Câmeras
de vigilância, celulares através dos quais performamos constantes selfies,
telas de computador, de TVs e de cinema, imagens dos indivíduos captas pelas
câmeras de vitrines nos shoppings e exibidas para os próprios consumidores etc.
Estamos cercados de dispositivos visuais que acabaram criando uma espécie de
saber inconsciente audiovisual: criamos nossas próprias auto-mis-en-scènes.
Sabemos criar personas através do cinema e fotografia, de tal maneira que
ficção e História, ilusão e realismo acabaram se fundindo na modernidade. Esse é o tema latente no
documentário “Jogo de Cena”(2007) de Eduardo Coutinho: anônimos contam suas
histórias, enquanto atores tentam reencenar essas narrativas anônimas. Quem é
ator e quem é anônimo, quem é profissional e quem é amador diante da câmera?
Esse é o vertiginoso jogo proposto por Eduardo Coutinho.
Na banalidade do cotidiano
estão os rastros da verdade. Esta parece que foi a grande revolução estética
trazida pela modernidade, desde que Vitor Hugo escreveu que uma sociedade se
conhece através do seu esgoto, ou quando Marcel Proust descobre as memórias
involuntárias em cheiros, flagrâncias e sons do dia-a-dia na sua obra-prima Em Busca do Tempo Perdido.
Graças a essa revolução na
sensibilidade moderna, desviamos nossa atenção artística das grandes narrativas
dos gêneros tradicionais (tragédia, comédia, drama etc.) com seus temas
elevados sobre heróis, nobres ou pícaros, para a vida dos esquecidos nas
multidões. A fórmula foi invertida: o anônimo tornou-se o objeto artístico e o
seu registro através da fotografia e o cinema como as novas obras de arte.
Por isso, o documentário Jogo de Cena de Eduardo Coutinho se
inscreve nessa tradição modernista da linha de Dziga Vertov e seu filme O Homem da Câmera de 1929 ou Berlin –
Sinfonia de uma Metrópole (1927) de Walther Huttmann: trazer para a cena
artísticas as massas e os anônimos.
Mas Coutinho vai além. Como
um documentarista, ele não está apenas interessado em representar o real, isto é, registrar depoimentos das pequenas
tragédias pessoais de anônimos. Coutinho também pretende explorar o real da representação, daí o nome do
filme “jogo de cena”: o jogo entre diretor, câmera e entrevistado.
Aquilo que o documentarista
francês Jean-Louis Comolli chama de “dialética da mis-en-scène” – não só Eduardo Coutinho cria o espaço da encenação
(câmera, palco e teatro vazio onde as pessoas são entrevistadas), mas os
próprios anônimos criam a sua encenação, numa espécie de autoconsciência
fílmica típica da modernidade em que vivemos cercados por câmeras de
vigilâncias e de dispositivos de produção e recepção de imagens.
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O “jogo” de Jogo de Cena
Em junho de 2006 , Coutinho
colocou um anúncio no jornal onde convidava mulheres a contar pequenas
histórias das suas vidas diante de uma câmera. Oitenta e três mulheres se
inscreveram e 23 foram selecionadas. Seus depoimentos foram gravados no Teatro
Glauce Rocha, no Rio de Janeiro. Sentadas em uma cadeira, no teatro vazio, no
palco e de costas para as cadeiras vazias. Alguns meses depois, Coutinho pediu
para que atrizes assistissem às gravações e encenassem diante das câmeras
aqueles relatos como se fossem delas próprias.
Assistindo ao filme (veja o filme completo abaixo), aos
poucos aprendemos que a cada uma das histórias, uma delas é encenação. Mas a
partir do momento em que as atrizes reaparecem e começam a contar as suas
experiências em representar as histórias das pessoas reais, o jogo proposto por
Coutinho começa a embolar: as atrizes contam as dificuldades em representar as
emoções “autênticas”.
Mas quanto mais o filme avança,
o fantasma das mise-en-scènes começa
a nos assombrar: quem está representando quem? O jogo começa a se mostrar como
uma casa repleta de espenhos que se refletem mutuamente até não sabermos mais
quem é o reflexo e o refletido.
Percebemos indícios nos
depoimentos “autênticos” das mulheres entrevistadas ao reponderem à encenação (o
jogo) proposta por Coutinho com sua próprias “auto-mise-en-scènes”: elas colocaram suas melhores roupas,
gesticulam e tentam dizer as palavras certas... Em outras palavras, tentam
diante da câmera criar uma outra persona de si mesmas, assim como todos nós fazemos
no cotidiano.
