sábado, abril 13, 2019

Transgressão e domesticação do cinema discutido pelo Cinegnose em Simpósio no Rio


A invenção do cinematógrafo pelos irmãos Lumière causou muito barulho na virada do 1900 – abalou o paradigma da estabilidade da realidade com o registro inédito de objetos e pessoas em movimento. Gerou na Filosofia a Fenomenologia de Husserl, Bergson e Whitehead. Mas o potencial transgressivo do primeiro cinema foi domesticado pela indústria cinematográfica com as imagens narrativas. A posterior ascensão do gnosticismo pop no cinema na virada do 2000 teve o potencial de retomar a força transgressiva do dispositivo cinematográfico. Esse foi o tema discutido por este editor do “Cinegnose” no Simpósio “A Transfiguração em 1900” nesse última sexta-feira no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas no Rio de Janeiro – “Cinema 1900/2000: Da Caverna de Platão à Matrix”.

Mais de um século depois parece que só agora temos elementos necessários para compreender a intensidade dos acontecimentos que marcaram a verdadeira transfiguração da virada dos 1900: eletricidade transformada em informação no telégrafo e telefone, a modernidade urbana, as descobertas científicas da natureza da luz e do campo magnético que determinaram a configuração da Teoria da Relatividade e a Física Quântica. Além de repercussões no campo da Lógica e da Filosofia.
E o cinema teve um papel importante nessas transformações de virada de século.  Esse foi o tema que este humilde blogueiro levou para o Simpósio “A Transfiguração em 1900” realizado nos dias 11 e 12 de abril no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, Urca, Rio de Janeiro, promovido pela Revista Cosmos & Contexto e organizado por Nelson Job e Mário Novello.

Este humilde blogueiro e os palestrantes e organizadores Octavio Bonet, Nelson Job, Mário Novello e Auterives Maciel

Sob o título “Cinema 1900/2000: Da Caverna de Platão à Matrix”, este editor do Cinegnoseprocurou fazer um paralelo entre as duas viradas de século – no final de século XIX, a invenção do cinematógrafo de Lumière e a revelação de uma realidade sensorial até então inédita para as pessoas; e a virada para o século XXI com o apogeu do “Gnosticismo Pop”, o momento em que o mainstream hollywoodiano descobriu as narrativas gnósticas como uma inesperada fórmula de entretenimento.
Ao colocar de forma inédita em movimento pessoas e objetos (até então somente conhecidos nos instantâneos fotográficos, o cinema pôs em crise o paradigma da estabilidade da matéria ao fazer aparecer o mundo descontinuado em fotogramas sucessivos na película.
Como essa nova visão dos recônditos da realidade, como uma espécie de microscópio da vida modernidade urbana, impactou a filosofia e a cultura com o aparecimento da Fenomenologia (a “segunda metafísica”) de Edmund Husserl, Henri Bergson e Alfred Whitehead. O cinema impactou ao mostrar que a realidade é fenômeno, mudança, afecção. Mas que, ao mesmo tempo, guarda segredos no intervalo da realidade descontínua dos fotogramas – a “duração-qualidade”, o “tempo puro”.
Se o dispositivo cinematográfico é a própria atualização da Caverna de Platão (ou seria mesmo a própria consciência de que vivemos em uma simulação ao criarmos nossa própria meta-simulação?), o cinema também revelaria uma dimensão da percepção que nos faria escapar dessa caverna.

Do cinema domesticado ao cinema gnóstico

Mas se o primeiro cinema (1850-1910) tinha esse potencial de revelar segredos do tempo e espaço nos quais se debruçaram Bergson e Whitehead (em busca daquilo que antecede a consciência – Tempo, sensação, afetos etc.),  logo depois ele foi domesticado pela indústria cinematográfica  e o star systemque submeteram às imagens às narrativas – clichês, finais felizes, começo, meio e fim com causas e consequências.
As gags visuais anárquicas que produziam o cinema-acontecimento era perigoso demais: poderia perturbar a rotina lazer-trabalho da ordem cotidiana. Acusado de produzir um “nervosismo insalubre”, logo o cinema foi enquadrado, deixando para trás a energia que impactou a filosofia e a cultura.
O novo revival do Gnosticismo no século XX, após a descoberta dos evangelhos apócrifos gnósticos de Nag Hammadi em 1945, e a repercussão na literatura, cultura pop até chegar ao cinema de massas no final daquele século, deram mais uma vez às imagens cinematográficas a possibilidade de impactar a cultura numa forma análoga à virada de 1900 – e, quem sabe, até colocar em xeque a caverna platônica através das seguintes características:

