Aos 21 anos o diretor Mike Cahill teve um estranho sonho e quando acordou sentiu a necessidade de escrever a seguinte frase: “Os olhos dos mortos retornam nos recém-nascidos”. Catorze anos depois tornou-se interessado no tema da biometria através íris. Junto com a lembrança da misteriosa frase do passado, Cahill escreveu o argumento do roteiro do filme “I Origins” (2014) – um biólogo molecular obcecado pelo design complexo do olho humano quer terminar de vez o debate entre criacionistas e evolucionistas, conseguindo preencher definitivamente a lacuna do mapeamento evolutivo do órgão humano, provando a inexistência de Deus. Sem ser um filme New Age disfarçado, Cahill opõe os argumentos dos dois lados, mostrando que Ciência e Espiritualidade podem andar juntas, embora em planos separados da existência. E o que as uniria seria o acaso, representado por uma misteriosa garota com a íris multicolorida, a "Sophia" da mitologia gnóstica. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.
De todos os
órgãos do corpo humano, o olho é aquele que ao longo da História foi mais
investido de significados poéticos, religiosos, artísticos e científicos. “O
olho é a janela da alma”, dizem. Por trás desse provérbio está uma constatação
científica: o olho é o único órgão que não muda a vida inteira, mantendo a
mesma forma e padrão.
Desde os tempos
em que Mike Cahill (Another Earth e Boxers and Ballerinas) estagiava na National Geographic e tomou contato com a
história da foto da menina afegã que somente foi reconhecida 17 anos depois
através da biometria através da íris, o tema passou a interessar o diretor. E
principalmente por uma frase que Cahill escreveu, segundo disse o diretor em
entrevistas, após acordar de um sonho: “os olhos dos mortos retornam nos
recém-nascidos” – Film Interview: “I Origins”
Director Mike Cahill Talks Post Credit Ramifications, Follow Ups and Religious
Philosophy.
Cahill está no
terreno de um subgênero de filmes de sci fi chamado “psicodramas alt.sci-fi”,
isto é, filmes que utilizam argumentos sci fi para filtrar temas bem humanos
com baixos orçamentos e nenhum efeito especial.
I Origins é preciso na
utilização de dados científicos e tecnológicos reais: o programa nacional de
biometria na Índia, ratos daltônicos com a visão modificada para enxergarem
colorido, vermes sem olhos que são alterados geneticamente para desenvolverem a
célula que dará origem ao design de um olho primitivo etc.
E é sobre esse
pano de fundo tecnocientífico contemporâneo que Cahill vai traçar as
perplexidades de um cientista absolutamente ateu e cético onde, aos poucos, vai
percebendo que a sua fixação em pesquisar a evolução do design da íris humana o
conduz a um campo onde Ciência e Misticismo se confundem.
O Filme
Um biólogo molecular particularmente alérgico a temas religiosos ou espirituais, Ian Gray, apaixona-se por uma misteriosa garota chamada Sofia em um festa de Halloween. Ironicamente, Sofia é uma garota de gostos místicos que dá início a uma série de acontecimentos que poderá, ou não, abalar as crenças racionais e científicas do protagonista.
Ian é
especializado na evolução do olho humano. Mais do que um objeto científico, é
uma obsessão pessoal: ao longo da vida fotografou centenas de olhos com o
propósito de provar que a complexidade do design do órgão nada tem a ver com
algum criador inteligente como Deus. Se ele encontrar o gene PAX6, então
acabará com toda a discussão entre criacionistas e evolucionistas – conseguirá
preencher a lacuna da história do órgão, conseguindo mapear a lógica do
progresso da evolução. Para Ian, dessa forma, toda a discussão entre Deus e a
Ciência se encerraria em favor da Razão.
Claro que pelo título do filme,
pôster promocional e por se tratar de uma parte do corpo humano tão cercada de
conotações poéticas e místicas, o espectador desconfiará que a narrativa
penderá para o lado do espiritualismo. Porém, a narrativa de Mike Cahill não
permite que o filme se transforme em um New Age disfarçado. Pelo contrário, o
filme não usa palavras religiosas e a palavra “reencarnação” não é citada uma vez. Somente uma vez é feita uma alusão à palavra “alma”, o que quase
faz Ian pular no pescoço da sua esposa e companheira de pesquisas
laboratoriais.
