Hoje uma nova operação Lava Jato seria impossível. A agenda da guerra híbrida mudou: enquanto a primeira fase (as “primaveras” e “revoluções coloridas”) foi marcada por operações psicológicas, nesse momento a guerra híbrida entrou no modo Guerra Cognitiva (CogWar). É o que mostra o relatório resultante de painéis de discussões da OTAN “Mitigating and Responding to Cognitive Warfare”, de 2023. Enquanto as PsyOps visavam a influência das crenças, a CogWar age sobre cognições, excesso sensorial e perceptivo; saturação da atenção e geração de viéses cognitivos. Trata-se agora tornar o debate público irracional, forçando vieses baseados em religião, valores e costumes. O “PL do Estupro” é um exemplo que cria o chamado “efeito firehose”, aversão à política e despolitização.
Esse humilde blogueiro recentemente teve acesso a um documento da OTAN de 2023, através do nosso leitor Ricardo Oliveira. Trata-se de um relatório resultante de grupos de trabalhos formado por representantes do EUA, Alemanha, Reino Unido, Itália e Países Baixo em torno da The NATO Science and Technology Organization. Debates dentro de painéis sobre temas “Human Factors and Medicine” e “Information Systems and Technology”.
O título do relatório: “Mitigating and Responding to Cognitive Warfare” (“Mitigando e Respondendo a uma Guerra Cognitiva”, numa tradução livre - para acessar o documento clique aqui.
O relatório parte de um curioso pressuposto que, aliás, foi o memo utilizado pelas Forças Armadas brasileiras: o país está sob o ataque de uma guerra híbrida desfechada por inimigos externos: as agências do comunismo viral do globalismo (ONGs, ONU etc.). Portanto, cabe à inteligência militar compreender esse método de guerra assimétrica para melhor enfrentá-la.
Não obstante o fato de que foi na chamada missão de paz no Haiti que os militares brasileiros tiveram contato com esse conceito da inteligência norte-americana para desenvolve-lo contra o próprio inimigo interno na guerra híbrida brasileira que culminou no golpe militar híbrido com a vitória eleitoral de Bolsonaro em 2018.
O mesmo ardil repete-se como pretexto para Guerra Fria 2.0 promovida pela OTAN: Putin está na ofensiva contra o Ocidente com uma nova arma de guerra assimétrica: a guerra cognitiva – quando ironicamente é o inverso: as black ops da CIA e OTAN estão desenvolvendo estratégias cognitivas para Incentivar divisões, conflitos e separatismos num país que tem cerca de 200 etnias.
Estratégia traçada para a OTAN desde o tempos do scholar americano Zbigniew Brzezinsk – expansão da OTAN até a Ucrânia e a descentralização territorial da Rússia.
Não por acaso, no mesmo dia do ataque de mísseis contra civis Sebastopol, na Crimeia, ocorreu um ataque terrorista contra igrejas ortodoxas e sinagogas no Daguestão, no leste do Cáucaso russo.
O relatório da OTAN observa que a “CogWar” não é necessariamente um conceito novo, mas ressurge como uma evolução no campo das guerras assimétricas: “um produto da integração e confluência de muitos avanços tecnológicos, assim como o incremento do acesso à informação e tecnologia”. E acrescenta: “CogWar eleva os já bem conhecidos métodos de guerra a um novo nível na alteração e moldagem das formas de pensamento, reação e tomadas de decisão humanas”.
Guerra Híbrida contra o “comunismo viral”
O documento detalha que a Guerra Cognitiva representa a convergência de um grande arco de sistemas como Inteligência Artificial, Machine Learning, neurociências, biotecnologias e outro aprimoramentos que, obviamente, estariam sendo usados pelos “inimigos da OTAN” contra o Ocidente.
Assim como Marx inverteu Hegel de ponta-cabeça para por a dialética numa perspectiva materialista, devemos também ler esse relatório no sentido inverso: na verdade a OTAN eufemisticamente está falando dela mesma, sobre os aprimoramentos das black ops que nas primeiras décadas desse século se iniciaram com a promoção das “primaveras” e “revoluções coloridas” ao longo do planeta. A partir do Departamento de Estado norte-americano e think tanks geopolíticos como Foreign Affairs, Council Foreign Relations ou Atlantic Council.
Desde 2013, esse humilde blogueiro vem detalhando os movimentos da guerra híbrida brasileira, organizados cronologicamente no livro “Bombas Semióticas na Guerra Híbrida Brasileira de 2013 a 2016: Por que Aquilo Deu Nisso” – clique aqui.
Esse eufemístico relatório da OTAN aponta para um novo aproach na guerra híbrida. Este Cinegnose acredita que as últimas bombas semióticas que estão sendo detonadas e repercutidas no sistema midiático brasileiro (bombas identitárias neoliberais progressistas) estão síncronas com a CogWar projetada pela OTAN contra a Rússia.
O relatório “Mitigating and Responding to Cognitive Warfare” apresenta um gráfico que didaticamente traça as diferenças entre o campo da operações psicológicas clássicas e o domínio da guerra cognitiva (diferenças entre PsyOps e CogWar), conforme podemos ver abaixo:
Na coluna da PsyOp (“Influência motivada”) temos as seguintes características: ação sobre crenças; percepções distorcidas; ilusão cultural; medos e ansiedades; fraqueza ou força de personalidade; repressão.
