sábado, outubro 11, 2014

"Jogo de Cena" embaralha cartas da ficção e do real

Câmeras de vigilância, celulares através dos quais performamos constantes selfies, telas de computador, de TVs e de cinema, imagens dos indivíduos captas pelas câmeras de vitrines nos shoppings e exibidas para os próprios consumidores etc. Estamos cercados de dispositivos visuais que acabaram criando uma espécie de saber inconsciente audiovisual: criamos nossas próprias auto-mis-en-scènes. Sabemos criar personas através do cinema e fotografia, de tal maneira que ficção e História, ilusão e realismo acabaram se fundindo na modernidade. Esse é o tema latente no documentário “Jogo de Cena”(2007) de Eduardo Coutinho: anônimos contam suas histórias, enquanto atores tentam reencenar essas narrativas anônimas. Quem é ator e quem é anônimo, quem é profissional e quem é amador diante da câmera? Esse é o vertiginoso jogo proposto por Eduardo Coutinho.

Na banalidade do cotidiano estão os rastros da verdade. Esta parece que foi a grande revolução estética trazida pela modernidade, desde que Vitor Hugo escreveu que uma sociedade se conhece através do seu esgoto, ou quando Marcel Proust descobre as memórias involuntárias em cheiros, flagrâncias e sons do dia-a-dia na sua obra-prima Em Busca do Tempo Perdido.

Graças a essa revolução na sensibilidade moderna, desviamos nossa atenção artística das grandes narrativas dos gêneros tradicionais (tragédia, comédia, drama etc.) com seus temas elevados sobre heróis, nobres ou pícaros, para a vida dos esquecidos nas multidões. A fórmula foi invertida: o anônimo tornou-se o objeto artístico e o seu registro através da fotografia e o cinema como as novas obras de arte.

Por isso, o documentário Jogo de Cena de Eduardo Coutinho se inscreve nessa tradição modernista da linha de Dziga Vertov e seu filme O Homem da Câmera de 1929 ou  Berlin – Sinfonia de uma Metrópole (1927) de Walther Huttmann: trazer para a cena artísticas as massas e os anônimos.

         Mas Coutinho vai além. Como um documentarista, ele não está apenas interessado em representar o real, isto é, registrar depoimentos das pequenas tragédias pessoais de anônimos. Coutinho também pretende explorar o real da representação, daí o nome do filme “jogo de cena”: o jogo entre diretor, câmera e entrevistado.

Aquilo que o documentarista francês Jean-Louis Comolli chama de “dialética da mis-en-scène” – não só Eduardo Coutinho cria o espaço da encenação (câmera, palco e teatro vazio onde as pessoas são entrevistadas), mas os próprios anônimos criam a sua encenação, numa espécie de autoconsciência fílmica típica da modernidade em que vivemos cercados por câmeras de vigilâncias e de dispositivos de produção e recepção de imagens.


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O “jogo” de Jogo de Cena


Em junho de 2006 , Coutinho colocou um anúncio no jornal onde convidava mulheres a contar pequenas histórias das suas vidas diante de uma câmera. Oitenta e três mulheres se inscreveram e 23 foram selecionadas. Seus depoimentos foram gravados no Teatro Glauce Rocha, no Rio de Janeiro. Sentadas em uma cadeira, no teatro vazio, no palco e de costas para as cadeiras vazias. Alguns meses depois, Coutinho pediu para que atrizes assistissem às gravações e encenassem diante das câmeras aqueles relatos como se fossem delas próprias.

Assistindo ao filme (veja o filme completo abaixo), aos poucos aprendemos que a cada uma das histórias, uma delas é encenação. Mas a partir do momento em que as atrizes reaparecem e começam a contar as suas experiências em representar as histórias das pessoas reais, o jogo proposto por Coutinho começa a embolar: as atrizes contam as dificuldades em representar as emoções “autênticas”.

Mas quanto mais o filme avança, o fantasma das mise-en-scènes começa a nos assombrar: quem está representando quem? O jogo começa a se mostrar como uma casa repleta de espenhos que se refletem mutuamente até não sabermos mais quem é o reflexo e o refletido.

