terça-feira, outubro 28, 2014
Wilson Roberto Vieira Ferreira
O homem atual seria um Sísifo moderno? Assim como o
personagem da mitologia grega, condenado a carregar eternamente uma enorme
pedra ao topo da montanha, o homem estaria condenado a não encontrar Deus,
sentido ou propósito na existência, a não ser encontrar a si próprio – o humano,
demasiado humano. Esse é a desconcertante co-produção Argentina/Espanha
“Relatos Selvagens”, seis curtos relatos de pessoas comuns diante de
circunstância incomuns: situações extremas com muito humor negro (e bota negro
nisso) onde acabam sendo despertados em cada um os instintos mais básicos de vingança e violência. Em falso tom de comédia, o diretor Damián
Szifrón parece querer brincar com o espectador: afinal, estamos rindo do quê?
O cinema
contemporâneo pode ser basicamente dividido em dois grandes núcleos temáticos:
de um lado, o gnóstico: filmes onde a
jornada de sofrimentos e provações do protagonista não decorre de uma falha de
caráter, pecados ou de deformações inerentes à natureza humana – ao contrário,
decorre de um universo corrompido ou ilusório que o aprisiona da qual tenta
escapar através de uma iluminação interior; e do outro o que poderíamos chamar
de “humano, demasiado humano”: filmes
que são o inverso do pathos gnóstico
– o homem sofre em decorrência da sua própria natureza, fraquezas, paixões ou
obsessões.
A
co-produção Argentina/Espanha Relatos
Selvagens do diretor Damián Szifrón claramente se insere nesse segundo
núcleo temático. O filme é composto por seis curtas independentes, unidos
apenas pelo tema comum da violência e vingança. Com muito humor negro (e bota
negro nisso), são apresentados relatos de personagens colocados em situações
extremas onde o instinto selvagem de sobrevivência e autopreservação vem à tona
das formas mais variadas.
Já no primeiro
relato chamado “Pasternak” percebemos a “pegada” do filme: dois passageiros em
um avião descobrem que conhecem um homem chamado Pasternak – ela é sua
ex-namorada, e ele um crítico musical que destruiu selvagemente a reputação do
trabalho artístico dele. Acabam descobrindo também que todos naquele voo
tiveram algum tipo de relacionamento problemático com Pasternak. O que fazem todos
ali reunidos? É o que descobrirão da pior maneira possível. E o final violento
do primeiro relato emenda com os créditos iniciais, onde vemos o desfile de uma
série de fotos de animais predadores: répteis, felinos e aves de rapina.
O homem é o
predador do próprio homem, parece ser o que Szifrón quer nos dizer. Todos os
personagens dos relatos são seres comuns expostos a situações desconcertantes.
Ricos, pobres, classe média, homens e mulheres reagem a circunstâncias que
certamente são mais fortes do que poderiam suportar. E reagem, muitas vezes sem
medir as consequências.
Se nos
filmes gnósticos há um mergulho no interior do protagonista para encontrar a
luz (a gnose) que o faça mudar intimamente e escapar de um cosmos que o
aprisiona, aqui em Relatos Selvagens
o “demasiado humano” é mais forte: os personagens põem em prática seus impulsos
mais violentos, criando situações de incrível humor negro... tão negro que
muitas vezes o espectador se pegará dando sorrisos amarelos e pensará: afinal,
de quê estou rindo?
É exatamente
esse o ponto mais forte do filme Relatos
Selvagens, como veremos adiante.
O
Filme
No segundo
relato (“Las Ratas”) vemos um corretor imobiliário que para em um restaurante
de beira de estrada. A garçonete o reconhece como o homem que arruinou sua
família, mas ela se recusa a aceitar o plano da cozinheira de colocar veneno de
rato no prato pedido por ele. Mas a cozinheira, uma ex-presidiária, tentará
seguir em frente no plano.
Em “El Más
Fuerte” vemos um homem bem sucedido guiando seu carro de luxo em uma estrada.
Uma camioneta velha propositalmente impede sua ultrapassagem, até que o homem o
ultrapassa, gritando uma série de insultos racistas e preconceituosos. Mais à
frente, um dos pneus da sua BMW fura, forçando-o a parar. Mal sabe ele que
aquele homem insultado vem logo atrás, e com sede de vingança.
No relato
chamado “Bombita”, vemos Ricardo Darin fazendo um técnico em explosivos em um
dia que tudo dá errado: seu carro é guinchado pela prefeitura, chega atrasado
na festa de aniversário da sua filha, no que resulta numa crise conjugal e o
início do divórcio, além de mais tarde perder o emprego. Mas “bombita” terá seu
dia de fúria, e enfrentará tudo com explosivos.
