Lula foi impecável e vibrante. Mas para aqueles que ainda lembram do jornalismo de guerra da Globo, com seus “colonistas” e âncoras no modo “pitbull hidrófobo espumando de raiva” foi surpreendente o comportamento de Bonner e Renata Vasconcellos: uma espécie de fastio ou previsibilidade nas perguntas, como se estivessem fazendo um condensado ou “digest” de todos os clichês dos anos de guerra híbrida: corrupção, MST, Venezuela, Cuba... Na verdade, diante da ascensão irresistível de Lula, a Globo desistiu de confrontá-lo. A entrevista parece que serviu para um outro propósito subliminar: o reforço de pressupostos que servirão de munição para um hipotético segundo turno e além: “foi inocentado, mas não é inocente”; o presidencialismo de coalizão é intrinsecamente corrupto; polarização política inevitavelmente gera ódio e violência. Nas entrelinhas, a entrevista visou outra coisa: a desmoralização da Política. Para a grande mídia o front agora é outro: se ganhar, não vai governar!
Certamente os leitores devem lembrar da entrevista da então dupla de âncoras do Jornal Nacional, William Bonner e Fátima Bernardes, entrevistando Lula em 2006, no Palácio da Alvorada, em plena crise do mensalão. Foram 11 minutos que se transformaram numa discussão de Bonner com o presidente, batendo o bumbo apenas no tema corrupção. Discussão que no auge do conflito o âncora teve que ser sutilmente contido por Fátima Bernardes, interrompendo o ímpeto inquisidor do companheiro de telejornal – atiçado pelo Diretor de Jornalismo da emissora, Ali Kamel.
Como, também, não lembrar do indefectível croma key com aquele duto enferrujado jorrando dinheiro, que emoldurava cada vazamento seletivo dos procuradores da Lava Jato ao telejornal da Globo.
Mais ainda, uma edição inteira do Jornal Nacional em 2018 fazendo pressão pela prisão de Lula para sua imediata retirada da eleição presidencial – na oportunidade, Bolsonaro virou a única opção emergencial com o derretimento do candidato Alckmin, a primeira opção da grande mídia, da banca financeira e da Faria Lima.
Portanto, esperava-se que mais uma vez os poderosos canhões semióticos da Globo seriam apontados e disparados contra Lula na bancada do Jornal Nacional nesta quinta-feira. Todos os lados do espectro político estavam ansiosos por uma entrevista que poderia ser um ponto de viragem nesse tardio início de campanha eleitoral – aliás, por que, a cada eleição, as campanhas começam cada vez mais tarde e estão progressivamente mais “engessadas”?
O que se viu na quinta foi Lula relaxado, confiante, assumindo as rédeas da entrevista e criando espaços para demonstrar toda a sua experiência de governo quando presidente da República. Sua estratégia de demonstrar que era mais do que um candidato, mas um estadista, deu certo.
Mas o que realmente surpreendeu (partindo do Grupo Globo que foi uma das peças-chave em todo esforço na guerra híbrida brasileira em detonar diariamente bombas semióticas cujo resultado foi colocar as classes médias de verde e amarelo nas ruas empoderada pelo protofascismo do “Brasil profundo”) foi o tom preguiçoso e, até certo ponto, protocolar da dupla de âncoras do JN.
Entrevista do JN com Lula em 2006 |
Nada parecido com os anos de “colonistas” e apresentadores de telejornais que, atiçados pelo ponto eletrônico, pareciam pitbulls hidrófobos espumando de raiva. Pelo contrário, o percurso das perguntas foi previsível. Mais parecido como um grande condensado de todas as pautas anti-Lula dos anos de guerra semiótica, do Mensalão ao Petrolão da Lava Jato.
A entrevista
A entrevista começou com Bonner dizendo “o senhor não deve nada à Justiça, MAS vamos falar sobre corrupção”. A utilização da conjunção coordenada adversativa “mas” subliminarmente introduzia a principal tese de Merval Pereira e outros comensais da emissora: a de que Lula é foi inocentado, mas não é inocente. A ideia de que Lula não deve mais nada à Justiça graças a “tecnicalidades” ou “filigranas jurídicas”.
Este humilde blogueiro esperava que essa abertura da entrevista seria o ponto de partida de mais jogo pesado dos sabujos âncoras da casa, atiçados por Ali Kamel no ponto eletrônico.
