Qual o significado de uma comédia brasileira chamada “O Candidato Honesto” (sobre um candidato à
presidência popular, corrupto e mentiroso) ser lançada nos cinemas em plena
reta final das eleições? Mais do que senso de oportunismo mercadológico, a
produção surfa na onda da aversão popular à Política e o fenômeno da
despolitização. A inclusão de grande parte dos brasileiros na sociedade de
consumo implementada pelo neodesenvolvimentismo dos governos do PT parece
mandar a conta: chocou o ovo da serpente que agora arma o bote. Sem educação
política, a sociedade de consumo brasileira produz os efeitos ideológicos do
próprio consumismo verificados desde o pós-guerra – ideologia meritocrática,
ilusão de mobilidade social por meio do consumo de gadgets e aparatos
tecnológicos, a competitividade e o
ressentimento. Combustíveis para o discurso midiático da corrupção que ironicamente só
cola no PT.
O cinema tem uma longa
tradição de representar os políticos (assim como os jornalistas) como
personagens corruptos, que abusam da autoridade e sempre metidos em narrativas
conspiratórias de negociações obscuras ou figurados como fantoches de
interesses inconfessáveis.
A comédia brasileira O Candidato Honesto, de Roberto
Santucci, é o último exemplo desse clichê cinematográfico. Pelo oportunismo de
ser lançado em plena reta final da campanha eleitoral, o filme se reveste de
significado político inegável – o reforço de um sentimento anti-política alimentado pela oposição ao Governo Federal como arma de
impedir a reeleição de Dilma Rouseff.
Leandro Hassum faz um
candidato à presidência corrupto e mentiroso, mas com uma popularidade imensa e
com ampla vantagem nas pesquisas. Quando tudo parecia perfeito, ele é
comunicado que sua avó está à beira da morte e gostaria de vê-lo pela última
vez. Como último ato em vida ela joga uma mandinga contra ele, obrigando-o a
sempre falar a verdade, seja na política ou na vida pessoal. Livremente baseado
no filme O Mentiroso com Jim Carrey,
é fácil imaginar as confusões nas quais o protagonista corrupto vai se meter.
O filme "O Candidato Honesto": o reforço subliminar ao ódio contra a Política |
Acreditamos que o crescimento do conservadorismo e de uma estranha indignação seletiva (um governo com mais de 20 anos no poder no Estado de São Paulo se perpetua, enquanto no PT foram coladas todas as mazelas da política) só pode ser analisado contraposto a esse pano de fundo - a crença despolitizada que as mudanças sociais decorreram muito mais pelo mérito individual do que por uma política de Estado.
O ovo da serpente
Além desse fenômeno ser a
decorrência lógica de uma sucessão de bombas semióticas que vem explodindo na
opinião pública, como viemos descrevendo desde as grandes manifestações de
junho do ano passado (sobre isso clique
aqui e veja nos links abaixo), há algo ainda mais profundo, estrutural: o
efeito colateral de uma sociedade de consumo criada pelo modelo
neo-desenvolvimentista implementado pelo
PT na última década: na verdade, o PT parece ter chocado o ovo da serpente que
agora se prepara para lhe dar o bote.
Essa sociedade de consumo
baseada no crescimento do poder aquisitivo e crédito, negados para ampla
parcela da população no passado, combinado com novas oportunidades de melhoria
na capacitação profissional (Pronatec, Enem, FIES etc.) foram positivas. Porém,
sem uma educação política, revelaram o efeito mais deletério das sociedades de
consumo: o fortalecimento da ideologia meritocrática, a ilusão de ascensão
social (o mito da chamada Classe C) por meio do consumo de gadgets tecnológicos
de alto valor agregado e o ressentimento, produtos da vida competitiva dos
vitoriosos e derrotados na corrida do consumismo.
Assim como o filme O Candidato Honesto, a atual oposição
política, como historicamente demonstraram todos os movimentos de direita seja
por vias golpistas ou democráticas, irão surfar nesse imaginário criando a
política do ressentimento. A despolitização e o discurso da corrupção aderem
fácil a esse sentimento difuso de ressentimento, expresso pela onda anti-política.
O neodesenvolvimentismo brasileiro
Como já afirmou o
pesquisador Giovanni Alves da UNESP, o PT implementou no Brasil um modelo
chamado de neodesenvolvimentismo baseado na inclusão social através do mercado
de consumo cujo trabalho surge como precarizado: uma nova geração de
trabalhadores cuja noção de cidadania e trabalho passam muito mais pelas
ambições por consumo do que valores como classe social, direitos de trabalho ou
sindicalização – veja ALVES, Giovanni. “Neodesenvolvimentismo e precarização do
trabalho no Brasil” In: Blog
da Boitempo.