     Percebemos indícios nos depoimentos “autênticos”  das mulheres entrevistadas ao reponderem à encenação (o jogo) proposta por Coutinho com sua próprias “auto-mise-en-scènes”: elas colocaram suas melhores roupas, gesticulam e tentam dizer as palavras certas... Em outras palavras, tentam diante da câmera criar uma outra persona de si mesmas, assim como todos nós fazemos no cotidiano.

A questão é que na modernidade esse cotidiano é perpassado pelos mais diversos dispositivos de captação, produção e exibição de imagens do próprio indivíduo: câmeras de vigilância, celulares onde performamos constantes selfies, telas de computador, de TVs e de cinema, imagens dos indivíduos captas pelas câmeras de vitrines nos shoppings e exibidas para os próprios consumidores etc.

Auto-mise-en-scénes


O documentarista e teórico do cinema, o francês Jean-Louis Comolli, faz uma interessante reflexão de como o sujeito filmado se torna autoconsciente do ato da encenação, se tornando um personagem do filme, posando e se posicionando ao olhar do outro:
“Há em todo o mundo um saber inconsciente sobre o olhar do outro, um saber que se manifesta por uma tomada de posição, uma postura. A cinematografia fornece a prova disso, porque suscita e solicita essa postura e, ao mesmo tempo, porque a registra, nela inscreve sua marca. O sujeito filmado, infalivelmente identifica o olho negro e redondo da câmera como olhar do outro materializado. Por um saber inconsciente mas certeiro, o sujeito sabe que ser filmado significa se expor ao outro”. (COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder – a inocência perdida: cinema, televisão, ficção e documentário, Editora UFMG, 2008, p. 81).
           Comolli nos revela a dialética da mis-en-scène: o olhar, seja humano ou maquínico da câmera, produz um movimento de ida e volta, criando um emaranhado de relações como espelhos colocados um diante do outro.

Esse jogo é o grande tema nesse documentário de Eduardo Coutinho: com a câmera na modernidade, ficção e História se fundiram inevitavelmente. A fotografia e o cinema resgataram as massas e os anônimos, para transformá-los em personagens que reencenam a encenação proposta pela câmera e seus diretores.

A anti-teatralidade do cinema


Se ficção e História se fundem, quem seriam então os atores? Como fica a arte da representação teatral na modernidade? O cinema e a TV são a própria anti-teatralidade: os atores sofrem! Como fica evidente em Jogo de Cena, Fernanda Torres e Marília Pera têm que buscar nas suas próprias memórias emocionais a matéria-prima para poder representar as histórias dos anônimos.

            Em outras palavras, se as pessoas comuns “espontaneamente” já criam suas próprias personas para as câmeras, o ator pode perigosamente se tornar desnecessário. Por isso, devem se superar, hiper-realizar a mise-en-scène do outro. Isso fica claro na metalinguagem que Coutinho cria da explicação das performances que os atores fazem, o que acaba criando um outro paradoxo: a própria metalinguagem dos atores já é desde o início uma encenação, também a criação de uma outra persona.

Portanto, Jogo de Cena cria uma vertiginosa narrativa em abismo: três mis-en-scénes se acumulam ao longo do filme, criando um jogo de labirintos, reflexos e emaranhados – as encenações do diretor, dos anônimos e dos atores (esses, na situação mais vertiginosa pois têm que representar os anônimos e a si mesmos).

Talvez, o ponto alto do documentário seja o momento em que Marília Pera fala que para o ator, as lágrimas espontâneas são uma dádiva, quando se chora sem ter que ser induzido por pelo cristal japonês (ela mostra para as câmeras o produto). Mas admite que na vida real, assim como nas sessões de análise, as pessoas seguram as emoções e o choro. Elas não choram copiosamente como os atores na TV.


               Essa afirmação da atriz dá no que pensar. Sabemos que, ao lado da fotografia e do cinema, a psicanálise freudiana foi outro grande produto da modernidade. Será que o momento da análise, supostamente o momento que permitiria nos revelar quem somos, seria mais uma das mis-en-scènes produzidas pela modernidade? Analista e divã comporiam uma encenação análoga a criada pelo diretor e a câmera em um estúdio?


Ficha Técnica


Título: Jogo de Cena
Diretor: Eduardo Coutinho
Roteiro: Eduardo Coutinho
Elenco: Marília Pera, Fernanda Torres, Adréa Beltrão
Produção: Matizar, VideoFilmes
Distribuição: VideoFilmes
Ano: 2007
País: Brasil




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