Já em “La
Propuesta”, um pai rico tenta encobrir uma trágico acidente envolvendo seu
filho: voltando de uma balada na madrugada, ele atropelou uma mulher grávida,
matando-a. Diante do clamor popular e midiático por justiça, o pai faz uma
proposta para o seu jardineiro: levar a culpa no lugar do filho em troca de
muito dinheiro. Mas ele terá que também subornar a polícia e pagar muito
dinheiro ao seu advogado para fazê-lo participar do esquema corrupto. Porém,
corruptos e corruptores não se entenderão, criando uma espiral de ganância e
ameaças.
O relato
final (“Hasta que la Muerte nos separe”) se passa em uma festa de casamento. A
noiva descobre que seu marido a trai com uma das convidadas, produzindo uma
cadeia de eventos naquela noite que resultará em novas traições, brigas, vingança,
sangue e ameaças da noiva em humilhar o marido por toda a vida conjugal e
arrancar dele até o último tostão.
Um
olhar impiedoso
Os seis
curtas que estruturam o filme, principalmente o episódio “Bombita”, lembram o
esquema de filmes como Depois de Horas
(1985) de Martin Scorsese misturado com Um
Dia de Fúria (1993) com Michael Douglas: pessoas comuns colocadas em
situações incomuns, enfrentando desventuras em série, efeitos dominó,
coincidências perversas, o que faria lembrar uma insólita conspiração da
realidade contra os protagonistas.
Nesse
aspecto, Relatos Selvagens parece se
aproximar do núcleo temático gnóstico. Mas para Szifrón, tudo isso é
decorrência da natureza humana impulsiva e violenta. Por isso, o diretor lança
um olhar impiedoso a seus atribulados personagens, pessoas ordinárias que
progressivamente vão se transformando em monstros.
Dessa
maneira, o ponto alto do filme é como Szifrón parece ao mesmo tempo brincar e
provocar o espectador. O primeiro relato seguido dos créditos iniciais dão um
falso tom de comédia para a produção. As fotos dos animais predadores ao som de
uma trilha musical que lembra o tom fake e pastiche dos filmes de Tarantino
parecem tranquilizar o espectador para a previsibilidade do que verá nas
próximas uma hora e meia.
O Sísifo moderno
Porém, na
medida em que Szifrón começa a mesclar humor negro, situações inverossímeis e
inesperadas cenas de violência brutal e gratuita (esfaqueamentos repentinos, enforcamentos
com cinto de segurança, corpos ensanguentados com cacos de espelho etc.) o
espectador se pega dando sorrisos amarelos na escuridão da sala de cinema. A
situação é de constrangimento: afinal de quê todos estão rindo?
Ao contrário
das desgraças exponenciais de um filme como Depois
de Horas, cujo efeito é hilariante, em Relatos
Selvagens Szifrón não permite que as sequência de absurdo humor negro
cheguem a finais engraçados. Sempre terminam de forma brutal e cruel, tornando
o riso do espectador amargo e sem graça.
Essa é a
grande virtude de Relatos Selvagens: a suspensão inesperada do humor faz o
espectador pensar sobre pessoas comuns, como qualquer um de nós, que se tornam
a reedição moderna do mito de Sísifo - personagem da mitologia grega, condenado a repetir sempre a mesma tarefa de empurrar
uma pedra até o topo de uma montanha, sendo que, toda vez que estava quase
alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de
partida por meio de uma força irresistível, invalidando completamente o esforço
despendido.
Em sua
filosofia do absurdo, Relatos Selvagens se aproxima da interpretação que o
escritor Alberto Camus (1913-1960) fez do mito de Sísifo como a metáfora do homem moderno:
Sísifo é o homem em busca de algum sentido, unidade ou coerência em um mundo
ininteligível desprovido de Deus e eternidade. Ao procurar Deus ou propósito no
mundo o homem acaba encontrando nada mais do que a si mesmo: o humano,
demasiado humano.
Ficha
Técnica
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Título: Relatos
Selvagens
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Diretor: Damián Szifrón
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Roteiro:
Damián Szifrón
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Elenco: Liliana
Ackerman, Ricardo Darin, Oscar Martinez, Leo Sbaraglia
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Produção: El Deseo S.A., Kramer e Sigman Films
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Distribuição:
Warner Bros.
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Ano:
2014
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País: Argentina,
Espanha
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