Diretores, presidentes
e executivos da grande imprensa e associações jornalísticas, historicamente
sempre avessos às “teorizações” da área acadêmica, de repente passaram a
participar ativamente de congressos e simpósios sobre jornalismo investigativo,
ciberjornalismo e jornalismo online. Para repercutirem não só junto a
pesquisadores, mas também clientes, profissionais e líderes de opinião a já
extensa lista de livros e artigos sobre o fenômeno da “pós-verdade” e das “fake
news”. Para provar como a supremacia da verdade deixou de existir no debate
público atual. E os vilões: Internet, blogs, redes sociais. Por que esse
repentino esforço profissional-acadêmico para dar um ar de novidade a um
fenômeno tão velho quanto a própria história do Jornalismo? A necessidade em
dar verniz científico para noções retóricas de “pós-verdade” e “fake news”
através de um velho macete de engenharia de opinião pública: publicação de
artigos científicos e livros. Conferir verossimilhança a uma agenda que traz
lucros para a grande mídia: transformar jornalismo investigativo em “checagem”,
colocar os jornalistas hipsters “na linha”, sentados, sem ir a campo. E com
desdobramentos mercadológicos: monopólio e censura da concorrência no mercado
de notícias.
O Jornalismo sempre teve relações pouco amistosas com o mundo acadêmico. Principalmente em relação ao campo
do ensino e pesquisa na área da Comunicação. Do ponto de vista das redações, o
mundo acadêmico sempre foi tido como “distante da prática”. Professores e
pesquisadores eram acusados pelos jornalistas de não vivenciarem a prática
profissional – “muita teoria para pouca prática”, era a opinião corrente entre
profissionais.
Enquanto isso, nas salas de aula,
alunos impacientemente aguardavam as disciplinas “práticas”, ao se defrontarem
com matérias como Teoria da Comunicação, Literatura, Comunicação Comparada e
assim por diante.
Mas repentinamente, empresas
jornalísticas começaram a se aproximar da pesquisa acadêmica da área através de
Congressos ou Simpósios em temas como Jornalismo Investigativo, Jornalismo
Online, Ciberjornalismo etc. Sem falar na variedade de artigos resultantes
desses eventos escritos, surpreendentemente, por jornalistas profissionais
(diretores-executivos ou presidentes de Associações, Jornais ou grupos
empresariais) que no passado eram avesso a qualquer tipo de produção textual
para finalidades acadêmicas em revistas ou anais.
E com outra novidade: publicações
científicas voltadas agora não exclusivamente para o leitor acadêmico, mas também
para clientes, profissionais, jornalistas e líderes de opinião.
Nesses eventos e suas publicações
decorrentes, dois temas monopolizam as discussões: “pós-verdade” e “fake news”.
A palavra do ano
Em 2016, a Universidade de Oxford
elegeu “pós-verdade” como palavra do ano. Enquanto as fake news se
popularizaram nas críticas à campanha de Donald Trump e ao poder viral e
influência política da notícias falsas nas redes sociais. Desde então, o número
de livros e artigos sobre os temas é crescente: a coletânea Ética e Pós-Verdade, o badalado livro de
Mathew D’Ancona, Pós-Verdade: A nova
guerra contra os fatos em tempos de Fake News e a série de artigos da
jornalista Megan Garber na revista norte-americana The Atlantic são alguns exemplos.
Dois conceitos complementares: de
um lado a “pós-verdade”, relacionado com o problema da fonte da notícia querer
modelar a opinião pública não com fatos, mas com apelo às emoções e crenças
pessoais; e do outro as “fake news”, fenômeno relacionado com a mídia, supostamente
iniciado com a Internet e mídias sociais no qual conteúdos intencionalmente
enganosos são viralizados para se obter ganhos financeiros ou políticos.
Por que essa súbita “aliança”
entre o mundo profissional do jornalismo e o campo acadêmico? Por que
repentinamente o mercado das notícias passa a se interessar em discussões
“teóricas” com produções textuais e participações em eventos acadêmicos?
A “novidade” da pós-verdade e fake news
O que chama a atenção nessa
produção bibliográfica intensificada a partir de 2016 é o esforço em provar a
especificidade ou novidade desses conceitos sobre fenômenos midiáticos já discutidos
desde Daniel Boorstin (“pseudoeventos”) e Guy Debord (“sociedade do
espetáculo”) nos anos 1960 e Jean Baudrillard (“simulacros e simulações) e
Umberto Eco (“eventos-encenação”) dentro do debate pós-moderno nos anos 1980 –
pós-verdade e fake news tratariam de um mesmo objeto, porém num cenário
diferente e com novas nuances: as novas tecnologias online e a chamada Era
Trump.
