As estruturas de comunicação de instituições públicas são lentas
para reagir a ambientes midiáticos negativos. Mas no caso atual do Governo
Federal o problema não é de “timing”, mas principalmente do paradigma que orienta suas estratégias: o Conteudismo, a doença
infantil da Comunicação. Da vulgarização da utilização de filmes
em sala de aula para ilustrar de maneira linear conteúdos curriculares à ordem da presidenta Dilma
para que os ministros sejam “claros e precisos” e “comuniquem iniciativas e
acertos” para enfrentar a “batalha da comunicação”, todos partilham de um mesmo
equívoco: de que a questão da Comunicação se trata unicamente de transmissão de
conteúdos. O cenário midiático atual não se identifica mais com uma “batalha da
comunicação”, mas com verdadeiras “guerrilhas semióticas” – recursos formais de
linguagem que visam muito mais corações do que mentes, muito mais construção de
percepções do que transmissão de conteúdos. Guerrilhas semióticas têm a ver com batalhas de percepções e não de informações.
Quando o videocassete surgiu no Brasil nos anos
1980, foi recebido com euforia pelos professores. A imediata disponibilidade de
filmes que até então somente era possível de serem assistidos no cinema,
vislumbrou a imediata aplicação em sala de aula.
Assim como os espectadores comuns, os
professores se fixaram no conteúdo temático dos filmes que poderia ser
associado linearmente aos conteúdos programáticos de cada disciplina: aula
sobre a independência do Brasil? Exiba Independência
ou Morte com Tarcísio Meira para os alunos; algo sobre a Idade Média? O Nome da Rosa; Ditadura Militar? O
filme O Que é Isso Companheiro? E
ainda teve professor que para ilustrar o porquê da queda do Império Romano
apresentou o controvertido filme Calígula
– com o previsível escândalo do diretores, coordenadores e pais de alunos.
Dos filmes que ilustravam conteúdos curriculares
passaram então aos vídeos pedagógicos com aulas preparadas com muitos
infográficos e apresentadores carismáticos, isso sem falar dos vídeos
motivacionais para professores nas oficinas pedagógicas...
Função ilustrativa dos vídeos na sala de aula |
A fórmula rapidamente se desgastou. Por que?
Porque o conteúdo se diluía na linguagem hollywoodiana ou ficcional voltada
para efeitos de entretenimento e direcionamentos ideológicos. A Forma (linguagem) era muito mais
fascinante do que o Conteúdo crítico que o professor porventura quisesse arrancar do filme assistido.
O Conteudismo
Podemos chamar essa visão ingênua da Comunicação
como “conteudista”, herdeira direta da influência da Teoria da Informação de Claude Shannon (1916-2001): todo
o problema da comunicação se resumiria a uma questão técnica de transmissão.
Professores, jornalistas, locutores, editores etc., deveriam se esmerar em
evitar “ruídos” (ambiguidades, falta de didatismo, proselitismo) para que a
“mensagem” chegasse intacta ao receptor.
Visão ingênua, ainda mais nos tempos atuais de
YouTube onde os vídeos já não são
recebidos com a mesma expectativa pelos alunos em sala de aula e a profusão de
imagens e proliferação de memes na Internet revelaram a verdadeira natureza dos
vídeos: são menos veículos de conteúdos do que de proliferação de percepções.
Menos informativos e muito mais voltados para impressões e repercussão de
sensações.
A presidenta Dilma, e certamente os
estrategistas de comunicação do seu próprio partido, parecem partilhar dessa
mesma ingenuidade do conteudismo. Isso ficou claro na recente reunião
ministerial.
Rompendo o silêncio desde a sua posse, em uma
reunião Dilma exaltou seus ministros a travarem uma “batalha da
comunicação”: “devemos enfrentar o
desconhecimento, a desinformação sempre permanente. Não permitam que a falsa
versão se crie. Reajam aos boatos, travem a batalha da comunicação”.
E como evitar todos esses malefícios da
desinformação e dos boatos? “Sejam claros, precisos, façam-se entender. Não
deixem dúvidas”, disse a presidenta para seus ministros.
Forma versus Conteúdo
Fica-se imaginando quando, como e onde os
ministros devem ser “claros e precisos” nas suas declarações: nas entrevistas
dadas a correspondentes da TV Globo em Brasília? Em um possível convite ao
Programa do Jô? Em algum debate econômico no canal Globo News? Em algum “pinga
fogo” no programa Canal Livre da Band? Em artigo redigido para a sessão “Tendências
e Debates” do jornal Folha de São Paulo? Em uma hipotética entrevista “ping
pong” para alguma revista semanal da grande imprensa? Em alguma declaração
assertiva e impactante em algum telejornal da grande mídia?
A fala da presidenta Dilma parece partir do
equívoco conteudista: se todo o problema da Comunicação governamental se baseia
em um problema de transmissão (fazer a informação chegar de forma íntegra ao
cidadão), então os ministros-emissores devem adotar determinada competência
(clareza e precisão) para que a informação não se perca no caminho por obra de
algum “ruído” - manipulação, mal entendidos, ambiguidade, boatos etc.
