A premissa da produção Netflix francesa “Sob as Águas do Sena” (Sous la Seine, 2024) é seriamente abusurda. Mas esse é praticamente um pré-requisito dos filmes de tubarões nos dias de hoje - em um mundo pós-Jaws (premiado clássico de Spielberg), não há chance de fazer o maior filme de tubarões de todos os tempos. Então, em vez disso, os cineastas apostam em argumentos involuntariamente engraçados: fugindo das mudanças climáticas e do plástico jogado nos oceanos, um enorme tubarão evolui, adapta-se à agua doce, e aparece no rio Sena, em plena Paris, às vésperas de uma competição de triatlo com cobertura mundial. Filme-catástrofe é um subgênero hollywoodiano por excelência. Mas quando vemos uma produção francesa abraçando todo os tropos do subgênero, torna-se significativo: é o reflexo de um zeitgeist que assola a Europa: medo e ansiedade coletiva de um continente na sombra da ameaça da conflagração de uma Guerra Fria que poderá se tornar muito quente num futuro próximo.
“Vivemos num mundo mais perigoso”, disse recentemente o primeiro-ministro do Reino Unido Rishi Shunak, para justificar o aumento dos gastos militares do governo. Ele falou também sobre “prontidão de guerra” diante da possibilidade da ameaça de “estados autoritários” como Rússia, China e Irã.
Somado à escalada da guerra na Ucrânia (criando uma espécie de Guerra Fria 2.0 do Ocidente contra a Rússia) e o pânico midiático e geopolítico com os fenômenos extremos climáticos e a crise ambiental global, tem-se a formação de uma “tempestade perfeita”: um século cada vez mais marcado pela ansiedade e medo coletivo. Depois de uma virada de milênio otimista com a Globalização triunfante e vitoriosa no “one way world”.
Para tudo acabar com o atentado ao WTC em 2001.
Como reflexo esse zeitgeist, acompanhamos também a escalada de filmes-catátrofe e distopias apocalípticas tanto na telonas quanto nas séries em streaming.
Historicamente, os filmes-catástrofes começaram operando um fenômeno de deslocamento no psiquismo coletivo, onde a ansiedade e medo coletivo da guerra nuclear e da guerra fria eram transferidos para um “objeto fóbico” representados por invasores alienígenas, formigas gigantes ou até pássaros assassinos – Os Pássaros, de Hitchcock.
Segundo Ignácio Ramonet, esse gênero de blockbuster teria o papel habitual de “deslocamento”: as calamidades fílmicas teriam a função de “criar um objeto fóbico que permitiria ao público localizar, circunscrever e fixar a formidável angústia ou estado de aflição real suscitado pela situação traumática da crise” (Veja RAMONET, Ignácio. Propagandas Silenciosas. Petrópolis: Vozes, 2002, p.86).
O filme-catástrofe é um subgênero hollywoodiano por excelência que tanto expressa o medo fóbico pelo inimigo externo (de alienígenas a terroristas islâmicos) quanto um modelo econômico baseado na obsolescência planejada no qual a destruição e descartabilidade são valore economicamente positivos – sobre isso, clique aqui.
Mas quando vemos uma produção europeia abraçando apaixonadamente os tropos desse subgênero, significa que temos um fato novo no cinema e audiovisual: a confirmação da tese de Ramonet, num momento em que a Europa, às vésperas de um espetáculo global como os Jogos Olímpicos, vive o medo coletivo da escalada nuclear nas suas fronteiras. Além da insegurança econômica e energética com uma guerra que se etende há mais de dois anos.
Sob as Águas do Sena (Sous la Seine, 2024) é uma surpreendente evidência: às vésperas da realização dos Jogo Olímpicos, precedido de uma competição de triatlo como aquecimento e vitrina para Paris, um enorme tubarão resolve acabar com a festa - anos depois de sobreviver a um ataque de tubarão que matou seu marido e tripulação, a cientista Sophia (Bérénice Bejo) enfrenta uma situação aterrorizante: a besta marinha, em rápida evolução conhecida como Lilith, chegou a Paris através do rio Sena... pronta para se alimentar.
