sexta-feira, janeiro 30, 2015

Conteudismo: a doença infantil da comunicação

As estruturas de comunicação de instituições públicas são lentas para reagir a ambientes midiáticos negativos. Mas no caso atual do Governo Federal o problema não é de “timing”, mas principalmente do paradigma que orienta suas estratégias: o Conteudismo, a doença infantil da Comunicação. Da vulgarização da utilização de filmes em sala de aula para ilustrar de maneira linear conteúdos curriculares à ordem da presidenta Dilma para que os ministros sejam “claros e precisos” e “comuniquem iniciativas e acertos” para enfrentar a “batalha da comunicação”, todos partilham de um mesmo equívoco: de que a questão da Comunicação se trata unicamente de transmissão de conteúdos. O cenário midiático atual não se identifica mais com uma “batalha da comunicação”, mas com verdadeiras “guerrilhas semióticas” – recursos formais de linguagem que visam muito mais corações do que mentes, muito mais construção de percepções do que transmissão de conteúdos. Guerrilhas semióticas têm a ver com batalhas de percepções e não de informações.

Quando o videocassete surgiu no Brasil nos anos 1980, foi recebido com euforia pelos professores. A imediata disponibilidade de filmes que até então somente era possível de serem assistidos no cinema, vislumbrou a imediata aplicação em sala de aula.

Assim como os espectadores comuns, os professores se fixaram no conteúdo temático dos filmes que poderia ser associado linearmente aos conteúdos programáticos de cada disciplina: aula sobre a independência do Brasil? Exiba Independência ou Morte com Tarcísio Meira para os alunos; algo sobre a Idade Média? O Nome da Rosa; Ditadura Militar? O filme O Que é Isso Companheiro? E ainda teve professor que para ilustrar o porquê da queda do Império Romano apresentou o controvertido filme Calígula – com o previsível escândalo do diretores, coordenadores e pais de alunos.


Dos filmes que ilustravam conteúdos curriculares passaram então aos vídeos pedagógicos com aulas preparadas com muitos infográficos e apresentadores carismáticos, isso sem falar dos vídeos motivacionais para professores nas oficinas pedagógicas...
Função ilustrativa dos vídeos na sala de aula

A fórmula rapidamente se desgastou. Por que? Porque o conteúdo se diluía na linguagem hollywoodiana ou ficcional voltada para efeitos de entretenimento e direcionamentos ideológicos. A Forma (linguagem) era muito mais fascinante do que o Conteúdo crítico que o professor porventura quisesse arrancar do filme assistido.

O Conteudismo


Podemos chamar essa visão ingênua da Comunicação como “conteudista”, herdeira direta da influência da Teoria da Informação de Claude Shannon (1916-2001): todo o problema da comunicação se resumiria a uma questão técnica de transmissão. Professores, jornalistas, locutores, editores etc., deveriam se esmerar em evitar “ruídos” (ambiguidades, falta de didatismo, proselitismo) para que a “mensagem” chegasse intacta ao receptor.

Visão ingênua, ainda mais nos tempos atuais de YouTube onde os vídeos já  não são recebidos com a mesma expectativa pelos alunos em sala de aula e a profusão de imagens e proliferação de memes na Internet revelaram a verdadeira natureza dos vídeos: são menos veículos de conteúdos do que de proliferação de percepções. Menos informativos e muito mais voltados para impressões e repercussão de sensações.

A presidenta Dilma, e certamente os estrategistas de comunicação do seu próprio partido, parecem partilhar dessa mesma ingenuidade do conteudismo. Isso ficou claro na recente reunião ministerial.

Rompendo o silêncio desde a sua posse, em uma reunião Dilma exaltou seus ministros a travarem uma “batalha da comunicação”:  “devemos enfrentar o desconhecimento, a desinformação sempre permanente. Não permitam que a falsa versão se crie. Reajam aos boatos, travem a batalha da comunicação”.

E como evitar todos esses malefícios da desinformação e dos boatos? “Sejam claros, precisos, façam-se entender. Não deixem dúvidas”, disse a presidenta para seus ministros.

Forma versus Conteúdo


Fica-se imaginando quando, como e onde os ministros devem ser “claros e precisos” nas suas declarações: nas entrevistas dadas a correspondentes da TV Globo em Brasília? Em um possível convite ao Programa do Jô? Em algum debate econômico no canal Globo News? Em algum “pinga fogo” no programa Canal Livre da Band? Em artigo redigido para a sessão “Tendências e Debates” do jornal Folha de São Paulo? Em uma hipotética entrevista “ping pong” para alguma revista semanal da grande imprensa? Em alguma declaração assertiva e impactante em algum telejornal da grande mídia?

A fala da presidenta Dilma parece partir do equívoco conteudista: se todo o problema da Comunicação governamental se baseia em um problema de transmissão (fazer a informação chegar de forma íntegra ao cidadão), então os ministros-emissores devem adotar determinada competência (clareza e precisão) para que a informação não se perca no caminho por obra de algum “ruído” - manipulação, mal entendidos, ambiguidade, boatos etc.
Cinema: plano manifesto e latente

Ora, embora na comunicação o chamado Conteúdo seja a parte mais manifesta (explícita porque audível, visível e legível), é a Forma, o componente mais latente da comunicação (mídia, edição, montagem, angulação, roteirização etc.), que em última instância determina a absorção do conteúdo ao submetê-lo a uma percepção, a uma Gestalt.