E na coluna CogWar (“Desabilitação Cognitiva”): ação sobre cognições; excesso sensorial e perceptiva; saturação atencional; erros de julgamento; tunelagem da atenção, viéses cognitivos.
As operações psicológicas clássicas são de natureza diversionista. Operam em agenda setting midiática (Consonância, Acumulação e Onipresença), criando uma percepção distorcida obre qualquer tema pela ausência de informação contraditória no sistema.
Por isso é uma ação sobre crenças – a tomada de decisão a partir de informações diponíveis nesse sistema sem contraditório. Criando o Efeito Dunning-Kruger: Indivíduos com pouco conhecimento sobre um assunto acreditam saber mais do que especialistas por estarem constantemente abastecidos midiaticamente por clichês, sofismas e frases prontas desse sistema sem o contraditório. O que reforça ainda mais a ignorância, ao ponto de se tornar incapaz em reconhecer o próprio erro.
O efeito agenda setting acaba reforçando medos e ansiedades que por fim fortalece a crença como boia de salvação num mar de incertezas.
O diversionismo está na estratégia cortina de fumaça: o desvio da atenção para questões menos relevantes. Ou a normalização daquilo que deveria ser considerado crítico ou anômico.
Da Lava Jato ao PL do Estupro
A Operação Lava Jato foi uma clara PyOp na guerra híbrida brasileira.
Impondo-se a estratégia midiática de agenda setting (Consonância, Acumulação e Onipresença) blindou-se o sistema do contraditório. Enquanto no paralelo crescia o medo e ansiedade com protestos nas ruas e a crise econômica autorrealizável no governo Dilma. Criada por essa mesma estratégia de agendamento midiático.
Sua natureza diversionista era clara: enquanto a indignação era direcionada para “o maior esquema de corrupção da História”, impunha-se o objetivo geopolítico final de qualquer guerra híbrida: a destruição do softpower nacional – cadeia produtiva de gás e petróleo, programa nuclear brasileiro, engenharia nacional e indústria naval.
A questão é que a operação psicológica ainda baseia-se na moldagem da crença a partir das notícias e opiniões impostas por um sistema midiático hegemônico. A ascensão da “Vaza-Jato” e o crescimento das denúncias sobre o modus operandi promíscuo entre juízes, procuradores e mídia, sincrônico com a mudança da conjuntura política, relativizou a “influência motivada” da PsyOp.
Utilizando-se dos mesmos sistemas midiáticos, tecnológicos e informacionais, a Guerra Cognitiva eleva a guerra híbrida a um outro nível: a desabilitação da própria capacidade de julgamento ao acionar o gatilho dos pensamentos automáticos e viéses cognitivos.
O melhor exemplo da CogWar em progresso é a atual polarização criada pelo chamado PL do Estupro – PL 1904/2024 que altera o Código Penal e estabelece de 6 a 20 anos de prisão para mulheres que, vítimas de estupro, fizeram aborto após 22 semanas de gestação.
Restrição do direito das mulheres e nova era medieval! Manifestantes saem às ruas em protesto contra um projeto de lei de flagrante motivação fundamentalista religiosa, diretamente da chamada “Bancada da Bíblia” do Congresso.
Um defensor do PL, o deputado federal Cezinha da Madureira (PSD-SP) em “debate” no canal Globo News, confrontado com número de pesquisas DataFolha e Genial/Quaest contra o projeto, repondeu: “minha pesquisa são os versículos da Bíblia” – clique aqui.
Esse é o cerne da CogWar: direcionar o debate público para viéses cognitivos que tornam qualquer discussão irracional – a “tunnel vision” ou tunelamento da atenção, descrito pelo relatório da OTAN.
Debate impossível: "Minha pesquisa é a Bíblia" |
Crenças religiosas ou outras de foro pessoal ganham o status de debate público, contaminando as demais pautas legitimamente públicas (política econômica, autonomia do Banco Central, política de privatizações, desenvolvimentismo versus neoliberalismo etc.). Levando ao objetivo final de toda guerra cognitiva: o erro de julgamento pela impossibilidade de consenso.
Por ser um debate irracional (dominado por vieses cognitivos – religiosos, valores, costumes etc.) cria a polarização e seu efeito cascata: a crise da ideia de representação política e, por fim, da própria existência ou utilidade da democracia. Até mesmo a burguesa e liberal.
Esse debate impossível gera o “excesso sensorial, perceptiva e saturação atencional” descritos pelo relatório da OTAN.
Nós ainda poderíamos acrescentar mais um efeito deletério da CogWar: o Efeito Firehose: a estratégia de saturar o debate com vieses cognitivos, fazendo com que a realidade se torne subjetiva. A ideia é justamente criar uma espiral incontrolável de interpretações de tal forma que faça as pessoas não acreditarem mais em fato algum.
Esse é o rescaldo da Guerra Cognitiva: a aversão à política e a despolitização.
A operação psicológica da Lava Jato conseguiu, junto com a mídia hegemônica, dar visibilidade e pertinência à extrema-direita. Foi a cabeça de ponte do golpe militar híbrido e, por fim, a eleição do Congresso mais reacionário da história da República.
Congresso que agora é principal arma da Guerra Cognitiva: impedir qualquer debate racional ao transformar religião, valores e costumes em pautas de pertinência pública. Despolitizar qualquer tema ao reduzir à polarização do viés cognitivo.