o Capitalismo: como estender o
período da vida que conhecemos como “juventude”, com toda a sua ansiedade e
revolta, com a finalidade de adiar cada vez mais a entrada do jovem no mercado de
trabalho? Filmes como "Divergente" (Divergent, 2014) é um exemplo da solução
desse problema e, ao mesmo tempo, a descoberta de uma inesgotável fonte de
lucros. Em cada década a indústria do entretenimento explorou essa
“adolescência estendida”: rebeldes sem causa, punks, darks, góticos, emos. E
agora, rebeldes “teens distópicos” de filmes como “Jogos Vorazes” ou “Ender’s
Games”. Baseado em mais um indefectível romance infanto-juvenil, o filme
“Divergente” traz a ambígua mensagem desses novos tradicionalistas de início de
século: revoltem-se, sejam audaciosos, mas se abstenham de drogas e sexo e na
segunda-feira voltem para a escola.
Divergente (Divergent, 2014) é
mais um filme que se associa a outras franquias infanto-juvenis de sucesso como
Crepúsculo e Jogos Vorazes. Desde Harry
Potter (2001) Hollywood vem expandindo essa tendência em adaptar para as
telas best sellers para o público
jovem. Nesse início de século, a lista já é extensa, só para citar alguns: Eu Sou o Número 4 (2010), Cidade
das Sombras (2008), Jogos
Vorazes (2012), Instrumentos Mortais
(2013), Ender’s Game (2013), Percy Jackson (2010) entre outros.
A procura da própria identidade e a descoberta
do sexo e do amor são os temas universais da adolescência presentes nesses
filmes, cujo desenvolvimento é amarrado por uma fórmula que parece comum:
protagonistas que levavam uma vida aparentemente normal até um dia descobrirem
que possuem estranhos poderes e que, por isso, são vigiados por entidades
sombrias ou sistemas totalitários distópicos. E no transcorrer dessas sagas
cinematográficas descobrirão o sexo e o amor que, em geral, tendem ou para os
amores platônicos e impossíveis, ou então simplesmente para a abstinência
sexual como um valor positivo.
São filmes que misturam inconformismo com conservadorismo – a
desobediência adolescente como ritual de passagem. Na verdade são protagonistas
que descobrem em si poderes extraordinários, assim como os adolescentes
descobrem o futuro que os aguarda na vida com seus papéis e deveres e se
revoltam, mesmo que brevemente.
Como veremos, essas sagas de revolta contra forças das trevas e
sistemas totalitários é mais uma onda de um sub-zeitgeist
que assombra cada década desde o pós-guerra (quando o jovem tornou-se um
problemas econômico), e que é explorado regularmente pela indústria do
entretenimento: rebeldes sem causa, hippies, darks, góticos etc.
O Filme
Adaptado do primeiro romance da trilogia best seller de Veronica Roth (Divergent,
Insurgent, Allegiant), Divergente nos apresenta uma Chicago 100 anos no
futuro, sobrevivente de uma guerra mundial, cuja sociedade é dividida por cinco
facções com características primárias de personalidade que definem o grupo: os
Candor (honestos), que prezam franqueza e ordem; os Abnegations (Altruístas),
conhecidos pela modéstia e ajuda caridosa aos “sem facções” (os excluídos que
vagam pelas ruas); os Erudites (Inteligentes) sérios estudiosos sempre em
roupas sóbrias; os Amity (Pacíficos) cultivam a terra e vivem em harmonia
sempre felizes; e os Dauntless (Audaciosos) bravos soldados que protegem a
cidade.
Beatrice (Shailene Woodley) é um membro da Abnegação ao lado do
seu irmão Caleb e seus pais. Se vestem com roupas simples e de cores monótonas.
Seu princípio de abnegação é tão acentuada que só estão autorizados a dar uma
olhada rápida no espelho a cada três meses, na hora de cortar o cabelo.
Basicamente não têm nenhum divertimento, mas Beatrice tem um
ímpeto selvagem que a faz admirar a facção dos Audaciosos.
Quando ela se submete a um teste de aptidão, necessária a todos
adolescentes com a finalidade de revelar a sua verdadeira natureza e determinar para qual facção se
encaixarão na vida adulta, o resultado é inconclusivo: ela é uma “Divergente” -
tem todas as qualidades de cada facção dentro dela, tornando-a potencialmente
independente e perigosa para um sistema onde pensar de forma autônoma é intolerável.
Na Cerimônia anual de escolha da facção na qual viverão o resto
das suas vidas, a qual os adolescentes se submetem pelos resultados dos testes,
Beatrice escolhe a facção dos Audaciosos. Explicitamente, a Cerimônia é uma representação
do mundo das escolhas adolescentes (profissão, faculdade etc.), tema que a
franquia Harry Potter também explorou
com o ritual da escolha das fraternidades no qual protagonistas eram submetidos.
