À primeira vista, o filme produzido pelo mestre do terror Dario Argento e dirigido pela estreante Charlotte Colbert, “She Will” (2021) parece ser mais uma produção mainstream dentro da onda identitarista apropriada pela grande mídia e discurso corporativo – o chamado “neoliberalismo progressista”. Uma atriz idosa confronta-se com os fantasmas do assédio sexual quando, jovem, estreou em um filme cujo remake está para ser lançado. Buscando fugir de todo hype, viaja para as Terras Altas na Escócia. Lá encontrará as origens simbólicas de toda a ordem patriarcal: a lama primordial de uma floresta composta por cinzas humanas das vítimas das inquisições e o carbono negro da queima do carvão industrial. Por isso, “She Will” vai além: Uma filme sobre abuso infantil, assédio sexual e envelhecimento feminino envolta na lama daquela floresta: a raiz antropológica de todas as desigualdades – a contradição Natureza vs. Sociedade, a Mãe Terra vs. o Deus Capital.
Já foi a época em que as lutas feministas, raciais e questões de gênero estavam no campo de esquerda ou progressista. Hoje foram apropriadas pelo discurso corporativo, grande mídia, indústria publicitária e de entretenimento.
Para a pesquisadora Nancy Frazer, essa troca semiótica de sinais resultou no aparente oxímoro do “neoliberalismo progressista”, com origens históricas bem precisas na era Bill Clinton nos anos 1990 e o surgimento dos “Novos Democratas” nos EUA. Um novo “New Deal” não mais com setores sindicalizados, indústria e movimento operário, mas com empresários, classe média dos subúrbios e novos movimentos sociais. Todos emprestando um carisma jovem com a boa fé moderna e progressista – a aceitação da diversidade, empoderamento, multiculturalismo e os direitos das mulheres – (FRASER, Nancy. “The End of Progressive Neoliberalism”, Dissidente Magazine, 02/01/2017 – tradução aqui).
Ao mesmo tempo em que governo e grande mídia apoiavam esses ideais progressistas, a economia era entregue à Goldman Sachs e a desregulamentação bancária que prepararia terreno para as crises cíclicas até chegar ao crash de 2008.
O identitarismo neoliberal progressista criou um discurso “woke” que associa expressões como “empoderamento”, “diversidade”, “não discriminação” e “potência” com a ascensão social meritocrática. Esse discurso até apresenta uma suposta crítica ao “patriarcado”, personalizado em vilões woke exploitation como o chefe assediador, o selecionador de RH preconceituoso ou o gerente homofóbico de um restaurante.
Porém, há muito a verdadeira ordem patriarcal deixou de ser conspirada por machões inflexíveis, capitalistas assediadores ou homofóbicos enrustidos. Essas tristes figuras são apenas representantes de um patriarcado renitente. Porque o verdadeiro patriarcado foi codificado em entidades abstratas, invisíveis, porém com efeitos muito concretos: o Capital, o Poder, a Racionalidade e outras entidades de capilarização de um poder ainda masculino. Porém o “masculino” como um lugar vazio e codificado, que pode ser ocupado por qualquer representante de raça, gênero etc. Um lugar tão abstrato que produzira mais oxímoros sob o guarda-chuva do master-oxímoro “neoliberalismo progressista”: mulheres machistas, gays assediadores e assim por diante.
Pois o verdadeiro movimento progressista nesse campo “cultural e de costumes” necessitaria fazer uma crítica antropológica do maior inimigo dos movimentos indentitários: a ordem do patriarcado.
Produzido pelo mestre do terror Dario Argento e dirigido pela estreante Charlotte Colbert, She Will(2022) é, à primeira vista, mais um produto mainstream dentro dessa onda “woke” ou “neoliberal progressista” na qual protagonistas mulheres têm que se confrontar com o terror promovido por homens assediadores e estupradores.
Porém, um olhar mais atento vai perceber que o roteiro da dupla Carlotte Colbert e Kitty Percy está cavando muito mais fundo, literalmente: vai buscar nas Terra Altas da Escócia, misturado na terra e lama de uma floresta sombria, as marcas históricas da violência patriarcal. Para começar, as cinzas de bruxas queimadas pelo obscurantismo religioso. Mas juntos com essas cinzas estão as “penas das bruxas”: na verdade, o carbono negro resultante da queima do carvão da era da Revolução Industrial e a solidificação do Capitalismo.
Uma narrativa sobre abuso infantil, assédio sexual e envelhecimento feminino envolta na lama primordial daquela floresta: a raiz antropológica de todas as desigualdades – a contradição Natureza vs. Sociedade, a Mãe Terra vs. o Deus Capital.