Ou seja, antes de qualquer radicalismo ou socialismo bolivariano, o PT nada mais fez do que modernizar o
capitalismo brasileiro pela normalização das funções de reprodução de força de
trabalho e consumo ótimas para o capital com as medidas de inserção social e a
manutenção da financeirização.
A questão é que a sociedade
de consumo (e essa foi desde o início
no pós-guerra a sua função ideológica)
cria a ilusão de mobilidade social por meio do consumo e da percepção de que o
poder aquisitivo do salário cai ou sobe.
Marx: salário não é riqueza |
Ao contrário, a riqueza
provém da renda e ganhos do capital (lucro, juros etc.) que produzem acumulação
e concentração, pressupostos do poder.
A zona cinza do conservadorismo
Em postagem anterior, quando
discutíamos a noção de “zona cinza do conservadorismo” sobre o porquê da
escalada do conservadorismo em São Paulo abordamos a hipótese de uma relação
com os “aparatos que o neoliberalismo trouxe para a classe média paulistana” e
o conservadorismo. Na sociedade esses gadgets tecnológicos e “aparatos
neoliberais”, (celulares, computadores,
TVs de lead, o automóvel, GPS etc.) dão a ilusão de mobilidade social via
aumento do poder aquisitivo.
Tais aparatos produziriam um
alargamento a esfera privada (por esses gadgets e aparatos serem verdadeiras
mídias de consumo individual) resultando no enfraquecimento da consciência
pública – sobre isso clique
aqui.
Brasil: do ciclo virtuoso ao ciclo vicioso? |
Essa percepção dura e
competitiva da vida pelo mérito vai ser como o oxigênio que propicia a
combustão: a generalização da Política e dos políticos a partir do discurso da
corrupção e da mentira vai ser a base da política do ressentimento – políticos
seriam pessoas que chegaram lá não pelo mérito, mas pela desonestidade,
oportunismo ou por explorar a “ignorância”. Lula, Tiririca entre outros seriam
os casos exemplares dessa exploração do ressentimento: políticos sem mérito, sem
estudo, que supostamente obtiveram dinheiro e poder pela corrupção, mentira ou
ignorância dos eleitores.
Comerciais que passam na TV e Internet como o do Novo Ford Ka (cujo protagonista é um cara que sempre deu duro, ajudou a família empreendedora e foi premiado com o Novo Ford Ka - veja vídeo abaixo), associado ao riso de escárnio contra a política em filmes como O Candidato Honesto se tornam mais poderosos do que qualquer campanha cívica em defesa da Petrobrás.
Comerciais que passam na TV e Internet como o do Novo Ford Ka (cujo protagonista é um cara que sempre deu duro, ajudou a família empreendedora e foi premiado com o Novo Ford Ka - veja vídeo abaixo), associado ao riso de escárnio contra a política em filmes como O Candidato Honesto se tornam mais poderosos do que qualquer campanha cívica em defesa da Petrobrás.
Novos “intelectuais” orgânicos: coxinhas e “gente que rala”
Comercial do Novo Ford Ka: carro e meritocracia |
Pensando de forma
gramsciana, enquanto a sociedade de consumo produziu os seus “intelectuais”
orgânicos (periguetes, coxinhas, patricinhas, roberts, funkeiros da ostentação,
gente que rala ao som do irritante toque de um Nextel e demais exemplares da
fauna humana consumista), o PT ainda conta nas suas hostes o velho discurso dos
tempos de confrontação político-ideológica com a ditadura militar e o
imperialismo norte-americano. Todos incapazes de pensar essa nova hegemonia,
matéria-prima da política do ressentimento da oposição turbinada pelo discurso
da corrupção que ironicamente só cola no próprio PT.
O problema é que para essa
nova sociedade de consumo da chamada “classe C” que acredita que fez a mobilidade
social, slogans sobre os programas sociais, o nosso petróleo, a nossa Nação
etc. têm cada vez menos apelo. Se esvaziam simbolicamente.
O que lembra a observação do
filósofo político Cornelius Castoriadis que a aplicação da “administração
científica” e os métodos de linha de montagem dos EUA na Rússia pós-revolução
bolchevique para acelerar o desenvolvimento econômico não foram impunes: as
formas “burguesas” de produção somente reproduziram as estruturas verticais de
poder nos moldes do combatido capitalismo, contaminando a experiência
socialista soviética – veja CASTORIADIS, Cornelius, A Instituição Imaginária da Sociedade, Paz e Terra.
Algo análogo ocorre com o
PT: a modernização do capitalismo brasileiro através do consumo produz a
serpente que não convive e nem compreende noções de cidadania, programas
sociais ou soberania nacional. Os efeitos ideológicos da sociedade de consumo
contaminam qualquer projeto de cidadania ou de Nação.
O consumo acelerado sem
educação política chocou o ovo da despolitização, do ódio e do ressentimento.
Agora basta tudo isso ter uma tradução política.
Leia o adendo desse post: "César Tralli, MasterChef e Metrô".
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