Feios, sujos, malvados e viciados retornam à Cracolândia,
levantando uma mini favela em plena rua do Centro. A grande mídia esfrega as
mãos para denunciar uma suposto fracasso do programa da Prefeitura de São Paulo
“De Braços Abertos”. Assim como os black blocs (úteis na oportuna criação de imagens
midiáticas de caos no País em ano eleitoral) foram glamurizados através de Dani
Pantera e Emma,
agora o “fracasso” na Cracolândia é midiatizado pela personagem da “Cinderela às avessas”, a
ex-modelo Loemy que se tornou viciada em crack e vaga pelas ruas do Centro. Matéria da "Veja
São Paulo" a transforma em mais uma bomba semiótica, assim como foi a “musa”
black bloc Dani Pantera: a bomba da “good-bad girl”. A matéria se mostra menos uma reportagem e
muito mais um sintoma do DNA dos cursos internos de jornalismo da Editora
Abril: a frenética busca por personagens que confirmem narrativas que o próprio
Jornalismo já tem de si mesmo.
- Olá, querida - gritou Joe Louis a sua mulher ao vê-la o esperando no aeroporto de Los Angeles. Ela sorriu enquanto aproximava-se e quando estava a ponto de ficar na ponta dos pés para lhe dar um beijo, deteve-se de pronto.
- Joe, onde está sua gravata? - perguntou.
- Ai, querida - ele desculpou-se encolhendo os ombros - estive fora toda a noite em Nova York e não tive tempo... (...)
Houve uma
época em que jornalistas buscavam personagens (como o protagonista desse
diálogo, o boxeador Joe Louis) para mostrar o lado humano de figuras que o
tradicional texto jornalístico não permitia. Nesse texto da revista Esquire em 1962, Gay Talese (um dos
precursores do chamado Novo Jornalismo –
gênero jornalístico do início dos anos 60 nos EUA que misturava narrativa
jornalística com estilo literário) procurava mostrar o lado humano de um
campeão de boxe capaz de expressar fragilidade ao encolher os ombros em uma
pequena discussão com sua mulher no aeroporto.
Hoje também
repórteres vivem em busca de personagens. Mas não para mostrar a humanidade por
trás das notícias. Ao contrário, os personagens agora servem somente para confirmar
a pauta recebida pelas chefias de redação, discursos moralizantes e até
preconceitos – se transformam em bombas
semióticas.
Uma
morte é tragédia, milhões é mera estatística
Repórteres buscam cada vez menos notícias e muito mais personagens |
Buscar o
personagem típico, o excêntrico, o insólito ou o herói trágico sempre foi uma
obsessão do Jornalismo.
Mas agora,
os personagens se converteram em bombas semióticas. Desde as manifestações de
rua do ano passado, ansiosamente repórteres procuram tipos exemplares que
didaticamente ilustrariam a editoria “O Brasil é uma merda”: a família retirada
do fusca incendiando no meio das manifestações em São Paulo, o desespero do
jovem que chegou atrasado à prova do Enem, mulheres loiras de classe média
resgatando beagles de um laboratório em São Roque/SP – sobre esses casos clique
aqui. Para depois as revistas Veja
e Época elegerem as musas dos black
blocs: Dani Pantera e Emma.
A
bomba semiótica da good-bad girl
Essas duas
personagens femininas inauguraram um tipo de bomba semiótica especial, que
agora a matéria de capa da Veja São
Paulo reeditou: a good-bad
girl – uma mulher que combina beleza e sensualidade com loucura e
desajustamento, mas que no final descobrimos que é uma boa pessoa e que
poderíamos até leva-la para casa para apresentarmos à nossa mãe – conceito
criado pelo pesquisador alemão Dieter Prokop para definir a atual construção
dos estereótipos femininos no cinema hollywoodiano – sobre isso clique
aqui.
Nesse
momento, a grande mídia tenta histericamente provar que o retorno das barracas
de lona e de dezenas de viciados em crack circulando como zumbis na chamada
região da Cracolândia no Centro de São Paulo é a prova do “fracasso das
políticas públicas da cidade”. Mas o alvo mesmo é o projeto da prefeitura
chamado “De Braços Abertos”.
E como é
recorrente, a cada notícia é necessário encontrar um “retrato triste e trágico”
– e na edição da Veja São Paulo entre em ação a good-bad girl que, de quebra, ainda glamuriza a tragédia,
transformando um tema intragável (pobres feios, sujos e malvados se drogando)
para o leitor de classe média em notícia mais palatável, o suficiente para
fazer a tradicional avaliação negativa de qualquer coisa que o prefeito Haddad
faça – chegaram até a dizer que as ciclo-faixas pintadas de vermelho fazia
parte de uma sinistra estratégia subliminar de Haddad para todos votarem no
PT... – sobre isso clique
aqui.