O Filme
She Will abre com uma diva do cinema envelhecida, Verônica (Alice Krieg) com seus turbantes e casacos de peles, viajando de trem para uma área remota na Escócia para o que ela acredita ser um “retiro solitário". Ela acabou de passar por uma mastectomia dupla, e todos tabloides estão especulando sobre o que poderia ter "dado errado" com sua cirurgia não revelada.
Ainda envolta em bandagens, Verônica tem uma enfermeira viajando com ela, uma jovem de cabelos brancos descoloridos chamada Desi (Kota Eberhardt), que a princípio mostra irritação com a maneira arrogante de sua empregadora, mas logo crescerá a sua empatia pela dor física e psíquica de Veronica.
Ao chegar ao seu destino, Verônica fica horrorizada ao descobrir que no casarão está sendo realizado uma espécie de workshop liderado por um artista pomposo e excêntrico chamado Tirador (Ruper Everett) que logo vai se declarando “feminista”. Para desespero da velha atriz, todos ali a reconhecem. O que se torna o pior lugar possível para se recuperar a cirurgia.
Verônica e Desi recebem sua própria cabana rústica, cercada por fileiras de árvores altas. Uma manhã, Desi acorda e descobre que uma lama pegajosa se infiltrou na cabana, deslizando pelas encostas e pelas paredes. Ela limpa. Essa lama continua voltando, porém, dominando os terríveis sonhos vívidos de Veronica, onde ela vagueia pela floresta, testemunhando a queima de bruxas e outras atrocidades, com a lama se enrolando e agarrando os dedos dos pés.
Mas nesses sonhos vívidos Verônica vê muito mais. Aos 13 anos ela sofreu abuso sexual nas mãos do diretor de seu filme de estreia: Eric Hathbourne (Malcom MacDowell). Os traumas voltam ainda mais fortes com a notícia que será feito um remake desse filme com outra jovem atriz. E com o mesmo diretor.
Ao lado dos tropos tradicionais do gênero (levitações, telecinesia) está a conclusão óbvia de que diante da masculinidade tóxica as mulheres devem se unir – ainda agravada com uma tentativa de estupro de Desi por uma companhia masculina em um bar local – Owen, interpretado por Jack Greenlees.
Aos poucos Veronica vai descobrindo seus próprios poderes que provêm daquela lama primordial de cinzas humanas e industriais. Ela se fortalece e fica pronta para o seu acerto de contas com o passado.
A chave de compreensão do quão a dupla de roteiristas que ir mais fundo na estória, para além de um conto intergeracional sobre mulheres enfrentando a masculinidade tóxica, está na sequência em que Tirador reúne seus alunos de workshop em torno de uma fogueira para um evento comemorativo local: a da vitória da Racionalidade sobre o obscurantismo que as bruxas representavam no passado.
O simbolismo de She Will fica claro: de um lado os homens, o patriarcado, a indústria e a racionalidade; e do outro, as mulheres e as forças da Natureza. De um lado o Poder e o controle e devastação da Natureza; e do outro a vingança da Natureza personificada na lama primordial que envolve os pés de Verônica, conferindo-lhe poderes para o acerto de contas com seus traumas.
“Na medida em que o homem domina a Natureza, domina a si mesmo”, escreviam Adorno e Horkheimer sobre os princípios antropológicos do racionalismo ocidental no livro “Dialética do Esclarecimento”. O fato de o homem ter se tornado superior à Natureza tornou possível uma sociedade assentada na superioridade do homem sobre o homem – o outro (classe social, gênero, raça etc.) torna-se somente parte da Natureza já subjugada.
A primazia da técnica e da racionalidade, forma elaborada da entidade abstrata Poder (a origem antropológica da ordem patriarcal), é a origem da contradição do esclarecimento - as tecnologias aumentam o domínio sobre a Natureza e o conforto para a espécie humana diante das intempéries e ameaças naturais; mas também intensificou as formas de exploração, dominação e controle.
She Will alcança literalmente a “raiz” antropológica do patriarcado renitente personificada nas figuras tóxicas masculinas como Tirador, Eric Hathbourne e Owen. A mescla de cinzas humanas com o carbono residual do carvão industrial no solo da floresta é o testemunho da dialética sombria entre progresso e a dominação.
Ficha Técnica |
Título: She Will |
Diretor: Charlotte Colbert |
Roteiro: Kitty Percy, Charlotte Colbert |
Elenco: Alice Krige, Malcolm McDowell, Kota Eberhardt, Rupert Everett |
Produção: Filmgate Films, Pressman Films, Intermission Films |
Distribuição: IFC Midnight |
Ano: 2021 |
País: Reino Unido |