Enquanto a Grande São Paulo vive a contagem regressiva para o
fim do volume morto na crise de abastecimento de água do sistema Cantareira, sincronicamente
estreia nos cinemas “Interestelar” cujo plot se inicia com o planeta Terra
devastado por tempestades de areia e escassez de recursos naturais. Hollywood e
os telejornais da grande mídia se tornaram uma verdadeira caixa de ressonância:
enquanto o jornalismo diariamente apresenta sua natural presunção pela
catástrofe ao querer “globalizar” a crise de água da Grande São Paulo como
exemplo de uma suposta crise climática mundial, nos últimos 20 anos Hollywood
aumenta o número de produções cujo tema da escassez e luta pelo controle da
água é a chave central do roteiro. Depois de catorze anos da chamada “Guerra da
Água” na Bolívia, São Paulo seria o “Beta Test” de uma agenda mundial de
mercantilização da água? Esse sincronismo faria parte de uma engenharia de
opinião pública cujo mito da escassez de água seria a principal bomba
semiótica?
Em meio à
verdadeira contagem regressiva diária para o fim do chamado volume morto do
sistema Cantareira de abastecimento de água da Grande São Paulo, o apresentador
do SPTV da Globo, César Tralli, fala em tom dramático: “temos que economizar
água, gente. Está acabando a água em todo o planeta!”.
Sincronicamente,
estreia nos cinemas o filme Interestelar
de Christopher Nolan, cuja narrativa se situa em um futuro próximo onde as
fontes naturais do planeta Terra se tornam escassas e os ecossistemas são
varridos por tempestades de areia, ameaçando a sobrevivência da espécie humana.
A diária presunção da catástrofe nos telejornais |
Telejornais
e Hollywood fazem nos últimos anos uma evidente caixa de ressonância: ficção e
realidade, cinema e jornalismo parecem se replicar para reforçar uma espécie de
agenda global de confirmação de que o planeta segue uma marcha histórica para a
catástrofe: Cada “anomalia”
atmosférica (um tornado que se divide em dois, recorde de temperaturas no verão
ou de nevascas no inverno, etc.) é apressadamente associada à pauta do
Aquecimento Global.
Há uma ansiedade nervosa por
conexões nos telejornais. Notícias sazonais de queimadas em estações secas
desde a Califórnia (principalmente quando se aproximam de mansões de
celebridades) até o Planalto Central brasileiro seria a confirmação desse
script. A afirmação, no mínimo curiosa, do jornalista César Tralli em pretender
“globalizar” a crise de abastecimento hídrico na Grande São Paulo confirma esse
cacoete.
A recorrência da escassez da água em Hollywood
Se acompanharmos a produção
cinematográfica hollywoodiana dos últimos 20 anos, veremos que o tema da crise
de água potável no planeta cada vez mais atravessa os mais variados gêneros, da
ficção científica a animações e thrillers – a escassez e a guerra pelo controle
da água são a chave central do roteiro: Waterworld
(1995, o mundo inundado por água salgada), Christie Malry's Own Double
Entry (2000), Sabaku no kaizoku! Captain
Kuppa (2001), The Tuxedo (2002), Batman Begins (2005), Waterborne (2005), V for Vendetta (2006), Quantum of
Solace (2008), The Book of Eli (2010) e Young Ones (2014, com a emblemática cena de uma dona de
casa lavando a louça com areia...).
A recorrência da escassez da água: "Young Ones", "O Livro de Eli" e "Interestelar". |
Isso sem falar uma série de
curtas independentes como A Future
Without Water (2014) de Jason Wishnow e documentários como A World Whitout Water (2006), Fire Water (2011), Flow: for Love of Water (2008) e Blue Gold (2009).
E agora, Interestelar de Nolan sugere que a única
solução para a sobrevivência da humanidade em um planeta cujas fontes naturais
estão escassas é encontrar algum buraco de minhoca no tempo-espaço e recomeçar
tudo de novo em algum outro planeta do outro lado do universo. Catástrofes
astronômicas, pestes, vírus, invasão alienígena, cometas etc., agora são
substituídos pela escassez da água e alterações climáticas.
Agenda setting e product placement no cinema
Retornando à crise de
abastecimento de água da Grade São Paulo, o que chama a atenção dos
especialistas em sistemas de gestão de recursos hídricos é a forma proposital
como o governo do Estado de São Paulo sistematicamente ignorou estudos
especializados cuidadosos e caríssimos sobre soluções, prazos e recursos - sobre isso clique aqui. Todos
os planos de contingência e alertas foram tão sistematicamente ignorados nessa
última década que acaba suscitando a hipótese conspiratória de uma ação
proposital do poder público: o governo
estadual poderia deliberadamente ter levado ao esgotamento sistema de
abastecimento hídrico? Se sim, por que?
Filme "Obrigado por Fumar": como se faz uma engenharia de opinião pública |
Teoria conspiratória? Talvez
um bom argumento para essa hipótese possa ser encontrada no próprio cinema, em
filmes como Obrigado por Fumar (Thank You for Smoking, 2005) e a
produção do mesmo diretor de Super Size
Me, Morgan Spurlock, o documentário The Greatest Movie Ever Sold (2010).