Boorstin, Debord e Baudrillard: pós-verdade e fake news são novidades ou apenas rótulos? |
Esse esforço
intelectual-acadêmico dos capitães dos mercados de notícias lembra bastante
aquilo que Martin Howard descreveu em seu livro We Know What You Want: How They Change Your Mind. Depois de mais de
20 anos trabalhando em agências de publicidade e marketing, Howard passou a se
interessar no impacto das novas formas emergentes de comunicação.
Principalmente no campo da engenharia de opinião pública – conquista das mentes
por meio de estratégias indiretas de comunicação.
Como,
por exemplo, o esforço de marketing da indústria farmacêutica publicar artigos
em prestigiosas revistas da área médica como verniz científico para o
lançamento de novas drogas para supostas novas doenças – dessa maneira,
tornando verossímil para a opinião pública e o mercado de notícias novas
agendas de saúde: prevenção e combate a pandemias, epidemias ou doenças novas,
emergentes ou reemergentes.
A culpa é dos filósofos pós-modernos
Um caso sintomático é o livro do
jornalista Matthew D’Ancona “Pós-Verdade”, publicado no Brasil pela Faro
Editorial. Um livro inteiro para discutir uma questão que se confunde com a
própria história do Jornalismo: como a supremacia da verdade deixou de existir
no debate público.
Martin Howard: think tank no jornalismo como engenharia de opinião pública |
Mas o jornalista, presidente do
think tank conservador liberal Bright Blue (definido pelo Daily Telegraph como “organização intelectual para modernizar o
partido de centro-direita britânico Conservador) se esforça em atribuir uma
novidade aos rótulos “pós-verdade” e “fake News”. E necessariamente D’Ancona
tem que se confrontar com os filósofos pós-modernos. Por isso, passa a criticá-los,
como os “responsáveis pelos antecedentes da pós-verdade”.
D’Ancona acusa pensadores como
Baudrillard, Derrida e Lyotard de terem criado um “relativismo” no ambiente
intelectual pós-guerra:
“Os filósofos pós-modernos preferiam entender a linguagem e a cultura como ‘constructos sociais’; ou seja, fenômenos políticos que refletiam a distribuição de poder através de classe, raça, gênero e sexualidade, em vez de ideais abstratos de filosofia clássica. E se tudo é um ‘constructo social’, então, quem vai dizer o que é falso? O que impedirá o fornecedor da ‘notícia falsa’ de afirmar ser um obstinado digital combatendo a ‘hegemonia’ perversa da grande mídia.” (D’ANCONA, M., p. 85)
E mais! Cria uma relação e
causalidade dessa desconstrução pós-moderna da verdade com as declarações de
Donald Trump: ao dizer que “não tem tempo para ler”, Trump seria “um
beneficiário improvável de uma filosofia que ele, provavelmente, nunca ouviu
falar... Sua ascensão ao cargo mais poderoso do mundo, desimpedida da
preocupação com a verdade, acelerada pela força impressionante da mídia social,
foi, ao seu modo, o momento pós-moderno supremo.” (p.88).
Os pós-modernos preparam a chegada de Trump e Bolsonaro?
Será que por décadas, desde
Daniel Boorstin, os pós-modernos prepararam a chegada de Donald Trump ao poder e
personagens como Bolsonaro no Brasil?
O fato é que toda essa massa
bibliográfica surgida a partir de 2016 obrigatoriamente tem que dialogar com os
chamados pós-modernos. Alguns autores citam Baudrillard e Deboard, mas sem
definir, afinal, qual a novidade conceitual das fake news ou pós-verdades
atuais.
Ao contrário, D’Ancona os
confronta, acusando-os de serem os responsáveis intelectuais por todas as
desgraças da atualidade: blogosfera e mídias sociais que pariram Trump e, para
nós, Bolsonaro (o futuro Trump brasileiro?), e macularam o jornalismo
profissional da grande mídia, supostamente responsável e idôneo que tenta salvaguardar
o lastro da Verdade das mãos dos bárbaros pós-modernos.
A questão é que D’Ancona e todos os demais
autores de todo esse verniz científico que tenta dar brilho novidadeiro ao
neologismo “pós-verdade” e o termo inglês “fake news” (em inglês é mais
prestigioso do que falar na velha “imprensa marrom”), passam convenientemente
batidos para a principal discussão que o pós-modernismo propõe: como ao noticiar
a realidade, a mídia transforma tudo que é noticiado em entretenimento ao
transmitir não o real, mas os efeitos que a própria mídia cria ao descrever a
realidade.
Boorstin chamava de
“pseudoeventos” (eventos não mais espontâneos, mas direcionados à logística de
transmissão midiática), Baudrillard de “não-acontecimentos” (a precessão da
simulação antes do fato ser noticiado) e Umberto Eco de “evento-encenação”
(eventos encenados para torna-los “noticiáveis”).