1 - Mudanças na realidade temporal e espacial

A estrutura narrativa de filmes como Donnie Darko (2002) e O Feitiço do Tempo (The Groundhog Day, 1993) integram mudanças nas estruturas normalmente percebido de tempo e espaço para capturar a essência do dramático através da linha do tempo. Em Feitiço do Tempo, o personagem principal revive o mesmo dia repetidas vezes até que ele atinja uma verdadeira compreensão de si mesmo e do mundo. Em Donnie Darko o protagonista descobre que o plano temporal em que ele vive pode ser revertido e que ele tem poder para fazer isso, isto é, transcender seu plano temporal através de um vórtice e mover-se livremente através de outros planos alterando destinos pré-determinados. O filme chama a atenção pela temporalidade artificial. Predomina uma atmosfera de que a realidade é composta por eventos possíveis que podem ser alterados da perspectiva de outras sequências fabricadas.

2 - A desconstrução da realidade consensual 

A história cuja narrativa percorre a estrutura labiríntica da mente em filmes como Quero Ser John Malkovich (Being John Malkovich,1999) e Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004), ou a narrativa que percorre as camadas da ilusão da realidade em filmes como Matrix (1999 ) conduz o espectador a questionar a natureza da própria realidade. Em “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” seguimos o personagem principal através da eliminação gradual de sua memória e descobrimos que, sem memória, seu mundo, e, talvez o nosso, deixam de existir. Na trilogia Matrix um mundo que se parece muito com o nosso é revelado ser uma alucinação consensual gerada por programa de computador em camadas e camadas de realidades programáveis.

3 – Desconstrução quântica da realidade

Assim como, na física quântica, a realidade é alterada pelo próprio ato de observar, produzindo um paradoxo (vemos uma realidade objetiva ou um evento alterado pelo nosso olhar?), também o cinema vai colocar em xeque o próprio dispositivo da câmera. Filmes como O Quarto Poder (“Mad City”, 1997) e O Pagamento (Paycheck, 2003 ) exploram esse paradoxo. Em O Quarto Podera chegada das câmeras no entorno do museu onde estão reféns altera totalmente a espontaneidade dos fatos, produzidos sucessivas situações metalinguísticas e irônicas. E em O Pagamento a máquina que prevê o futuro paradoxalmente produz o futuro: através de um mecanismo de profecia autorrealizadora o futuro previsto não acontecia porque estava lá, mas porque a sua divulgação fazia o futuro previsto acontecer de fato.

4 - A inter-relação de fatos normalmente percebidos como eventos discretos e sem causalidade 

A narrativa se baseia em estruturas de sincronicidade. Filmes como Magnólia (1999) e Escrito nas Estrelas (Serendipity, 2001) revelam uma misteriosa e mística afinidade entre pessoas aparentemente distintas, situações e eventos. No filme Timecode (2000) esta forma inter-relação da estrutura cinematográfica é levada ao extremo ao filmar quatro histórias diferentes, com personagens distintos e acontecimentos que aparentemente estão relacionados, projetando todas as quatro histórias simultaneamente em uma tela dividida em quatro partes iguais.

5 - A natureza relativa da realidade perceptiva 

Em Amnésia (2000) a perda de memória de curto prazo do protagonista torna-se o tecido e a estrutura da história, levando o público através de um labirinto de desarticuladas experiências perceptivas que levam à revelação a-perspectiva e visceral: a de que nenhuma perspectiva é final.
Portanto, a questão da transcendência no cinema pode ser colocada dentro de uma seguinte tese: como toda obra artística, o cinema trás em sua própria estrutura elementos que buscam a transcendência, o que, por sua vez, acaba criando uma tensão entre a alteridade e as estruturas fixas que a indústria do entretenimento impõe a esse meio.
Por sua natureza de alteridade e de “totalmente outro”, a experiência transcendente causa dor, estranhamento, incômodo e desconforto decorrente da ruptura de uma visão de mundo cotidiana. E é exatamente conter, racionalizar ou minimizar essa experiência latente no medium que busca a indústria do entretenimento. Afinal, após serem acesas as luzes do cinema, devemos voltar à realidade como se nada tivesse acontecido.


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