Mas como veremos, a matéria
de capa da beleza da ex-modelo cujos traços ainda resistem à droga e miséria
das ruas é curiosa porque apresenta um ato falho que deixa transparecer uma
visão de jornalismo tautista (tautológica + autista – sobre esse conceito clique
aqui) que é ensinada desde os cursos internos de Jornalismo da Editora
Abril, como podemos verificar na edição de 2014 da revista Plug, publicação feita pelos alunos do curso da editora.
A construção de uma bomba
semiótica
A construção linguística da
bomba semiótica, na reportagem “Ex-modelo Loemy Marques luta contra o crack”,
inicia com um clássico do etnocentrismo para ganhar o leitor classe média paulistana,
público-alvo da publicação: “uma loira magra, de 1,79 metro de altura, no
entanto, não consegue passar desapercebida. Alguns traços de beleza ainda
resistem”. Em meio aos feios, sujos e malvados, surge uma espécie de anjo
caído. Ela poderia ser você (quer dizer, o leitor da revista) – temos aqui o
início de uma construção semiótica: o que não passa desapercebido deixa de ser
uma triste realidade humana coletiva, para ser um signo estético que confirme
um script midiático já pré-definido.
Fotojornalismo ou editorial de moda de uma manequim "heroin hero" ? |
Para reforçar essa beleza
indômita de um anjo decaído a reportagem ainda descreve como ela é agredida no
meio da entrevista com uma “paulada na barriga” por um dos
feios-sujos-e-malvados que circulam ao redor.
Todo o poder de persuasão da
bomba semiótica da good-bad girl vem
de como a matéria consegue isolar o personagem do contexto social.
Loemy é do Mato Grosso e foi
descoberta por um caça talentos de modelos que se entusiasmou com a seu rosto
“estilo anos 80”. Desembarcou em São Paulo em 2012 para ser encaminhada às
principais agências de manequins. Mas “era chamada, começava o trabalho e no
outro dia era demitida”. Em um meio profissional marcado por festas e drogas, a
matéria dá destaque a avaliação dos produtores que a descobriram: “faltou foco
e disciplina” para a garota.
Culpa é mais importante do
que contexto e processos
Contexto e processos se
evaporam na interiorização da culpa pelo fracasso. Loemy está na Cracolândia
porque é uma loser. A personagem
Loemy é o testemunho do terror paranoico da consciência meritocrática das
classes média: a queda para a pobreza, onde lá estão os feios-sujos-e-malvados.
O meio da Moda e das “manecas”
(sabidamente um meio, por assim dizer, moedor de carne de gente, explorador tal
e qual as confecções que empregam mão de obra semi-escrava de bolivianos alí
perto da Cracolândia, no bairro do Bom Retiro) é evaporado: o personagem tem
que ser em si mesmo a notícia – o retrato acabado do fracasso do poder público
e da derrota individual de alguém que não teve “foco e disciplina”.
Mas como toda personagem good bad girl, deve demonstrar
disposição para o arrependimento e a vontade de dar a volta por cima, assim
como reza o evangelho meritocrático das classes médias para as quais se voltam
as publicações da Editora Abril: “Preciso de ajuda”, apela Loemy. “Quero voltar
a estudar e ser engenheira”.
Revista "Plug": o DNA tautista do jornalismo da Editora Abril |
O DNA tautista da Abril
Outro importante detalhe da
matéria da Veja São Paulo também
revela a própria natureza do atual Jornalismo: o tautismo – ao invés de procurar representar qualquer realidade
externa a ela, a prática jornalística fecha-se em si mesma numa espécie de
auto-referência sem fim.
A matéria fala de “sessão de
fotos” que a reportagem fez com Loemy. Sintomática definição para o
“fotojornalismo” da matéria: as fotos que ilustram a reportagem se assemelham
muito mais a um editorial sobre uma heroin
hero do mundo da moda do que documentos jornalísticos brutos e espontâneos
de uma triste realidade humana.
Também é sintomática porque
revela o próprio DNA do curso de jornalismo da Editora Abril, como mostra a
apresentação tautista da revista Plug
(espécie de trabalho de conclusão do curso). O tema da revista era sobre a
chamada geração millennial (jovens
nascidos entre 1980-2000) onde os alunos tiveram que criar pautas e projetos
jornalísticos sobre o tema para as revistas da editora: “A PLUG desse ano é um
retrato deles mesmos [os aspirantes a jornalistas do curso] (...) Os textos
carregam um tom autoral: quem escreve é como se fosse um personagem da história
que está contando”.
Loemy foi, portanto,
explorada pela segunda vez: depois das festas, drogas e sucessivas demissões na
carreira incerta das manequins, agora se oferece como “evento-encenação” (para
usar um conceito do semiólogo italiano Umberto Eco) para posar em um book
perverso sobre uma “cinderela-heroin-hero”decadente e arrependida.
A matéria da Veja São Paulo mostra muito menos a
tragédia da vida desperdiçada de uma jovem, e muito mais a miséria do
jornalismo atual onde a busca obsessiva por personagens serve apenas para reforçar narrativas que a própria
imprensa já tem sobre si mesma.
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