Porém, o que se viu foi um previsível roteiro: diversas tentativas de cortar as falas de Lula para quebrar o raciocínio do entrevistado (modus operandi de entrevistas com “esquerdistas”), além dos temas “clássicos”: “E a Dilma, hein?”... “E a Venezuela, hein?”... “E Cuba, Hein?”... “E o MST, hein?”. Um previsível apanhado de todos os clichês que se esperaria para cercar Lula. Mas tudo o que ficou foi uma sensação de déjà vu.
Claro que as tentativas de corte de raciocínio deram erradas, devido ao rolo compressor discursivo do entrevistado – naquela noite, Lula estava particularmente inspirado.
Até ocorreram tímidas tentativas de trazer alguma novidade discursiva – temas que deveriam ser abordados com Bolsonaro, como orçamento secreto e intervenção na PF, foram jogados contra Lula.
Agora sabemos que esses e mais outros temas como a corrupção de Michelle e dos filhos foram tirados da sabatina de segunda-feira num acordo com a Globo, como revelou o jornalista Ricardo Noblat: “"Nada de Fabrício Queiroz, rachadinha, mansão milionária de Flávio em Brasília, depósitos na conta de Michelle e coisas afins", escreveu Noblat. Afinal, Bolsonaro sabe dos dois calcanhares de Aquiles da emissora: a renovação da concessão da Globo ainda esse ano e o nome de Dario Messer (o “doleiro dos doleiros”, escrito na mão de Bolsonaro) que em delação afirmou que lavava dinheiro dos irmão Marinho, donos da Globo – clique aqui.
Jogo subliminar
Parece que o verdadeiro jogo da entrevista foi mais subliminar, o de reforçar certos pressupostos que servirão de munição, principalmente para um cada vez menos hipotético segundo turno ou mesmo vitória de Lula:
(a) Insistiram com a pergunta “que lição o PT tirou?”, variação do “foi inocentado, mas não é inocente”;
(b) Lula será prisioneiro do grande mal do presidencialismo: o “toma-lá-da-cá”. Seu destino será repetir o mesmo jogo político de Bolsonaro com o Centrão.
(c) Ambos, Bolsonaro e Lula, são os dois lados da “polarização”, que gera ódio e violência – aliás, cobrado de Lula quanto à militância do seu partido. Como se a primeira vítima não fosse um quadro do PT, assassinado por um militante bolsonarista em Foz do Iguaçu.
Essa é a pedra de toque ideológico do jornalismo da Globo: a desmoralização da Política.
A pedra de toque ideológica: a Política é intrinsecamente corrupta |
Lula foi hábil em, educadamente, mostrar para Renata Vasconcellos que isso não é “toma-lá-dá-cá”, é “usurpação do poder”: Bolsonaro não manda mais no País, mas sim Arthur Lira e seu orçamento secreto. Isso não é um mal inerente ao presidencialismo de coalizão, mas a oportunidade de Bolsonaro construir sua base de sustentação política às custas da renúncia do próprio poder Executivo – e acrescentaria, para a construção da base de sustentação do Partido Militar e o seu golpe militar híbrido cujo desfecho ocorreu em 2018.
Por que pedra de toque ideológica? Com a irresistível ascensão de Lula, a Globo desistiu de confrontar diretamente o líder petista, como fez em todos os anos de guerra híbrida. Agora, a questão é negar in totum a Política: o jogo político mostrado para a patuleia como irracional, viciado e intrinsecamente corrupto. Política é aquilo que atrapalha a racional gestão dos “mercados” (eufemismo para designar a banca financeira), afasta investidores estrangeiros e assim por diante.
Como os “colonistas” da casa martelam diariamente, ano eleitoral só atrapalha a Economia. Principalmente quando o País tenta a retomada econômica pós-pandemia – a “Pandemia”, o álibi para todos os crimes econômicos do anarcocapitalismo de Paulo Guedes.
Em suma: de um lado tivemos uma performance vibrante e impecável de Lula que soube aproveitar a oportunidade depois de anos de invisibilidade (pelo menos para o jornalismo corporativo); e do outro uma espécie de fastio ou preguiça de Bonner e Renata Vasconcellos, transformando o roteiro da entrevista em um condensado ou “digest” de todos os clichês de anos de jornalismo de guerra.
Agora o front é outro: se Lula ganhar, NÃO VAI GOVERNAR.