Mais recentemente, Neal
Gabler chamou de “Efeito Heisenberg”,
numa referência ao princípio da incerteza da mecânica quântica: as mídias não
relatam o que as pessoas fazem, mas o impacto que as coberturas midiáticas
produzem na realidade – GABLER, Neal. A Vida, O Filme, Companhia das
Letras, 1999 - sobre isso clique aqui.
Objetivos ocultos de engenharia de opinião pública
Desde 2016, páginas e mais
páginas são escritas para fixar a ideia de que pós-verdade e notícias falsas só
floresceram por causa da Internet ao abolir “o abismo entre centro e periferia,
entre o oficial e o marginal”, ou seja, ao retirar da grande mídia a
responsabilidade de proteger o “lastro da Verdade” da comunicação.
Convenientemente esquecem que a
trajetória de obras como The Image – A Guide of Pseudoevents in America (Boorstin), Sociedade do Espetáculo (Deboard), Simulacros e Simulações (Baudrillard) e Viagens na Irrealidade Cotidiana (Eco) descrevem como essa “perda
do lastro da Verdade” decorre da onipresença da grande mídia na realidade. A
tal ponto em que a verdade foi substituída pelos “efeitos de realidade”
(credibilidade, verossimilhança) desde os prosaicos teleprompters dos estúdios de TV até a
poderosa engenharia de opinião pública descrita por Martin Hower.
Ou como Baudrillard afirmava,
como a realidade se transformou numa gigantesca extensão de um estúdio de TV – clique aqui.
Portanto, todo esse verniz
científico (pra não dizer o “hip” produzido deliberadamente para promover o
“jornalismo hipster”) dos supostos conceitos fake news e pós-verdade busca
quatro objetivos de engenharia de opinião pública bem definidos:
(a) O verniz científico
Buscar uma fundamentação “ontológica”
ou “hermenêutica” a noções de natureza propagandística como fake news e
pós-verdade. Como fossem conceitos científicos cuja gênese estaria na
conspiração dos filósofos pós-modernos contra a Verdade.
(b) Manter jornalistas “na linha”
Transformar o Jornalismo
Investigativo em “checagem” (fact-checking). Fenômeno da época atual em que
jornalistas se transformaram em profissionais que trabalham sentados e não mais
repórteres como aqueles que saiam a campo com o faro da investigação. Agora
devem operar ferramentas de checagem dos fatos vindas diretamente dos
algoritmos do Google. O que conduz aos desdobramentos (c) e (d).
(c) Primeiro desdobramento: mercadológico
O crescimento da web, bogosfera e
mídias sociais trouxe uma questão incômoda para a hegemonia da grande imprensa:
será que qualquer um pode ser jornalista?
Os alarmes contra fake news e pós-verdade tentam salvaguardar o suposto
valor de uso da informação (questionado por pensadores como Baudrillard). Fact-checking
atribui um “selo de qualidade” aos produtos informativos da grande mídia. Além
da grande mídia construir um bom álibi para fugir da própria paternidade das
notícias falsas. Que se confundem com a própria história do Jornalismo.
(d) Segundo desdobramento: político - derrubar a ponte pela qual a grande mídia passou
Não é à toa que a partir de 2016
pós-verdade e fake news se tornaram o “hip” do jornalismo hipster.
Aquele ano foi marcado pelo final
de uma intensa turnê mundial de “revoluções híbridas”: “primaveras”, “levantes,
“jornadas” na Jordânia, Ucrânia, Egito, Síria, Tunísia, Líbia e finalmente
Brasil. O ponto em comum de todas elas: intensa exploração de notícias falsas
na mídias sociais explorando a desinformação e o ódio.
E a grande mídia repercutindo as
fake news, como o fez o jornal Folha de
São Paulo quando colocou em primeira página a falsa ficha criminal da então
presidenta Dilma, tida como “terrorista” e “assassina”. E a justificativa da
Folha em estilo pós-verdade: “é falsa... mas poderia ser verdadeira...”. E
considerou a averiguação como “encerrada”.
Por isso, a grande mídia quer
derrubar a ponte pela qual trilhou: e se a esquerda quiser lutar no mesmo campo
simbólico no qual está em ação a Guerra Híbrida promovida pela grande mídia –
sob o apoio logístico do Departamento de Estados dos EUA?
Nada melhor do que transformar esses slogans
publicitários promovidos a pseudociência em álibi para censura do ativismo
digital de esquerda.
O resultado
final é interessante para a grande mídia: do lado organizacional, mantém os
jornalistas “na linha”, hipsters comportados, cada qual nas suas estações de
trabalho manipulando ferramentas de checagem. Isso evita de trabalharem em pé,
saírem a campo e terem o inconveniente de descobrirem conexões “conspiratórias”.
E do lado mercadológico, o
monopólio do mercado de notícias através de agências de checagens controladas
pela própria grande mídia interessada em eliminar a concorrência comercial e
ideológica.
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