Outro filme para cinéfilos corajosos. O filme sueco Border (“Gräns”, 2018) nega ao espectador dois princípios básicos da narrativa hollywoodiana: verossimilhança e identificação. “Border” joga com a curiosidade e repugnância do público diante de um estranho casal de protagonistas: Tina é uma policial alfandegária com a capacidade incomum de farejar medo, culpa ou raiva nos passageiros, conseguindo detectar algo ilegal que estejam portando na passagem da fronteira. E Vore é um estranho viajante que atrai a curiosidade de Tina. A “feiúra” e os hábitos estranhos deles (a instrospecção deprimida de Tina e os risos de Vore como se soubesse de todos os apetites reprimidos de Tina) nos causam distanciamento. Mas um distanciamento necessário para refletirmos sobre o tema da “fronteira”: o que separam os gêneros? Qual a fronteira entre o bem e o mal? Entre humanos e monstros? Em uma atmosfera de fábula, Border mostra como a humanidade é incapaz de dar essas respostas. E como os mitos dos contos de fadas retornam para se vingarem de nós.
Dentro dos cânones do realismo cinematográfico hollywoodiano, a verossimilhança de um roteiro e a construção de um protagonista com o qual os espectadores possam se identificar são quesitos fundamentais. De um lado, embora saibamos que tudo que assistimos é ficcional, o roteiro deve ser “realista” ou “verossímil” o suficiente para que suspendamos a incredulidade e aceitemos a ficção.
E do outro, ver e sentir a narrativa a partir dos olhos do protagonista é talvez a condição fundamental para que sejamos absorvidos pela história e sintamos empatia, alegria, medo e torçamos para o herói.
Por isso, assistir ao filme sueco Border(Gräns, 2018), mesmo para aqueles cinéfilos com a mente mais aberta, não é fácil: uma narrativa romântico-fantástica com uma atmosfera de contos de fadas, porém na acepção mais verdadeira de um “conto de fadas” – sabemos que nas suas versões originais esses contos eram cruéis, violentos, abordando questões psíquicas, edipianas, amor materno e duros ritos de passagem para a vida adulta. Problemas que as modernas histórias infantis evitam.
Com um roteiro para lá de inverossímil (de uma aparente história policial de caça a pedófilos, de repente tudo se transforma em um conto fantástico nórdico) e com um casal de protagonistas com aparência monstruosa, recluso, sociopata e nem um pouco cativantes, Border não é propriamente um filme de entretenimento. Porém, esses elementos nos proporcionam o distanciamento necessário para refletirmos o tema do título do filme: “fronteira” – quais as fronteiras entre gêneros, humanos e monstros e o bem e o mal?
Num planeta onde a humanidade parece ser uma praga com toda a sua maldade (no filme, uma rede de pedofilia em uma cidade sueca), personagens dos contos de fadas do folclore escandinavo como os Trolls decidem se vingar dessa erva daninha humana que ocupa a crosta terrestre.
A primeira metade de Border desafia qualquer categorização (com uma paleta de cores azul-séptico mostra um mundo frio e anônimo), para depois empurrar o espectador para um macabro conto de fadas.
O Filme
Border é a história de Tina - Eva Melander, com uma impressionante e realista prótese e maquiagem. Com uma sobrancelha pronunciada, bochechas inchadas e dentes irregulares, ela tem um comportamento inexplicável e uma aparência desagradável. Tina é uma policial da alfândega de um porto de entrada de passageiros vindos de países limítrofes da Suécia, inspecionando bagagens e observando cada um dos rostos que passam por ela.
Tina não é uma policial qualquer porque não precisa de detectores de metais ou equipamentos de raio X. Com o olfato ela é capaz de sentir vergonha, culpa e uma gama de outras emoções nas pessoas. Cada um que passa em frente ao posto alfandegário, Tina fareja à distância e é capaz de acusar portadores de bebidas ilegais, contrabando, armas ou qualquer coisa que esteja portando que, através do cheiro, associe a sentimentos negativos criminosos.
Tina divide sua casa com Roland (Jörgen Thorsson), criador e adestrador de cães destinados a rinhas de luta em casas de apostas. Inexplicavelmente os cães ficam nervosos com a presença de Tina e Roland é indiferente, e mal olha para ela.