A questão é que na
modernidade esse cotidiano é perpassado pelos mais diversos dispositivos de
captação, produção e exibição de imagens do próprio indivíduo: câmeras de
vigilância, celulares onde performamos constantes selfies, telas de computador, de TVs e de cinema, imagens dos
indivíduos captas pelas câmeras de vitrines nos shoppings e exibidas para os
próprios consumidores etc.
Auto-mise-en-scénes
O documentarista e teórico
do cinema, o francês Jean-Louis Comolli, faz uma interessante reflexão de como
o sujeito filmado se torna autoconsciente do ato da encenação, se tornando um
personagem do filme, posando e se posicionando ao olhar do outro:
“Há em todo o mundo um saber inconsciente sobre o olhar do outro, um saber que se manifesta por uma tomada de posição, uma postura. A cinematografia fornece a prova disso, porque suscita e solicita essa postura e, ao mesmo tempo, porque a registra, nela inscreve sua marca. O sujeito filmado, infalivelmente identifica o olho negro e redondo da câmera como olhar do outro materializado. Por um saber inconsciente mas certeiro, o sujeito sabe que ser filmado significa se expor ao outro”. (COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder – a inocência perdida: cinema, televisão, ficção e documentário, Editora UFMG, 2008, p. 81).
Comolli nos revela a
dialética da mis-en-scène: o olhar,
seja humano ou maquínico da câmera, produz um movimento de ida e volta, criando
um emaranhado de relações como espelhos colocados um diante do outro.
Esse jogo é o grande tema
nesse documentário de Eduardo Coutinho: com a câmera na modernidade, ficção e
História se fundiram inevitavelmente. A fotografia e o cinema resgataram as
massas e os anônimos, para transformá-los em personagens que reencenam a encenação
proposta pela câmera e seus diretores.
A anti-teatralidade do cinema
Se ficção e História se
fundem, quem seriam então os atores? Como fica a arte da representação teatral
na modernidade? O cinema e a TV são a própria anti-teatralidade: os atores
sofrem! Como fica evidente em Jogo de Cena, Fernanda Torres e Marília Pera têm
que buscar nas suas próprias memórias emocionais a matéria-prima para poder
representar as histórias dos anônimos.
Em outras palavras, se as
pessoas comuns “espontaneamente” já criam suas próprias personas para as
câmeras, o ator pode perigosamente se tornar desnecessário. Por isso, devem se
superar, hiper-realizar a mise-en-scène do outro. Isso fica claro na
metalinguagem que Coutinho cria da explicação das performances que os atores
fazem, o que acaba criando um outro paradoxo: a própria metalinguagem dos
atores já é desde o início uma encenação, também a criação de uma outra
persona.
Portanto, Jogo de Cena cria uma vertiginosa
narrativa em abismo: três mis-en-scénes
se acumulam ao longo do filme, criando um jogo de labirintos, reflexos e
emaranhados – as encenações do diretor, dos anônimos e dos atores (esses, na
situação mais vertiginosa pois têm que representar os anônimos e a si mesmos).
Talvez, o ponto alto do
documentário seja o momento em que Marília Pera fala que para o ator, as lágrimas
espontâneas são uma dádiva, quando se chora sem ter que ser induzido por pelo
cristal japonês (ela mostra para as câmeras o produto). Mas admite que na vida
real, assim como nas sessões de análise, as pessoas seguram as emoções e o
choro. Elas não choram copiosamente como os atores na TV.
Essa afirmação da atriz dá
no que pensar. Sabemos que, ao lado da fotografia e do cinema, a psicanálise
freudiana foi outro grande produto da modernidade. Será que o momento da
análise, supostamente o momento que permitiria nos revelar quem somos, seria
mais uma das mis-en-scènes produzidas pela modernidade? Analista e divã
comporiam uma encenação análoga a criada pelo diretor e a câmera em um estúdio?
Ficha Técnica |
Título: Jogo
de Cena
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Diretor: Eduardo Coutinho
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Roteiro:
Eduardo Coutinho
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Elenco: Marília
Pera, Fernanda Torres, Adréa Beltrão
|
Produção: Matizar, VideoFilmes
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Distribuição:
VideoFilmes
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Ano:
2007
|
País:
Brasil
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