Dentro da caixa de ferramentas da guerra semiótica, o dispositivo do vazamento é o mais manjado. Porém, continua eficiente, como demonstraram os vazamentos de
Edward Sowden e o papel que desempenharam na guerra hibrida brasileira.
Vazamentos sugerem espontaneidade, acidente ou um escorregão de alguém
boquirroto. Na verdade, criam dissuasão, cortina de fumaça e, se voltada
diretamente para o oponente, desmobilização. Como simulação para conseguir um
determinado efeito midiático na opinião pública e um perfeito
não-acontecimento. Depois do “vazamento” do áudio do jornalista global Chico
Pinheiro no WhatsApp, criticando a cobertura da emissora e elogiando Lula, a
esquerda se alvoroçou: Pinheiro detonou a Globo! Uma voz dissonante! etc. Tal
como o “vazamento” do vídeo de William Waack, este do Chico Pinheiro tem timing
e um conteúdo que ajuda ainda mais a iconificar a figura de Lula, para
retirá-lo do campo da guerra simbólica.
Dentro
da guerra semiótica, a estratégia do “vazamento” é a mais manjada. Na verdade,
uma bomba semiótica que explode visando seja o inimigo ou a opinião pública
como um todo. Cujo objetivo é a criação de uma cortina de fumaça, tática de
dissuasão ou, no caso de visar o adversário, a desmobilização.
Principalmente
em tempos de tecnologias de comunicação em tempo real, on line ou ao vivo. Porque para o cidadão médio, um link de
satélite ou comunicadores instantâneos em plataformas digitais são coisas
esotéricas que manipulamos apenas como usuários. Portanto, supostos “acidentes”
como “vazamentos” soam sempre como eventos não intencionais, acidentais ou espontâneos.
Ou,
por um ponto de vista do psiquismo, nos dá o prazer voyeurista de flagrar a
suposta intimidade de uma celebridade, artista, político etc. Ou ainda uma
suposta revelação de eventos não autorizados pela grande mídia.
Por
isso, mesmo manjada ainda é uma eficiente bomba semiótica.
"Mera Coincidência": vazado diretamente da Albânia... |
Da ficção à realidade
Por
exemplo, no filme Mera Coincidência (Wag the Dog, 1997), acompanhamos um
presidente dos EUA a poucos dias da sua reeleição, quando se envolve em um
escândalo sexual. Sua equipe de relações públicas, liderada por Robert De Niro
(o “Sr. Conserta Tudo”) entra em contato com um produtor de Hollywood com o
objetivo de criar, através de recursos cinematográficos, uma crise
internacional envolvendo terroristas da Albânia.
Em um
estúdio em croma key, filmam uma
jovem segurando um gato fugindo de terroristas estupradores no meio de um fogo
cruzado. O vídeo fake é
propositalmente vazado através de um link no satélite, para a grande mídia
capturar o sinal, gravar o vídeo e divulga-lo como um “vazamento” da
inteligência militar. Em pleno horário nobre. Criando uma cortina de fumaça
para o presidente roubar a narrativa da oposição.
Saindo
da ficção, encontramos, por exemplo, o papel das “bombásticas revelações” de
Edward Snowden na guerra híbrida brasileira. O suposto vazamento dos documentos
secretos da NSA pelo ex-agente Snowden, repercutidos na grande mídia brasileira
e pelo espectro político da direita à esquerda. A “revelação” (na verdade um
segredo de polichinelo, já conhecido há décadas por qualquer professor de
comunicação, desde o “ Projeto Echelon”) de que a NSA monitorava e-mails da
presidenta Dilma e da Petrobrás. Prato cheio na Guerra Híbrida: para a grande
mídia, era mais uma evidência da tibieza de um governo corrupto e em crise.
Ou como comprova o documentário francês Pax Americana e a Militarização do Espaço
(2009), a hegemonia dos EUA na
propriedade de satélites em orbita do planeta e a capacidade de “vazar”
informações, vídeos e dados têm uma relação direta com a capacidade da
inteligência norte-americana criar jogos de simulação, produzindo uma
verdadeira cortina de fumaça através das mídias – clique aqui.
Os vazamentos da Globo: Waack e Pinheiro
Como um dos protagonistas do atual cenário de guerra
híbrida, a Globo também se vale da tática do vazamento. O caso William Waack,
por exemplo, era até aqui o caso mais notório: uma gravação antiga feita,
durante a cobertura das eleições nos EUA, no qual Waack fazia uma galhofa
racista antes de entrar ao vivo, vazou nas redes sociais num momento crucial
para a emissora.
Um momento no qual a Globo tenta limpar as mãos de toda a
lama que teve que remexer para criar a massa de revoltados que pediam o
impeachment em 2016 – deu visibilidade ao racismo e intolerância de grupos que
serviram de bucha para o golpe político.
E a demissão do jornalista serviu de estratégia
dissuasiva para desviar a atenção da opinião pública para a parcialidade da
Globo. Um vazamento com timing, uma “não-notícia”.
Agora, repete-se mais um caso de não-notícia como suposto
vazamento: um áudio do jornalista e apresentador do Bom Dia Brasil Chico Pinheiro que “vazou”, a partir do seu grupo do
WhatsApp, com críticas ao juiz Sérgio Moro, à cobertura da Globo News e
mensagens de “coragem e sabedoria” para Lula. Isso, logo depois da prisão de
Lula, notícia dada por ele mesmo no Jornal Nacional do último sábado.
