segunda-feira, novembro 17, 2014

A escassez de água é uma bomba semiótica?

Enquanto a Grande São Paulo vive a contagem regressiva para o fim do volume morto na crise de abastecimento de água do sistema Cantareira, sincronicamente estreia nos cinemas “Interestelar” cujo plot se inicia com o planeta Terra devastado por tempestades de areia e escassez de recursos naturais. Hollywood e os telejornais da grande mídia se tornaram uma verdadeira caixa de ressonância: enquanto o jornalismo diariamente apresenta sua natural presunção pela catástrofe ao querer “globalizar” a crise de água da Grande São Paulo como exemplo de uma suposta crise climática mundial, nos últimos 20 anos Hollywood aumenta o número de produções cujo tema da escassez e luta pelo controle da água é a chave central do roteiro. Depois de catorze anos da chamada “Guerra da Água” na Bolívia, São Paulo seria o “Beta Test” de uma agenda mundial de mercantilização da água? Esse sincronismo faria parte de uma engenharia de opinião pública cujo mito da escassez de água seria a principal bomba semiótica?

Em meio à verdadeira contagem regressiva diária para o fim do chamado volume morto do sistema Cantareira de abastecimento de água da Grande São Paulo, o apresentador do SPTV da Globo, César Tralli, fala em tom dramático: “temos que economizar água, gente. Está acabando a água em todo o planeta!”.

Sincronicamente, estreia nos cinemas o filme Interestelar de Christopher Nolan, cuja narrativa se situa em um futuro próximo onde as fontes naturais do planeta Terra se tornam escassas e os ecossistemas são varridos por tempestades de areia, ameaçando a sobrevivência da espécie humana.


A diária presunção da catástrofe
nos telejornais
Telejornais e Hollywood fazem nos últimos anos uma evidente caixa de ressonância: ficção e realidade, cinema e jornalismo parecem se replicar para reforçar uma espécie de agenda global de confirmação de que o planeta segue uma marcha histórica para a catástrofe: Cada “anomalia” atmosférica (um tornado que se divide em dois, recorde de temperaturas no verão ou de nevascas no inverno, etc.) é apressadamente associada à pauta do Aquecimento Global.

Há uma ansiedade nervosa por conexões nos telejornais. Notícias sazonais de queimadas em estações secas desde a Califórnia (principalmente quando se aproximam de mansões de celebridades) até o Planalto Central brasileiro seria a confirmação desse script. A afirmação, no mínimo curiosa, do jornalista César Tralli em pretender “globalizar” a crise de abastecimento hídrico na Grande São Paulo confirma esse cacoete.

A recorrência da escassez da água em Hollywood


Se acompanharmos a produção cinematográfica hollywoodiana dos últimos 20 anos, veremos que o tema da crise de água potável no planeta cada vez mais atravessa os mais variados gêneros, da ficção científica a animações e thrillers – a escassez e a guerra pelo controle da água são a chave central do roteiro: Waterworld (1995, o mundo inundado por água salgada), Christie Malry's Own Double Entry (2000), Sabaku no kaizoku! Captain Kuppa (2001), The Tuxedo (2002), Batman Begins (2005), Waterborne (2005), V for Vendetta (2006), Quantum of Solace (2008), The Book of Eli (2010) e Young Ones (2014, com a emblemática cena de uma dona de casa lavando a louça com areia...).

A recorrência da escassez da água:
"Young Ones", "O Livro de Eli"
e "Interestelar".
Isso sem falar uma série de curtas independentes como A Future Without Water (2014) de Jason Wishnow e documentários como A World Whitout Water (2006), Fire Water (2011), Flow: for Love of Water (2008) e Blue Gold (2009).

E agora, Interestelar de Nolan sugere que a única solução para a sobrevivência da humanidade em um planeta cujas fontes naturais estão escassas é encontrar algum buraco de minhoca no tempo-espaço e recomeçar tudo de novo em algum outro planeta do outro lado do universo. Catástrofes astronômicas, pestes, vírus, invasão alienígena, cometas etc., agora são substituídos pela escassez da água e alterações climáticas.

Agenda setting e product placement no cinema


Retornando à crise de abastecimento de água da Grade São Paulo, o que chama a atenção dos especialistas em sistemas de gestão de recursos hídricos é a forma proposital como o governo do Estado de São Paulo sistematicamente ignorou estudos especializados cuidadosos e caríssimos sobre soluções, prazos e recursos - sobre isso clique aqui. Todos os planos de contingência e alertas foram tão sistematicamente ignorados nessa última década que acaba suscitando a hipótese conspiratória de uma ação proposital do poder público: o governo estadual poderia deliberadamente ter levado ao esgotamento sistema de abastecimento hídrico? Se sim, por que?

Filme "Obrigado por Fumar": como
se faz uma engenharia de
opinião pública
Teoria conspiratória? Talvez um bom argumento para essa hipótese possa ser encontrada no próprio cinema, em filmes como Obrigado por Fumar (Thank You for Smoking, 2005) e a produção do mesmo diretor de Super Size Me, Morgan Spurlock, o documentário The Greatest Movie Ever Sold (2010).

