Conhecida como "Cidade Luz", Paris também é escura e misteriosa: sob a cidade se estende uma vastíssima rede de mais de 300 quilômetros de túneis e labirintos. São as chamadas “catacumbas de Paris” ou “cidade dos mortos” onde jaz os restos de seis milhões de pessoas, além de vestígios de cultos celtas, franco-maçons, gravuras e sinais ritualísticos sagrados. Nessa atmosfera claustrofóbica e sombria se movem os arqueólogos urbanos do filme “O Reflexo do Medo” (As Above, So Below, 2014), misturando terror com thriller psicológico no estilo falso documentário ou “found footage”. Como informa o título original, a narrativa explora o princípio alquímico da Correspondência, repleto de referencias ao chamado esoterismo cristão presente na obra de Dante Alighieri “A Divina Comédia”, na qual o diretor John Erick Dowdle se inspirou para escrever o roteiro.
Há duas
cidades de Paris: a da superfície, agitada, viva, móvel e cheia de cores e
contrastes; e a outra subterrânea, imóvel, quieta e repleta de mistérios que
desafiam o tempo. Fala-se em “cidade dos mortos”, mas também são conhecidas
como “catacumbas de Paris”, uma rede vastíssima de caminhos com mais de 300
quilômetros de extensão onde apenas uma pequena parte é aberta à visitação
pública.
São galerias labirínticas,
por vezes com três níveis de caminhos, que se estende horizontalmente, mas em
certas partes mergulha mais profundo no subsolo o que faz até hoje ser uma
mistério inexplorado por razões técnicas. Muitos aventureiros desapareceram
nessas galerias labirínticas, razão pela qual a exploração é proibida por lei.
De construção anterior ao
século XVII, desde então são feitas sucessivas cartografias e, mesmo assim,
continuam mal conhecidas. A maioria desses subterrâneos foram transformados em
ossário municipal com a transferência
para aí de seis milhões de parisienses, retirados dos cemitérios
superlotados por razões de saúde pública.
Vítimas do regime do Terror
pós Revolução Francesa todos atirados e esquecidos na catacumbas necrotéricas,
inclusive famosos como Danton, Robespierre e Marat.
Suas galerias estão ligadas
a vestígios de cultos celtas, franco-maçons com registros e inscrições de
passagem humana desde há mais de dois mil anos: esculturas, gravuras e sinais
ritualísticos e sagrados.
Pois essa Paris, que é o
oposto da modernista imagem que temos da “Cidade Luz”, é o tema do filme O Reflexo do Medo (So Above, As Below, 2014). O título em português não faz jus ao
filme, parecendo pelo título mais um filme de terror sobre indefesos jovens que
são massacrados em série por alguma força diabólica. Ou seja, seria mais do
mesmo.
Pelo contrário. Embora seja
mais uma produção ao estilo falso documentário (mockmentary), o filme não só é
ambientado nessa Paris subterrânea como a associa seus mistérios com a Alquimia, Hermetismo e o Inferno tal como
descrito por Dante Alighieri.
Porém, paga seu tributo às
convenções do gênero terror: acaba interpretando de forma moralista alguns
princípios da alquimia como a corrosão e retificação, associando-os à punição
por pecados no melhor estilo do Inferno católico.
O Filme
A narrativa acompanha
Scarlett, uma arqueóloga que tenta dar continuidade ao trabalho da vida de seu
pai que acabou sendo considerado louco, após seu suicídio por enforcamento.
Scarlett está à procura da Pedra Filosofal e da lendária tumba do alquimista
Nicolas Flamel, que acredita que esteja nas catacumbas de Paris. Todas as
imagens são captadas com uma câmera na mão de um cinegrafista chamado Benji, um
norte-americano que está fazendo um documentário sobre a arqueóloga.
Scarlett monta uma expedição
formada por um velho amigo chamado George (especializado em mitologia,
teologia, linguista e tradutor talentoso) e três exploradores urbanos que atuam
como guias para as profundezas da cidade: o líder Papillon, o montanhista Zed e
uma garota gótica chamada Souxie.
Se por si mesmo as galerias
das catacumbas já são assustadoras, a câmera em grande angular enquadrando os
apertados espaços de angustiante escuridão cria uma constante atmosfera
claustrofóbica: paredes forradas com caveiras, tetos gotejantes e osso espalhados
por toda parte só fazem aumentar o clima de terror.
Mas aos poucos a expedição
arqueológica começa a dar estranhamente errado: o grupo começa a perceber que
cada vez mais estão descendo, por caminhos que não constam no mapa. Na medida
em que descem, percebem que estranhamente o design das galerias se repetem,
porém de forma invertida: todos os detalhes são exatamente opostos como fossem
espelhados.