Através de uma narrativa de sci
fi que não conta com momentos de ação nem espetáculo, mas tem como principais
trunfos o roteiro bem amarrado com frases sensacionais, sensualidade e
informações científicas, Cahill consegue mostrar como a Ciência e a
espiritualidade podem andar juntas.
Como, por exemplo, na sequência
em que Sofia desafia o sentido das experiências com os vermes cegos. Ian
manipula geneticamente os vermes para criar um olho primitivos neles para,
então, mapear a evolução do órgão. Os vermes têm apenas dois sentidos: olfato e
tato. A noção de luz é completamente desconhecida para eles. Mas a luz existe e
é real.
Sophia e “O Viajante”
Explicitamente a narrativa do
filme I Origins se estrutura em torno
de dois personagens marcantes nos filmes gnósticos: o mito de Sophia
representado pela garota misteriosa que vai transformar a vida do protagonista.
E o próprio protagonista que reúne as características daquele que denominamos
como “O Viajante” – em postagens anteriores discutimos como a subjetividade
contemporânea expressa pelos filmes gnósticos representa os protagonistas em
torno dos arquétipos do Viajante, do Detetive e do Estrangeiro – sobre isso clique
aqui.
Um dos mais importantes aeons da mitologia gnóstica, Sophia
corresponde a um importante arquétipo da personalidade humana: o do
conhecimento, não tomado no sentido racional. Mas um conhecimento que instiga no protagonista a
necessidade pela busca da gnose, isto é, fazê-lo sair do estado de alienação
para que se re-conecte ao conhecimento eterno, a uma totalidade perdida que
teria a ver com a própria origem humana.
Ian Gray é um cientista bem sucedido: alcança seus propósitos, consegue encontrar o gene que supostamente é a origem do complexo design do olho, publica livros e é reconhecido midiaticamente no debate entre criacionistas X evolucionistas. O biólogo evolucionista e militante do ateísmo Richard Dawkins teria em Ian Gray o seu verdadeiro campeão do Darwinismo.
Porém, falta algo... a íris
multicolorida dos olhos de Sofia, o mistério em torno da sua história e a
enigmática sensualidade despertam nele sentimentos contraditórios: o gosto pelo
misticismo de Sofia o irrita. Ian a chama de infantil, mas também sente-se
inexplicavelmente atraído por ela. Somente a viagem para a Índia (país que
promove o primeiro programa nacional de biometria por reconhecimento da íris e,
ao mesmo tempo, país símbolo da religiosidade e misticismo) o fará sair da sua
zona de conforto, colocando em xeque os paradigmas da ciência.
E o mais importante: paradigmas
que serão quebrados através dos próprios métodos científicos. A virtude do
filme I Origins é a de não fazer
apologias para nenhum dos lados. É como se Mike Cahill quisesse dizer o tempo
inteiro: Tudo bem! Ciência e Espiritualidade podem ser amigas. Mas não estão no
mesmo plano: a Ciência é o método científico sobre coisas que podemos testar no
mundo físico. Enquanto a Espiritualidade está além da física, é metafísica.
Mas apesar disso, sem saberem,
Ciência e Espiritualidade estão continuamente interagindo. É como a metáfora do
verme proposta pela garota Sofia. Aquele verme pode sentir o cheiro de uma boa
maçã que está apodrecendo. Mas ele não sabe que o seu sentido do olfato está
interagindo com um fenômeno que só possível acontecer pela ação da luz em um
plano que ignora completamente pela
limitação dos seus sentidos.
Da mesma forma seríamos nós: percebemos fenômenos que operam num plano
que não conseguimos influenciar, apenas interagir.
Ficha Técnica |
Título: I
Origins
|
Diretor:
Mike Cahill
|
Roteiro:
Mike Cahill
|
Elenco: Michael Pitt, Steven Yeun, Astrid Bergès-Frisbey, Brit Marling
|
Produção:
Verosimilitude, WeWork Studios
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Distribuição:
Fox Searchlight Pictures
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Ano: 2014
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País: EUA
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