Cinema: plano manifesto e latente |
Ora, embora na comunicação o chamado Conteúdo
seja a parte mais manifesta (explícita porque audível, visível e legível), é a
Forma, o componente mais latente da comunicação (mídia, edição, montagem,
angulação, roteirização etc.), que em última instância determina a absorção do
conteúdo ao submetê-lo a uma percepção, a uma Gestalt.
Por exemplo, se assistirmos a um filme qualquer
no cinema e se, na saída, alguém perguntasse para nós sobre o enredo do que
acabamos de assistir poderíamos facilmente fazer uma relato claro. A coisa muda
se fossemos inquiridos a detalhar qual o tipo de plano de câmera dominante no
filme; ou o tipo de tonalidade aplicada pela fotografia na narrativa fílmica.
Plano de câmera e qualidade da fotografia são
aspectos latentes de Forma: passam batidos pela nossa atenção (a não ser que
sejamos críticos ou especialistas da área), mas estão presentes de maneira
subliminar, latentes, determinando a percepção e associações emocionais ou
afetivas que teremos com o conteúdo da narrativa – prazer ou desprazer, adesão
ou repulsa e assim por diante.
Segue-se que o conteúdo na Comunicação
(pincipalmente audiovisual) é subordinada à Forma: a intencionalidade da
construção formal pode neutralizar ou esvaziar informações presentes em um
conteúdo – eventos, notícias, entrevistas, declarações, depoimentos podem
simplesmente perder sua intencionalidade inicial (denúncia, desmentidos,
esclarecimentos, respostas etc.).
Estudo de caso: a bomba semiótica da crise hídrica
Veja por exemplo a atual nacionalização midiática do problema da
crise hídrica de São Paulo. No momento em que o prefeito Haddad assume o
protagonismo na luta contra a crise da água em reunião com prefeitos de 38
cidades para cobrar do governador Alckmin um plano emergencial, a cobertura
dada pela grande mídia adota a tradicional montagem metonímica: com a câmera
fixada no rosto de Haddad, a locução em off fala de “multas” para consumidores
e “racionalização de água”. Palavras duras para serem coladas à imagem do
prefeito petista.
Bem diferente das matérias que aproximam o governador do Estado
com a Sabesp: nesses momentos fala-se em eufemismos como “sobretaxas” e
“políticas de redução de pressão”.
Ao mesmo tempo os telejornais, sem as tradicionais divisões dos
blocos de notícias por elementos gráficos como os chamados “selos”, misturam a
suposta crise energética nacional pela falta de chuvas com a crise no
abastecimento de água no Rio, Minas Gerais e São Paulo. A essas duas pautas
completamente diferentes é colada à imagem da presidenta Dilma, nacionalizando
a crise hídrica originalmente restrita à incompetência gerencial da Sabesp e de
Alckmin, no caso do Estado de São Paulo.
Haddad e Dilma assumem a intervenção na crise (como é esperado
pelos papéis que ocupam como agentes públicos do Executivo), enquanto a grande
mídia cria a percepção na opinião pública de que são os verdadeiros responsáveis
pela crise por “agirem muito tarde”. Através dessas construções formais
(aproximações metonímicas de pautas diversas), cria-se uma nova percepção, bem
diferente daquilo que as declarações ou explicações de Haddad ou Dilma possam
querer dizer.
Batalha da Comunicação versus Guerrilha Semiótica
"O Pagador de Promessas" de Dias Gomes: Padrão Globo de Qualidade neutralizou temas de Esquerda |
Indo além da visão conteudista, fica claro que a questão da
Comunicação não é de “batalha”, mas de guerrilha
semiótica – não se trata mais de ficarmos apenas no campo iluminista da
informação, da clareza da argumentação ou da denúncia das mentiras – tudo isso
se diluiu na Forma – linguagem metonímica, bombas semióticas etc.
Guerrilha semiótica se trata de batalha de percepções e não de
informações.
Dilma e o PT são herdeiros da estratégia de Comunicação do Partido
Comunista Brasileiro (PCB): a necessidade de “ocupar espaços” no contexto da
emergência da moderna indústria cultural no País nos anos 1960-70. Artistas e
dramaturgos engajados sob a diretriz do PCB como Dias Gomes e Oduvaldo Vianna
Filho acreditavam que a ocupação de espaços na TV Globo nos anos 1970 era
estratégica para a “hegemonia cultural de esquerda” – conteúdos de esquerda
transmitidos para a emissora de maior audiência.
Mas essa geração não percebeu que a construção do chamado “Padrão
Globo de Qualidade” (conjunto de técnicas formais que transformava qualquer
conteúdo mais “crítico” em diluição e entretenimento) anulou esse projeto de
produção cultural popular crítica.
Sabemos que as estrutura de comunicação de instituições públicas
costumam ser lentas para reagir a cenários negativos no contínuo midiático. Mas
percebe-se que a questão da Comunicação do Governo Federal não é de timing, mas
de paradigma: enquanto acreditar na ilusão conteudista de que os ministros
devem “falar mais” e “comunicar iniciativas e acertos” continuará sob o
massacre das bombas semióticas da grande mídia.
Até todos nós jogarmos a toalha – por que a grande mídia está
interessada muito mais nos nossos corações do que nas mentes.
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