Na facção aprenderá a lutar, atirar, saltar de trens, atirar
facas, controlar sua mente em uma série de angustiantes simulações, tudo ao
mesmo tempo em uma competição com outros iniciantes em um sistema de
classificação exigente onde os perdedores serão expulsos, tornando mais um
pária social na não-facção – mais representações do mundo competitivo escolar e
profissional que angustia os adolescentes espectadores.
Mas ela é uma Divergente e, junto com seu líder e par romântico
Four (Theo James), descobrirão uma conspiração para a erradicação de todos
aqueles que querem pensar de forma autônoma, fora dos parâmetros limitadores
das facções.
A juventude estendida
Divergente é tudo sobre identidade, sobre a busca de quem
você é e como se encaixará nos papéis sociais quando sair da adolescência e
entrar no mundo adulto.
No Pós-Guerra esse ritual de passagem da adolescência tornou-se um
problema cultural para o Capitalismo: a juventude deveria ser estendida por uma
simples questão macro-econômica – adiar a entrada do jovem no mercado de
trabalho, estender a adolescência e a sua dependência econômica para que o
sistema econômico tivesse tempo para absorvê-lo como sujeito economicamente
ativo.
Essa necessidade estrutural do Capitalismo, somente alongou o
período de ansiedades, dilemas, inconformismo e raiva da adolescência. A vida escolar foi ampliada
(segundo grau, universidade, pós-graduação, especializações etc.) por uma
suposta necessidade de preparação do jovem para empregos futuros que, na
verdade, se esvaziavam de sentido.
Mas, ao mesmo tempo, a indústria do entretenimento descobriu nesse
período uma mina de ouro: cada década encontramos produtos culturais, modismos
ou tendências que expressam essa perplexidade, raiva, angústia e depressão do
jovem.
Os rebeldes sem causa dos
anos 1950 representados por James Dean e Marlon Brando no cinema; hippies e a contracultura na década de
1960 onde da Direita à Esquerda, da Revolução Sexual aos Maoístas, tudo exalava
contestação e protesto; nos anos 1970, novamente, por todo o leque social, do Glam Rock e androginia dos jovens de
classe média ao Punk Rock das hordas
desempregadas das periferias urbanas.
Nos anos 80 o “Dark”
sintetizado em ícones como Robert Smith do The
Cure e Peter Murphy da banda Bauhaus.
Músicas cujas letras se inspiravam no universo gótico da literatura romântica
dos séculos XVIII e XIX. Replicantes melancólicos (como os do filme Blade Runner, 1982), amores platônicos e
a sensação de uma geração ter alcançado a adolescência e juventude no final da
festa (daí a nostalgia pós moderna pela década de 50 na moda, arquitetura e
filmografia).
Nos anos 90 o “Dark” é
reciclado pelo “Gótico” e a literatura romântica é substituída pelos contos de
terror. Jovens cuja aspiração é a de se tornar seres da noite, com longas capas
pretas e lentas de contato especiais que alteram a cor dos olhos.
Na primeira década do
século XXI temos a franquia de filmes Crepúsculo
e o imaginário musical "Emo" destilando essas tendências depressivas
em jovens e adolescentes.
Novos tradicionalistas?
E na década atual, a tendência representada em filmes como Divergente – o mix de sociedades
totalitárias distópicas (o futuro mundo adulto) com reality games (a juventude
artificialmente estendida pela crescente competitividade escolar, exames e
concursos).
O paradoxo de todas essas tendências da indústria do
entretenimento é que, aparentemente, alimentariam o inconformismo e a
desobediência civil. Hollywood anarquista? Claro que não. Esse negócio
lucrativo e inesgotável se baseia numa fórmula simples:
quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem.
O filme Divergente
explicita essa fantasia-clichê: o diretor Neil Burger e a escritora Veronica
Roth querem que os jovens aproveitem a vida, sejam audaciosos, pulem de trens
em movimento, façam esportes radicais e se revoltem contra o “sistema”. Mas
tudo com responsabilidade: abstinência sexual, amores românticos e platônicos e
fugir de drogas, seringas e de qualquer substância que altere seu estado de
consciência.
O “sistema” em Divergente são os escritórios cleans repletos de
gente engravatada: é o mundo careta onde os jovens estarão no futuro. A
“revolta” dos protagonistas é contra eles, os engravatados corruptos. Quanto a
coisa em si (o “sistema”), essa permanecerá. Afinal, é o futuro dos jovens –
após a revolta, um emprego onde, nos seus tempos livres, praticarão bungee
jumping e outras atividades cheias de adrenalina. Para na segunda-feira
retornar ao “sistema”.
Ficha Técnica |
Título: Divergente
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Diretor:
Neil Burger
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Roteiro:
Evan Daughtery baseado no romance de Veronica Roth
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Elenco: Shailene Woodley, Theo James, Kate Winslet
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Produção:
Summit Entertainment, Red Wagon
|
Distribuição:
Paris Films
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Ano: 2014
|
País: EUA
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