No primeiro filme é mostrado
de forma didática como se faz uma engenharia de opinião pública: através de uma
tática de agenda setting, mostra como o tema do cigarro, plantado em roteiros
de filmes de Hollywood, torna-se um tema relevante para a opinião pública,
dominando a pauta da sociedade.
E no documentário de
Spurlock, como os roteiros das produções hollywoodianas são criados, alterados
ou adaptados para o chamado “product placement”- inserção subliminar de
produtos e marcas nos filmes em linhas de diálogo, sequências ou cenários.
Partindo dessa metalinguagem
que o cinema faz consigo mesmo, dá o que pensar a recorrência cada vez maior
nessa última década de filmes com plots
baseados em escassez de água e de recursos naturais. Se recorrência significa
intencionalidade, podemos estar diante de uma tática de engenharia de opinião
pública para tornar aceitável a percepção que, de fato, a água potável está se
esgotando no planeta.
O mito da escassez da água
E por que a escassez de água
é um mito por ser reforçado numa estratégia de agenda setting? O mundo não está
ficando sem água doce, como apontam estudos como, por exemplo, o UNDP Human Development Report de 2006.
Desmascarando o mito de que a crise é o
resultado da escassez, esse relatório defende que a pobreza e a desigualdade de
poder estão no centro do problema.
Há muita água doce no
planeta. A questão é que, pelo ciclo da água, ela simplesmente se move de um
lugar para o outro. A água nunca é perdida. O que se perde é dinheiro e energia
necessários para transporte, purificação e distribuição de água.
A recorrência do tema da
escassez na ficção cinematográfica e telejornais tenta transformar a água em um
bem escasso e não renovável assim como petróleo e gás. E o que seria mais
importante e decisivo, a razão principal dessa recorrência
ficcional-jornalística: a transformação da água em mercadoria dada a sua
suposta natureza escassa.
Escassez de água e a Agenda Global
E o que é mais importante:
se o que se perde não é água, mas dinheiro e energia o efeito ideológico
principal da bomba semiótica da recorrência é a naturalização de uma questão
político-econômica – os discursos das mudanças climáticas, efeito estufa e
assim por diante escondem que está em jogo dois paradigmas antagônicos em torno
da água: de um lado, dinheiro e energia provenientes dos recursos públicos e do
interesse social; e do outro recursos originados do capital, sob a condição de
transformar um bem universal em mercadoria rentável para interesses privados.
Em postagens anteriores
vimos que a grande mídia acabou se tornando um sistema tautista (ao mesmo tempo
autista e tautológico), isto é, fechado em si mesmo, auto-remissivo e incapaz
de representar a realidade externa - sobre esse conceito clique aqui.
A principal motivação da grande mídia não é propriamente ideológica ou política, mas sim sua auto-reprodução: recortar e filtrar os inputs enviados pela realidade para transformá-los em insumos (notícias, filmes, entretenimento etc.) que ajudem a reprodução do próprio sistema midiático – audiência, monopólio, poder econômico etc.
A principal motivação da grande mídia não é propriamente ideológica ou política, mas sim sua auto-reprodução: recortar e filtrar os inputs enviados pela realidade para transformá-los em insumos (notícias, filmes, entretenimento etc.) que ajudem a reprodução do próprio sistema midiático – audiência, monopólio, poder econômico etc.
Se Hollywood e os
telejornais da grande mídia funcionam como caixa de ressonância para essa
estratégia de agenda setting que constrói o mito da escassez da água como uma
bomba semiótica, certamente não é por convicção político-ideológico. Se a
indústria de entretenimento cede ao “product placement” ou a produção de
roteiros com plots sobre um planeta sem água, é muito mais por lisonja do que
por uma convicção qualquer: ao se ver requisitada pelas elites que estão por
trás da agenda global que busca a mercantilização generalizada da vida humana,
acaba reforçando o próprio mito hipodérmico do poder ilimitado de manipulação
da mídia. Mito que mantém o próprio sistema midiático tautista.
De concreto estaria a
deliberada e proposital “má gestão” do governo Alckmin em esgotar de forma
sistemática e agressiva (raspando até com escavadeiras o fundo de lodo do
chamado “volume morto” das represas) o sistema de abastecimento da Grande São
Paulo.
Como cortina de fumaça, Alckmin
e a grande mídia reforçam o script político dos factoides: ir a Brasília pedir
dinheiro para a presidenta Dilma, tensão política com o Rio de Janeiro ao
propor utilizar as águas do rio Paraíba do Sul etc.
Tudo para encobrir a
aplicação de uma agenda global da mercantilização da água, cuja “Guerra da Água”
na Bolívia em 2000 foi o chamado “Alpha Test” – a privatização do sistema de
gestão de água pela empresa Aguas Tunari (do grupo norte-americano Bechtel)
feita pelo presidente Hugo Banzer (sob pressão do Banco Mundial) e a posterior
revolta da população, proibida, inclusive, de captar água da chuva.
Se isso for verdade, nesse
momento o Estado de São Paulo pode ser o “Beta Test”, tal qual no mundo dos
softwares: Alpha é a primeira etapa de testes antes de um novo software ser concluído.
Beta é a segunda etapa que inclui a implementação no mundo real. Algo assim
como lavar a louça com areia, como no filme Young
Ones.