O Princípio da Correspondência
Perdidos, nada mais resta a
fazer do que seguir em frente. “Temos que seguir em frente” é o comando mais
repetido ao longo do filme. Esse é o aspecto
mais importante, cujo título original do filme faz ligar ao mais importante princípio
da Alquimia: o Princípio da Correspondência de Hermes Trimegisto – “As Above,
So Below”, o que está acima corresponde ao que está abaixo, e o que está abaixo
corresponde ao que está em cima, ilustrado na imagem ao lado e que aparece
também em uma cena do filme gravado em uma das paredes.
Com exceção dos
pesquisadores Scarlett e George, o trio de guias está motivado pela busca dos
supostos tesouros de Flamel, principalmente a pedra filosofal que supostamente
transformaria tudo em ouro. Porém, o célebre alquimista dos séculos XIV e XV
buscou a fabricação do ouro filosófico, que expressava as transformações menos
físicas e mais de iluminação interior.
Essa ambição que faz quase
todos imaginar riquezas materiais irá conduzir a todos aos portais do próprio
Inferno. “Deixai, vós que entrais, toda a esperança”, leem a certa altura uma
inscrição em uma parede, associando à entrada do Inferno como descrito na
Divina Comédia de Dante Alighieri.
Aos poucos percebemos que
cada um carrega sentimentos de culpa íntimos – Scarlett de não ter atendido o
telefonema do pai um pouco antes do seu suicídio, George de não ter ajudado o
seu irmão morto em uma caverna e assim por diante.
Alquimia e esoterismo cristão
O filme acertadamente
associa a referencia da obra de Dante com uma outra inscrição:
“V.I.T.R.I.O.L.”, termo arcaico para o ácido sulfúrico, mas também um lema
acrônimo da Alquimia: Visita Interiora
Terrae Rectificando Invenfies Occultum Lapidem – “Visite a parte interior da
Terra; por retificação encontrarás a pedra escondida”.
A alquimia é a ciência da
transmutação. Toda Alquimia seria um complexo
conjunto de práticas experimentais e místicas que simbolizariam os estados de
transmutação da consciência: diferente de muitas linhas neo-platônicas ou
cabalistas, a matéria não pode ser simplesmente transcendida ou desprezada. Ela
deve ser redimida, transmutada por meio do caos e da morte.
O ácido sulfúrico é aquilo que literalmente
corrói as coisas, revelando o que está por baixo.
Ao vermos em outra sequência um cavaleiro
templário morto em um pedestal em uma das câmaras das catacumbas, percebemos a
coerência da mitologia explorada pelo filme: o esoterismo cristão ou “tradição
Joanita”, do qual fizeram parte os templários com secretos estudos em
Astrologia, Alquimia, Magnetismo e ciências herméticas. A alquimia cristã não
tratava de produzir ouro sólido, mas sim fazer que o homem pudesse morrer para
se transmutar em uma imitação de Cristo.
Nascido em 1265, Dante Alighieri penetrou nesse mundo iniciático tornando-se importante guardião do Esoterismo Cristão em meio à perseguição da Igreja. Dante legou esse esoterismo templário na sua obra A Divina Comédia.
Assim como os personagens do filme Reflexo do Medo, Dante realiza uma
viagem espiritual em que conhece o Inferno, o Purgatório e o Céu onde busca a
retificação de todos os seus pecados para poder conhecer os Céus. Como no
Princípio da Correspondência, busca os Céus descendo cada vez mais até chegar
ao Centro da Terra para subir em direção à saída – o filme segue o mesmo
princípio paradoxal.
Porém, em Dante a retificação é alquímica,
num processo de corrosão que alcança a transmutação – a iluminação interior.
Para obedecer as convenções do gênero, Reflexo do Medo acaba transformando a
retificação em punição no sentido tradicional dos filmes de terror: a punição
daqueles que cometem pecados – Papillon, arrogante e hedonista é enterrado de
ponta cabeça; a garota gótica e também hedonista morta de forma
violenta e assim por diante.
Essa talvez seja a única concessão de
conteúdo. Narrativamente fará o espectador lembrar da trilogia Indiana Jones, o filme espanhol de
terror REC (2007) e até Os Goonies (1985).
Ficha Técnica |
Título: Reflexo
do Medo (As Above, So Below)
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Diretor:
John Erick Dowdle
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Roteiro:
Drew Dowdle, John Erick Dowdle
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Elenco: Perdita
Weeks, Ben Feldman, Edwin Hodge, François Civil, Marion Lambert
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Produção:
Legendary Pictures
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Distribuição:
Universal Pictures
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Ano:
2014
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País: EUA
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