No primeiro filme é mostrado de forma didática como se faz uma engenharia de opinião pública: através de uma tática de agenda setting, mostra como o tema do cigarro, plantado em roteiros de filmes de Hollywood, torna-se um tema relevante para a opinião pública, dominando a pauta da sociedade.

E no documentário de Spurlock, como os roteiros das produções hollywoodianas são criados, alterados ou adaptados para o chamado “product placement”- inserção subliminar de produtos e marcas nos filmes em linhas de diálogo, sequências ou cenários.

Partindo dessa metalinguagem que o cinema faz consigo mesmo, dá o que pensar a recorrência cada vez maior nessa última década de filmes com plots baseados em escassez de água e de recursos naturais. Se recorrência significa intencionalidade, podemos estar diante de uma tática de engenharia de opinião pública para tornar aceitável a percepção que, de fato, a água potável está se esgotando no planeta.

O mito da escassez da água


E por que a escassez de água é um mito por ser reforçado numa estratégia de agenda setting? O mundo não está ficando sem água doce, como apontam estudos como, por exemplo, o UNDP Human Development Report de 2006. Desmascarando  o mito de que a crise é o resultado da escassez, esse relatório defende que a pobreza e a desigualdade de poder estão no centro do problema.

        Há muita água doce no planeta. A questão é que, pelo ciclo da água, ela simplesmente se move de um lugar para o outro. A água nunca é perdida. O que se perde é dinheiro e energia necessários para transporte, purificação e distribuição de água.

A recorrência do tema da escassez na ficção cinematográfica e telejornais tenta transformar a água em um bem escasso e não renovável assim como petróleo e gás. E o que seria mais importante e decisivo, a razão principal dessa recorrência ficcional-jornalística: a transformação da água em mercadoria dada a sua suposta natureza escassa.

Escassez de água e a Agenda Global


E o que é mais importante: se o que se perde não é água, mas dinheiro e energia o efeito ideológico principal da bomba semiótica da recorrência é a naturalização de uma questão político-econômica – os discursos das mudanças climáticas, efeito estufa e assim por diante escondem que está em jogo dois paradigmas antagônicos em torno da água: de um lado, dinheiro e energia provenientes dos recursos públicos e do interesse social; e do outro recursos originados do capital, sob a condição de transformar um bem universal em mercadoria rentável para interesses privados.


Em postagens anteriores vimos que a grande mídia acabou se tornando um sistema tautista (ao mesmo tempo autista e tautológico), isto é, fechado em si mesmo, auto-remissivo e incapaz de representar a realidade externa - sobre esse conceito clique aqui

A principal motivação da grande mídia não é propriamente ideológica ou política, mas sim sua auto-reprodução: recortar e filtrar os inputs enviados pela realidade para transformá-los em insumos (notícias, filmes, entretenimento etc.) que ajudem a reprodução do próprio sistema midiático – audiência, monopólio, poder econômico etc.

Se Hollywood e os telejornais da grande mídia funcionam como caixa de ressonância para essa estratégia de agenda setting que constrói o mito da escassez da água como uma bomba semiótica, certamente não é por convicção político-ideológico. Se a indústria de entretenimento cede ao “product placement” ou a produção de roteiros com plots sobre um planeta sem água, é muito mais por lisonja do que por uma convicção qualquer: ao se ver requisitada pelas elites que estão por trás da agenda global que busca a mercantilização generalizada da vida humana, acaba reforçando o próprio mito hipodérmico do poder ilimitado de manipulação da mídia. Mito que mantém o próprio sistema midiático tautista.

De concreto estaria a deliberada e proposital “má gestão” do governo Alckmin em esgotar de forma sistemática e agressiva (raspando até com escavadeiras o fundo de lodo do chamado “volume morto” das represas) o sistema de abastecimento da Grande São Paulo.

Como cortina de fumaça, Alckmin e a grande mídia reforçam o script político dos factoides: ir a Brasília pedir dinheiro para a presidenta Dilma, tensão política com o Rio de Janeiro ao propor utilizar as águas do rio Paraíba do Sul etc.

Tudo para encobrir a aplicação de uma agenda global da mercantilização da água, cuja “Guerra da Água” na Bolívia em 2000 foi o chamado “Alpha Test” – a privatização do sistema de gestão de água pela empresa Aguas Tunari (do grupo norte-americano Bechtel) feita pelo presidente Hugo Banzer (sob pressão do Banco Mundial) e a posterior revolta da população, proibida, inclusive, de captar água da chuva.


Se isso for verdade, nesse momento o Estado de São Paulo pode ser o “Beta Test”, tal qual no mundo dos softwares: Alpha é a primeira etapa de testes antes de um novo software ser concluído. Beta é a segunda etapa que inclui a implementação no mundo real. Algo assim como lavar a louça com areia, como no filme Young Ones.

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