Por exemplo, se assistirmos a um filme qualquer no cinema e se, na saída, alguém perguntasse para nós sobre o enredo do que acabamos de assistir poderíamos facilmente fazer uma relato claro. A coisa muda se fossemos inquiridos a detalhar qual o tipo de plano de câmera dominante no filme; ou o tipo de tonalidade aplicada pela fotografia na narrativa fílmica.

Plano de câmera e qualidade da fotografia são aspectos latentes de Forma: passam batidos pela nossa atenção (a não ser que sejamos críticos ou especialistas da área), mas estão presentes de maneira subliminar, latentes, determinando a percepção e associações emocionais ou afetivas que teremos com o conteúdo da narrativa – prazer ou desprazer, adesão ou repulsa e assim por diante.

Segue-se que o conteúdo na Comunicação (pincipalmente audiovisual) é subordinada à Forma: a intencionalidade da construção formal pode neutralizar ou esvaziar informações presentes em um conteúdo – eventos, notícias, entrevistas, declarações, depoimentos podem simplesmente perder sua intencionalidade inicial (denúncia, desmentidos, esclarecimentos, respostas etc.).

Estudo de caso: a bomba semiótica da crise hídrica


Veja por exemplo a atual nacionalização midiática do problema da crise hídrica de São Paulo. No momento em que o prefeito Haddad assume o protagonismo na luta contra a crise da água em reunião com prefeitos de 38 cidades para cobrar do governador Alckmin um plano emergencial, a cobertura dada pela grande mídia adota a tradicional montagem metonímica: com a câmera fixada no rosto de Haddad, a locução em off fala de “multas” para consumidores e “racionalização de água”. Palavras duras para serem coladas à imagem do prefeito petista.

Bem diferente das matérias que aproximam o governador do Estado com a Sabesp: nesses momentos fala-se em eufemismos como “sobretaxas” e “políticas de redução de pressão”.

Ao mesmo tempo os telejornais, sem as tradicionais divisões dos blocos de notícias por elementos gráficos como os chamados “selos”, misturam a suposta crise energética nacional pela falta de chuvas com a crise no abastecimento de água no Rio, Minas Gerais e São Paulo. A essas duas pautas completamente diferentes é colada à imagem da presidenta Dilma, nacionalizando a crise hídrica originalmente restrita à incompetência gerencial da Sabesp e de Alckmin, no caso do Estado de São Paulo.

Haddad e Dilma assumem a intervenção na crise (como é esperado pelos papéis que ocupam como agentes públicos do Executivo), enquanto a grande mídia cria a percepção na opinião pública de que são os verdadeiros responsáveis pela crise por “agirem muito tarde”. Através dessas construções formais (aproximações metonímicas de pautas diversas), cria-se uma nova percepção, bem diferente daquilo que as declarações ou explicações de Haddad ou Dilma possam querer dizer.

Batalha da Comunicação versus Guerrilha Semiótica

"O Pagador de Promessas" de Dias Gomes: Padrão
Globo de Qualidade neutralizou temas de Esquerda

Indo além da visão conteudista, fica claro que a questão da Comunicação não é de “batalha”, mas de guerrilha semiótica – não se trata mais de ficarmos apenas no campo iluminista da informação, da clareza da argumentação ou da denúncia das mentiras – tudo isso se diluiu na Forma – linguagem metonímica, bombas semióticas etc.

Guerrilha semiótica se trata de batalha de percepções e não de informações.

Dilma e o PT são herdeiros da estratégia de Comunicação do Partido Comunista Brasileiro (PCB): a necessidade de “ocupar espaços” no contexto da emergência da moderna indústria cultural no País nos anos 1960-70. Artistas e dramaturgos engajados sob a diretriz do PCB como Dias Gomes e Oduvaldo Vianna Filho acreditavam que a ocupação de espaços na TV Globo nos anos 1970 era estratégica para a “hegemonia cultural de esquerda” – conteúdos de esquerda transmitidos para a emissora de maior audiência.

Mas essa geração não percebeu que a construção do chamado “Padrão Globo de Qualidade” (conjunto de técnicas formais que transformava qualquer conteúdo mais “crítico” em diluição e entretenimento) anulou esse projeto de produção cultural popular crítica.

Sabemos que as estrutura de comunicação de instituições públicas costumam ser lentas para reagir a cenários negativos no contínuo midiático. Mas percebe-se que a questão da Comunicação do Governo Federal não é de timing, mas de paradigma: enquanto acreditar na ilusão conteudista de que os ministros devem “falar mais” e “comunicar iniciativas e acertos” continuará sob o massacre das bombas semióticas da grande mídia.


         Até todos nós jogarmos a toalha – por que a grande mídia está interessada muito mais nos nossos corações do que nas mentes.


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