sexta-feira, abril 19, 2019

Cem dias de guerra semiótica de Bolsonaro e a alternativa transmídia


Marca simbólica, como se fosse uma espécie de lua de mel de um governo recém-empossado com os eleitores, os 100 primeiros dias do Governo Bolsonaro mostraram que o período foi tudo, menos uma lua de mel. Cem dias de guerra semiótica no “modo campanha”:  juntos, Bolsonaro e General Mourão, fazem o jogo hollywoodiano do “bad cop/good cop” para gerar informações e contra-informações, dissonâncias e táticas criptografadas: enquanto o presidente pira, o vice-general baixa a bola e, de repente, vira o centro da racionalidade de um governo supostamente formado por malucos no qual todos parecem bater cabeças uns nos outros. O “wishiful thinking” da esquerda vê um governo desarticulado, mostrando rachaduras aqui e ali. É isso que querem que todos pensem. Um governo que vive do caos, mas um caos com método. Enquanto isso, os “coletes amarelos” da França podem ensinar uma alternativa para a esquerda: a guerra semiótica transmídia.  

No filme Batman: O Cavaleiro das Trevas o Coringa enfrenta um interrogatório na delegacia. Ele tem um ar de enfado e deboche e responde com evasivas para o comissário, que acaba tirando as algemas do Coringa. “Ah!... a velha rotina do policial bom e do policial mau...”, ironiza o sombrio palhaço do crime, como se antecipasse cada passo do jogo do interrogatório.
Nos filmes hollywoodianos essa é o mais manjado clichê dos filmes policiais: a dupla “bad cop”/“good cop”, com algumas variações como, por exemplo, a dupla policial engraçado/sério. Assim como Dom Quixote e Sancho Pança.
É simplesmente incrível que poucos ainda tenham compreendido que nesses 100 dias de governo Bolsonaro, a tática semiótica de “modo campanha” emula essa narrativa hollywoodiana, centrada na dupla Bolsonaro/General Mourão – enquanto o presidente pira, o vice-general baixa a bola e, de repente, vira o centro da racionalidade de um governo supostamente formado por malucos no qual todos parecem bater cabeças uns nos outros. 
Demonstrando um desesperado wishful thinking (como se procurasse qualquer vesga de luz nas trevas), alguns acreditam que o “antídoto contra o Bolsonarismo” é deixar o próprio falar para tropeçar na própria paranoia e delírio.
Outros veem tanta inexperiência ou inapetência na articulação política que acham que este governo ruirá sozinho por não conseguir entregar ao “mercado” (para ser mais preciso, a banca financeira) aquilo que prometeu. Alguns até ficam alegres ao verem a queda da Bolsa e disparada do dólar a cada derrota de Bolsonaro no Congresso, ensaiando um “quanto pior melhor”.

Sem tesão para defender a Reforma da Previdência

Um dos que melhor está compreendendo esse “modo campanha” do atual governo é o professor da filosofia da Unicamp, Marcos Nobre, que em seu artigo na revista “Piauí”, na edição de abril, sintetizou tudo no título: “O Caos como Método”. 
O “modo campanha” desses 100 primeiros dias demonstrou que o cerne da guerra semiótica desse governo é produzir abordagens indiretas, dissonâncias e estratégias criptográficas. Bolsonaro vive do caos das instituições.
Como vem demonstrando seu pouco “tesão” para defender no Congresso a reforma da Previdência de Paulo Guedes. Bolsonaro não quer fazer política de governo e nem articulações no Congresso: como demonstram seus tuites, é só Exército e Judiciário. Meganhagem, Lava Jato, shows televisivos com policiais federais nas ruas e, agora, a canalização da crise no STF: ruir a credibilidade dos supostos “guardiões da Constituição”.
Em outras palavras: Bolsonaro quer cercar o Congresso não com tanques de guerra, como fez a antiga ditadura militar. Mas corroer até o osso a política, ou a “velha política” como repete o capitão da reserva, jogando a opinião pública contra o inimigo: o Congresso, formado por petralhas, corruptos e os seus inexperientes políticos do PSL – aqueles que aproveitaram o “vendaval Bolsonaro”, foram eleitos e caíram de paraquedas nas casas do Congresso sem entender minimamente as medidas corriqueiras e liturgias que dão suporte parlamentar. 
Como ficou demonstrado no comportamento dos políticos do PSL no depoimento do ministro Paulo Guedes na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.
O “modo campanha” desses 100 primeiros dias, com o luxuoso apoio indireto da grande mídia, apresentou o seguinte modus operandi:


(a) O jogo “policial mau e policial bom” 

A estratégia semiótica concentrou-se na dupla Bolsonaro/General Mourão como central de informações e contra-informações, ao melhor estilo “good cop/bad cop”, como aponta o especialista em táticas militares, Piero Leiner, professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) – o uso intensivo de contradições, dissonâncias, vai e volta. Ministros alucinam, Bolsonaro tuita ou faz declarações sem medir consequências, enquanto repórteres correm para ouvir a “racionalidade” de Mourão. Como aponta Leiner, “o que importa é o clima constante de ameaça e contradição”.
Muitos veem em tudo isso trincas ou fendas que se abrem num governo que supostamente não chegará até o fim do mandato. Porém, sinto dizer, é a marca de uma eficiente estratégia de combate semiótico: a “concessão” dos militares à trupe de malucos evangélicos, olavistas e a figura quixotesca da Bolsonaro seguem uma lógica análoga a da guerra – criação de um cenário fragmentado, criptografado, para tirar da cena os militares como reais agentes.


(b) A culpa é do PT 

A guerra semiótica desses 100 dias baseia-se também na percepção da opinião pública de que quem quebrou o País foi o PT, como aponta pesquisa XP/Ipesp (clique aqui). Como o atual governo vive da crise (necessita visceralmente encontrar culpados, bodes expiatórios e inimigos), talvez explique o tal pouco tesão em articular no Congresso a Reforma da Previdência.
Pouco importa se a reforma vai passar ou não, ou se a crise econômica vai se aprofundar: enquanto os analistas da grande mídia batem na tecla dos “políticos irresponsáveis” e o mercado alucina com quedas e disparadas, criam-se mais ventos para o moinho da aversão à política.
Fica clara a tática cognitiva de levar pela mão a opinião pública a um raciocínio silogístico bem simples: o problema do Brasil são os corruptos e os políticos; STF quer enquadrar a Lava Jato e o Congresso não aprova a “tábua da salvação” da Reforma da Previdência; logo, pau no STF e no Congresso... Isso é melhor que tanques de guerra ou um cabo junto com um soldado.

(c) As caneladas do aumento do diesel 

Mais caneladas e dissonâncias: Petrobrás autoriza o aumento do diesel. Bolsonaro imediatamente determinou que a companhia revisasse a alta no preço do combustível, supostamente temendo desagradar os caminhoneiros e evitar nova greve da categoria. Resultado: mercado nervoso, queda das ações da Petrobrás e prejuízos para a estatal. Para, depois de seis dias, recuar e anunciar o reajuste médio de 4,8%.
Na verdade, pouco importa as consequências em atrelar o preço dos combustíveis ao mercado internacional e gerar reajustes sucessivos. Novamente, é a criação de mais um inimigo para a opinião pública: despertar a fúria dos brasileiros contra a estatal pelos preços que cobra e, com o apoio da turba, vender (com o apoio midiático e popular) o filão das operações da Petrobrás: sua rede de comercialização e os ativos de refino. Política de terra arrasada.