Vamos deixar uma coisa clara: a premissa de Sob as Águas do Sena é seriamente abusurda. Mas esse é praticamente um pré-requisito dos filmes de tubarões nos dias de hoje - em um mundo pós-Jaws (o premiado clássico de Spielberg), não há chance de fazer o maior filme de tubarões de todos os tempos. Então, em vez disso, os cineastas dobram a aposta em argumentos bizarro . Como, por exemplo, Megatubarão e sua sequência.
E agora, prepare-se, temos tubarões que fugiram do lixo oceânico e das mudanças climáticas, adaptaram-se à água doce e querem acabar com a festa em Paris.
No entanto, um filme-catástrofe produção europeia (francesa) chama a atenção como reflexo do zeitgeist atual. Principalmente, por explorar um típico subgênero norte-americano. O que faz Sob as Águas do Sena um filme repleto de ironias.
O Filme
Na sequência de abertura vemos o que é basicamente um depósito de lixo boiando em pleno Oceano Pacífico e somos apresentados à cientista Sophia Assalas (The Artist) que está investigando um tubarão mako chamado Lilith. Quando o marido tenta tirar uma amostra de sangue da criatura, ele é atacado e morto. Assim como todo o seus companheiros, mortos na carnificina. O que cria um trauma pessoal da nossa heroína e uma conexão pessoal com o tubarão.
Três anos depois, Sophia está trabalhando em uma universidade em Paris quando descobre que Lilith não está apenas viva e bem, mas evoluiu de uma forma inesperada, adaptou-se à agua doce e está no rio Sena.
Este rio, que atravessa o coração da Cidade das Luzes, será também é o local de uma competição internacional de triatlo, como aquecimento para os Jogos Olímpico 2024.
O foco midiático global que o evento trará à cidade dá a Sob as Águas do Rio Sena camadas de tensão do estilo Jaws de Spielberg, com Sophia e sua equipe sabendo que há perigo na água, mas a prefeita (Anne Marivin) se recusando a tomar as precauções necessárias para evitar a perda de vidas e mais comida para o tubarão campeão da evolução darwiniana.
Preso no meio do cabo de guerra entre Sophia e a prefeita está um policial chamado Adil (Nassim Lyes), que, como sabem todos aqueles que viram o clássico de Spielberg, eventualmente será convencido por Sophia a fazer algo para impedir a próxima carnificina – e, pior, diante da mídia mundial. Mas será tarde demais?
E o que é pior: a cientista decobre que o tubarão fêmea evoluiu para a partogênese: ela não precisa do macho para se reproduzir. Transformando as famosas catacumbas de Paris em ninho para centenas de filhotes!
Um filme-catástrofe insano
O filme é de uma insanidade impressionante e que termina com uma sequência que lembra os filmes-catástrofes de Roland Emmerich.
Uma insanidade que guarda ironias significativas e evidentes conexões com o zeitgeist europeu inegurança em relação ao futuro e dominado pelo medo coletivo – certamente, a maior crise desde a Segunda Guerra Mundial e o pânico nuclear da Guerra Fria.
Seguindo o roteiro de ironias, a primeira é uma réplica da Estátua da Liberdade em uma da pontes sobre o rio Sena. O enquadramento no filme é significativo: primeiro pela alusão norte-americana – afinal, a produção francesa baseia-se no espírito norte-americano hollywoodiano e spielberguiano. Toma emprestado todo os tropos de Jaws e adapta a uma grande cidade cortada por um rio emblemático.
Mas talvez seja mais do que isso. Toda a tensão europeia atual vem de uma nova Guerra Fria, outra vez liderada pelos EUA através da OTAN. Numa guerra que acontece num país limítrofe à Europa Ocidental.
A proximidade de um mega-evento como os Jogos Olímpicos só aumenta a tensão e ansiedade coletivas – somado à subida de temperatura política no Oriente Médio com o genocídio israelense em Gaza e a ameaça da volta ao recente cenário de atentados terroristas na Europa.