Mas, pelo menos, “tem gente por perto”, como ela diz ao seu pai que beira a perda de memória e demência, ao visita-lo numa clínica de idosos.
Sua única atividade realmente prazerosa é caminhar descalça na floresta para se integrar à natureza – estranhamente animais como raposas e alces gostam dela e se aproximam. Esse é o mundo de Tina: uma rotina de introspeção deprimida e inadequação. Seu único contato com a sociedade é através do seu super olfato, útil para a polícia alfandegária.
Mas dois fatos vão mudar a sua vida: um homem é flagrado por Tina com arquivos digitais de pornografia infantil e levado preso; e logo depois, Tina sente um estranho cheiro vindo de um homem chamado Vore (Eero Milonoff), com características físicas semelhantes com as de Tina. Ela fareja algo de errado nele, mas não consegue identificar o porquê. Sua curiosidade por Vore aumentará. Afinal, seu senso olfativo jamais falhou. Tina decide conhece-lo melhor, até o ponto que desestabilizara sua rotina e a própria vida.
A partir desse ponto Border gira em torno da investigação da organização de pornografia infantil e o mistério por trás de Vore. O filme joga com o espectador, entre a curiosidade e a repulsa – as características misteriosas dos protagonistas, um certo horror corporal e seus estranhos hábitos nos distanciam e impossibilita qualquer forma de identificação ou empatia.
Mas aos poucos cria-se uma sensibilidade envolvente entre os dois: Tina expõe sua vulnerabilidade e inadequação, certamente resultado de uma história de rejeição pela sua feiura. Enquanto Vore será o motivador para a sua aceitação pessoal, libertação e descoberta da sua verdadeira identidade.
A vingança da Mitologia – Alerta de Spoilers à Frente
Mas Border adquire aspectos ainda mais estranhos quando se transforma em um conto do folclore nórdico, após uma violenta torsão narrativa: Tina e Vore pertencem a uma casta especial de seres fantásticos: os Trolls. Perseguidos pelos humanos para serem cobaias de experimentos científicos desde os anos 1970, eles são alguns dos poucos remanescentes que sobreviveram.
Tina esqueceu e se adaptou ao mundo humano através de uma família postiça. E Vore é um viajante que trama um cruel tipo de vingança contra os humanos – afinal, para ele a humanidade é uma praga que consome o planeta. E mais irônico: não é preciso grande esforço para destruí-los, já que constantemente matam ou exploram uns aos outros. E, para Vore, a organização de pornografia infantil é a prova disso.
Border é mais um filme nórdico sobre narrativas de inadequações e estranhamentos de seres fantásticos diante do mundo humano: o filme norueguês Thelma (2017) e o sueco Deixe Ela Entrar (2008) são produções anteriores dessa espécie de subgênero escandinavo.
Mas Border explicita algo que estava apenas latente nos filmes anteriores: a tese de que a raça humana é uma doença que precisa ser erradicada da face do planeta – a humanidade mente, mata, explora e destrói tudo ao redor.
Em Border o empreendimento de Roland (criar cachorros para lutas em casas de apostas) e a exploração da pornografia infantil são simbólicos: exemplos da doença humana que assola a Terra.
Parece ser o sintoma desse impasse filosófico pós-moderno: depois da morte dos mitos, de Deus e a tentativa de colocar a Razão (Kant) ou o Contrato Social (Hobbes) como referência do pensamento ético e moral, chegamos a um ponto de esgotamento. Nem a Razão, e nem Contrato Social deu conta de uma sucessão de tragédias históricas como guerras, violência, exploração e desastres ambientais.
Então, o homem volta-se contra si mesmo. E como nos mostra o filme Border, os velhos mitos dos contos de fadas retornam para o acerto de contas.
Ficha Técnica
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Título: Border (Gräns)
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Diretor: Ali Abbasi
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Roteiro: John Lindqvist, Ali Abbasi
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Elenco: Eva Malander, Eero Milonoff, Jörgen Thorsson, Sten Ljunggren
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Produção: Meta Film Stockholm, Spark Film & TV
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Distribuição: TriArt Film
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Ano: 2018
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País: Suécia
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