(d) “Gap” geracional 

Com exceção de Curitiba, as manifestações que pediam por Lula Livre no aniversário de um ano da sua prisão foram pífias. O que revela um notável abismo geracional na esquerda: de um lado, jovens que com toda energia levantam bandeiras e saem às ruas pelas causas do feminismo e LGBT; e do outro, a geração contemporânea a Lula que pedem sua liberdade.
A grande mídia sabe muito bem desse gap geracional nas esquerdas – dar visibilidade  aos movimentos identitários de gênero e raça é a mais eficaz estratégia de dividir as esquerdas, mantendo as bandeiras da nova geração longe da política e da luta de classes. Reportagens da GloboNews como “A Força do Ativismo Jovem” no programa “Mundo Sustentável” do jornalista André Trigueiro é um básico exemplo. 
Nele vemos um professor falando que as questões do ativismo jovem estão saindo “do eixo capital e trabalho”... Muito conveniente, enquanto o governo atual implode a Previdência, pulveriza direitos trabalhistas. Enquanto as causas identitárias se movem acriticamente sob os cânones da meritocracia.

(e) Alucinada trupe 

Enquanto isso, a alucinada trupe de antiglobalistas, terraplanistas, criacionistas e demais espécimes do rebanho olavista continuam com as provocações, mantendo a esquerda refém, sempre reativa e sem conseguir impor uma agenda própria – clique aqui.  
Por exemplo, dizer que o País está nessa situação “por causa dos professores de Filosofia, Direito e Ciências Sociais” e que “piora na qualidade de ensino é culpa do Paulo Freire” são bravatas diárias para espicaçar a esquerda. 
“Cortina de fumaça”, como alguns definem, que se soma as táticas de dissonâncias, criptografia etc.


Uma guerra semiótica transmídia?

Este Cinegnose vem insistindo na ideia de que a esquerda precisa descer no mesmo campo simbólico no qual a direita age com extrema desenvoltura: o campo simbólico. O que envolve o domínio tecnológico, midiático e linguístico.
A reportagem de Jeremy Harding “Os Manifestantes Estão em Pânico” sobre o movimento dos chamados “coletes amarelos” na França (no qual este humilde blogueiro vê as digitais de Steve Bannon), publicada pela revista "Piauí", faz um interessante relato:
O sucesso do protesto depende das mídias sociais. Eles se mobilizam e tomam decisões de última hora, sobretudo pelo Facebook. Posicionam-se de maneira teatral: dar a cada sábado o epíteto de “ato” numerado gera um efeito de suspense semanal – cria ansiosa expectativa em todos que estão assistindo -, ao estilo de um “gancho” no final de cada episódio de um podcast seriado, de uma série de tevê ou um reality show (Piauí, no. 151, abril, p. 36).
  Essa estratégia nada mais é do que a criação de um universo em expansão através da linguagem em transmídia – ou um “transmedia storytelling”, tendência atual no marketing e publicidade pela fragmentação da informação, proliferação de plataformas de mídia e sobrecarga informacional.
Como afirma o grupo anônimo de pensadores e ativistas sediado na França, o “Comitê Invisível”, “o agir político não é uma questão de discurso, mas de gestos” – leia Motim e Destituição Agora, n-1 edições.
Assim como os coletes amarelos se iconificaram e se transformaram em personagens de uma narrativa que cria atenção e suspense como um bom thriller, talvez seja o momento da esquerda utilizar, por que não, formas transmidiáticas implementadas pelo marketing e publicidade como Alternate Reality Games (ARGs), Web Series etc. Por que não, gameficar a política?
 O desafio seria encontrar formas de incorporar no “gesto” político QR Codes, Realidade Aumentada, dispositivos móveis, aplicativos e toda uma gama de gadgets. Apropriar-se dessas novas tecnologias para criar um universo em expansão transmidiático.
Isso será um tópico a ser desenvolvido em próximo workshop sobre Guerra Híbrida do Cinegnose.
Afinal, como defende o Comitê Invisível, não se trata de derrubar um governo, mas de tornar um país ingovernável.

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