Motivo de piadas e memes nas redes sociais, o verdadeiro remake do layout
da capa de 2012 sobre a novela Avenida Brasil em mais uma “bala de prata” da
revista “Veja” (matéria de capa sobre suposta denúncia de que Dilma e Lula
sabiam de todos os esquemas na Petrobrás) é muito mais do que falta de
criatividade ou preguiça de uma revista que definha financeiramente. É um
sintoma do “tautismo” (tautologia + tautismo), fenômeno de fechamento da mídia
em si mesma, a tal ponto que desaparecem as diferenças entre ficção e não-ficção,
telenovela e notícia. A própria resposta dada pela “Veja” às críticas comfirma
aquilo que pretende negar: através de um raciocínio tautológico diz que os acontecimentos
são verdadeiros porque “teimosamente” têm relevância eleitoral... e por isso sempre
acontecem na reta final das eleições!
O programa Redação Sport TV recebeu na semana
passada o ex-presidente do Fluminense Francisco Horta. Famoso nos anos 1970 por
ter montado a chamada “máquina tricolor” na base do “troca-troca” (intercâmbio
ao invés de compra de jogadores), ele era entrevistado por André Rizek e Xico
Sá. Para demonstrar a relevância do entrevistado, foram mostrados para os
espectadores fac-símiles de edições do Jornal O Globo da época, com manchetes sobre o ex-dirigente.
Rizek, então,
passou a fazer uma rápida contabilização do número de manchetes que o
Fluminense gerava no jornal entre 1975-77. Para o jornalista, o sucesso da
estratégia de Horta passou a ser discutido não pela sua contribuição para o
futebol brasileiro, mas pela capacidade de Horta tinha em produzir manchetes
para O Globo. Auto-referência: o
jornal toma a si mesmo como medida para avaliação da realidade. O jornalista
passou a confundir relevância midiática com relevância histórica.
Algo
parecido ocorreu nas eleições para a presidência em 1989. Segundo avaliação do
jornal Folha de São Paulo na época, de todos os candidatos que concorriam, o
mais fraco era Mário Covas. Por que? Segundo o jornal porque ele tinha pouca
capacidade de produzir “acontecimentos” para a mídia noticiar.
O
pesquisador francês Lucien Sfez chama isso de tautismo (tautologia + autismo),
traço dominante dos sistemas de comunicação contemporâneos onde a comunicação
se torna um diálogo sem personagens. Só leva em conta a si mesmo, a comunicação
sem objeto pelo seu processo de fechamento e auto-organização – sobre esse
conceito clique
aqui.
O bomba semiótica tautista da Veja
Esse
processo de fechamento em si mesmo das mídias é tão forte que mesmo no momento
decisivo eleitoral, quando todos esperavam como de praxe, a “bala de prata”
da Veja (uma verdadeira tradição, assim
como o dia da marmota nos EUA), a
revista acaba traída em seu próprio tautismo: a capa sobre suposta confissão do
doleiro Alberto Youssef de que Lula e Dilma saberiam dos esquemas da Petrobrás é praticamente o
mesmo layout da edição de agosto de 2012 sobre a novela Avenida Brasil que
estampava o conflitos das personagens Carminha e Nina na capa.
Por sua vez,
essa capa de 2012 já era uma nítida alusão ao pôster promocional do filme A
Outra Face (Face/Off, 1997) com John Travolta e Nicolas Cage.
A revista
Veja demonstra o sintoma máximo da doença do tautismo que acomete a mídia
atual: a linguagem retoricamente carregada (letras vermelhas, fundo preto,
rostos com expressões graves que parecem surgir da escuridão, layout perfeito
para produtos ficcionais como cinema e telenovela) se mistura com um relato
jornalístico de um evento supostamente real.
Dessa
maneira, o que deveria ser mais uma bomba semiótica para influenciar o processo
eleitoral em seus momentos finais, tornou-se objeto de gozação, ironias e memes
nas redes sociais.