Por isso, nada melhor do que espiar todo esse mal-estar no objeto fóbico do tubarão – com uma pitada de evolucionismo darwiniano – a epígrafe que abra o filme é uma citação do próprio Darwin sobre evolução e adaptação das espécies.
O zeitgeist do filme-catástrofe
Acompanhando o gráfico abaixo, podemos observar a confirmação da tese de Ignácio Ramonet: os filmes-catástrofe correspondem imaginariamente ao efeito de deslocamento, isto é, fixar o vetor da crise como uma calamidade de ordem natural para, dessa maneira, despolitizar os acontecimentos.
O primeiro pico de produções está no ápice da guerra fria com a ameaça nuclear dos anos 1950 e começo da década de 1960.
Nos anos de 1970 vemos a consolidação do gênero com Filmes sobre catástrofes (incêndios, maremotos, terremotos, panes tecnológicas, enchentes etc.) que surgiam de repente e abalavam a harmonia de uma comunidade começam a se multiplicar desde o filme Aeroporto (1970). Seguem-se O Destino de Poseidon (1972),Terremoto (1974), Inferno na Torre (1974), Heat Wave (1974), Aeroporto 1975, Flood! (1976) entre outros.
Depois de décadas de crescimento e estabilidade econômica no pós-guerra, os anos 1970 foram marcados pela aceleração da inquietude com a crise do petróleo associado às sucessivas derrotas norte-americanas do Vietnã, conflitos raciais, o escândalo de Watergate e a moratória disfarçada de Nixon ao romper o acordo de Breton Woods e decretar o fim do lastro-ouro para o dólar.
Após as crises dos anos 1970, segue-se a era de ouro das políticas neoliberais da era Reagan e Thatcher nos anos 1980 e a estabilidade econômica mediante a socialização dos prejuízos pela dilapidação do Estado. Em uma década triunfante coroada com a queda do Muro de Berlin e o início da ordem global, despenca a produção de filmes desse gênero. O gênero será retomado na segunda metade dos anos 1990, época das primeiras grandes crises financeiras sistêmicas e globais: a crise do México em 1995, a crise das bolsas asiáticas em 1997-98 e o calote russo em 1998.
A retomada dos filmes-catástrofes vem com filmes como IndependenceDay (1996), Daylight (1996), Twister (1996), Titanic (1997), Volcano (1997), O Inferno de Dante (1997), Impacto Profundo (1998) entre outros.
E na segunda metade dos anos 2000 com uma nova onda de instabilidade pela explosão da bolha especulativa imobiliária dos EUA em 2008 e o derretimento da Zona do Euro a partir de 2009, experimentamos um novo pico de filmes catástrofes: Cloverfield – Monstro (2008), Fim dos Tempos (2008), A Estrada (2009), 2012 (2009), A Epidemia (2010) etc. E a onda de filmes continua na década de 2010 como reflexo da demora da retomada da economia mundial: Invasão do Mundo: A Batalha de Los Angeles (2011), Ataque ao Prédio (2011) ou O Impossível (2012).
E os anos 2020 começam com a pandemia global e, agora, o ressurgimento da Guerra Fria com a invasão da Ucrânia pela Rússia.
Portanto Sob as Águas do Sena é um Jaws transferido para um rio. O filme trás algumas atualidades como quando sabemos que o enorme tubarão fugiu das mudanças climáticas e o plástico jogado nos oceanos. Mas repete o velho argumento de todo o filme-catástrofe: comentários sobre jogos políticos que custam vidas.
Talvez por ser uma produção europeia, o filme foge de dois clichês básicos desse subgênero: a luta da sobrevivência de uma família ou casal que tenta e reconciliar em pleno fim do mundo (no filme a heroína já perdeu o marido) e a “quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem” – o final e de uma catástrofe tão absurda que só pode ser mesmo um teaser para uma continuação.
Ficha Técnica |
Título: Sob às Águas do Sena |
Diretor: Xavier Gens |
Roteiro: Yannick Dahan, Maud Heywang, Xavier Gens |
Elenco: Bérénice Bejo, Nassim Leys, Léa Léviant |
Produção: Let Me Be |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2024 |
País: França |