Taustismo e canastrice
Esse sintoma
do tautismo (a contaminação do jornalismo pela linguagem ficcional) acaba
resultando naquilo que em postagens anteriores denominamos como “canastrice”: as
notícias tornam-se tão carregadas de signos retóricos, tão impregnadas de
técnicas de persuasão, que se tornam híbridos de ficção e realidade – sobre o
conceito de canastrice clique
aqui.
"Balas de prata": timing e recorrência |
Uma das
característica da canastrice é o timing e a recorrência dos eventos. No caso da
Veja, teimosamente os fatos sempre acontecem nos finais de primeiro e segundo
turno das eleições, desde 2002.
A resposta
da Veja confirma o próprio fato que
pretende negar: descreve o milagroso timing dos acontecimentos se precipitarem
exatamente nas retas finais das eleições – após meses de investigação, de
repente o doleiro Youssef se vira para o seu interlocutor e diz “O Planalto
sabia de tudo”... “Mas quem?”... “Lula e Dilma!”. A declaração é de uma típica
linha de diálogo de dramalhão de uma telenovela da Televisa mexicana – o leitor
pode imaginar um enquadramento de câmera fechado no rosto do doleiro sob uma
trilha musical de impacto. Corta! Entram os créditos finais e cenas do próximo
capítulo.
A capa e as
linhas de diálogo em estilo dramalhão acabam servindo de adrenalina para bombar
uma reportagem que se auto-cancela. Mais à frente o próprio texto diz o
seguinte:
“O doleiro não apresentou - e nem lhe foram pedidas - provas do que disse. Por enquanto, nesta fase do processo, o que mais interessa aos delegados é ter certeza de que o depoente atuou diretamente ou pelo menos presenciou ilegalidades”.
Tal como na
lógica dos roteiros cinematográficos, não importa que os eventos sejam reais.
Eles devem parecer verossímeis. E sabemos que toda verossimilhança é saturada,
hiperreal, repleta de efeitos de realidade. O que exige do espectador o esforço
da “suspensão da irrealidade”, isto é, fazer de conta que acredita para que
ocorra o entretenimento.
A resposta tautológica da Veja
A Veja alega que “os fatos são teimosos e
não escolhem hora para acontecer”. Pelo padrão e recorrência dos fatos das
capas, parece que a revista toma seus jornalistas e os próprios leitores ou
como seres ingênuos ou dotados de alguma sinistra má-fé.
E para
completar o quadro tautista, a Veja
recorre a um argumento tautológico para encobrir a canastrice da matéria de
capa: reconhecer que a notícia tem um evidente efeito eleitoral é reconhecer “a temeridade de tê-la escondida
até o fechamento das urnas”.
Veja propõe um insólito raciocínio em ciclo vicioso: a crítica
feita à revista é a confirmação de que ela não poderia ter deixado o suposto
furo para depois. O fato é relevante porque tem efeito eleitoral e aconteceu
nessa semana porque é relevante... As críticas da presidenta só confirmariam o
acerto da revista em publicar o suposto “furo”.
A falácia
tautológica da reposta de Veja tenta encobrir o fenômeno de que as “balas de
pratas” são tão previsíveis quanto a troca da guarda do palácio de Buckingham,
aguardada religiosamente pelos turistas na Inglaterra.
Por isso, a
reprodução do mesmo layout de capa da edição de 2012 para construir a “bala de
prata” de 2014 não significa meramente preguiça ou falta de criatividade da
redação do veículo. Para além dos evidentes interesses políticos e econômicos
associados à sobrevivência do próprio grupo Abril, a capa e as canastríssimas
linhas de diálogo do doleiro são sintomas de um fechamento das mídias em si
mesmas.
As mídias
estão se tornando tão auto-centradas, fechadas em si mesmas e desconectadas da
realidade que para ela parece não mais existir distinções entre linguagem
ficcional e não-ficcional, telenovela e jornalismo, melodrama e relato
jornalístico.
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