“Ele precisa sair,
sim, mas vai sair na hora que for a hora. Que Lula tenha calma, sabedoria,
inspiração divina, para ficar quieto ali um tempo, onde está”, diz o
apresentador sobre a suposta liberação do ex-presidente. “Se pensarmos bem,
aquela acomodação é melhor que todos os lugares em que ele dormiu quando era
criança e na juventude”.
Pede ainda para
que Lula fique tranquilo e mais quieto por algum tempo, já que ele já está
preso... a direita não tem o que fazer... os coxinhas estão perdidos. Precisam
de outro caminho agora”, diz. “Como ele disse, não sou mais um ser humano, sou
uma ideia. Ideia não se prende, a gente tá solto”, continuou.
A esquerda se
alvoroçou: “Chico Pinheiro é a voz dissonante da Globo!”, “Chico Pinheiro
critica a Globo!”... “detona a Globo!”... “elogia Lula!”. Foram as comemorações
mais recorrentes.
E a curiosa resposta
do todo poderoso diretor de jornalismo da emissora, Ali Kamel: enviou um e-mail
anódino para seus jornalistas alertando para o uso das redes sociais. Outro
segredo de polichinelo: qualquer jornalista, principalmente num ambiente
corporativo como a Globo, sabe dos riscos do uso das redes sociais: elas podem
se voltar contra o próprio usuário.
O jogo do jornalista bom e do jornalista mau
Ingenuidade de
um profissional tão experiente como Chico Pinheiro? Chico está tão revoltado ao
ponto de mandar para o alto seu emprego? Quis criar um pretexto para ser
demitido porque não suporta mais as pressões da emissora?
Parece que a
Globo quer fazer um jogo que é comum nos interrogatórios policiais. Como nos
mostram os filmes: o jogo do policial bom e do policial mau – aquele que busca
a confiança do interrogado e aquele que só toca o terror. Ou em outras
palavras: o jogo na bancada do JN entre o vilão William Bonner e o mocinho
Chico Pinheiro – aliás, é para isso que a Globo mantém a sua cota de
progressistas de estimação, se não para criar esse jogo. Além do Chico
Pinheiro, José de Abreu, Monica Iozzi, Letícia Sabatella entre mais alguns.
A resposta insípida de Ali Kamel, o timing do vazamento
e, mesmo, o tom desmobilizador e conformista de Chico Pinheiro, reforçam a
suspeita de que temos mais um “não-acontecimento”, na modalidade “vazamento”.
Mas, claro, aspirando ao efeito de uma bomba semiótica.
Foto: Francisco Proner Ramos |
Desmobilização e conformismo
Mas por que desmobilizador e conformista? Na postagem
anterior sobre a guerra semiótica em torno da prisão de Lula esse humilde
blogueiro observava que a esquerda perdeu a batalha semiótica ao trilhar a
familiar, mais uma vez, a narrativa da “luta e resistência”. Lula se rendeu à
sanha punitivista de Moro, mesmo sob vaias da militância e tentativas de
impedir que Lula saísse do sindicato. Sim, a militância queria resistir. Mas
cobrando do oponente um alto custo simbólico – clique aqui.
Guerra híbrida se notabiliza por ser aparentemente não
violenta. Não segue mais ao padrão clássico intervencionista de marines ou SEALs
tentando invadir um país. Ou o financiamento de ditaduras sanguinárias como as
militares, de triste memória.
Pelo contrário, golpes e crises políticas seguem tramites
aparentemente legais, com chicanas e filigranas jurídicas. Com forte apoio
midiático com o discurso moralista (para espíritos ressentidos das classes
médias) da corrupção dos políticos – mas só dos políticos!
Para a opinião pública, tudo parece legal,
constitucional: o juiz julga, a polícia prende e o STF chancela.
Quando esse Cinegnose
afirma que as esquerdas devem atuar no mesmo campo simbólico das bombas
semióticas, o melhor exemplo foi a chance perdida em São Bernardo: a tática de
empate e desobediência civil levada ao extremo faria cair as máscaras da
suposta constitucionalidade e legalismo. Confronto nas ruas e invasão ao
sindicato por forças da repressão criariam a dissonância necessária para uma
guerra tão contaminada por signos softs: togas, leis, jurisprudências,
colegiados, juízes e seu braço armado: a meganhagem da PF.
Para o mundo, o contraponto seria a violência a um centro
de resistência sindical. Imagens, signos. Se a Guerra Híbrida se valeu das táticas
de ação direta com seus black blocs,
por que não atuar no mesmo campo simbólico? Pois os black blocs não posavam para as câmeras? Então, ofereçamos imagens
dissonantes para o mundo que comprovem que a guerra híbrida é suja, violenta.
Hipóteses e evidências
O leitor quer evidências e hipóteses de que o “vazamento”
do áudio de Chico Pinheiro foi um não acontecimento? Pois então vejamos:
(a) Hipótese
radical: tudo foi armado pela Globo? Em muitos momentos do áudio de Chico
Pinheiro temos a sensação de que ele está lendo um texto...;
(b) Globo
foi oportunista: o desabafo do jornalista foi espontâneo, aceitando todos os
riscos. Assim como no caso de William Waack, vazou o áudio no momento no melhor
timing – o de aparentar isenção mantendo, apesar de tudo, Chico Pinheiro na
emissora. A única diferença foi de tempo: o vazamento de Waack levou meses. O
de Pinheiro foi em questão de horas;
(c) Em
termos de guerra semiótica o áudio é desmobilizador: defende que Lula deve
ficar onde está. Afinal, está num lugar “melhor do que aqueles em que viveu na
infância e juventude”. Deve sair apenas “na hora certa”. Um lugar melhor para
quem, cara pálida! Lula está em uma solitária e cercado de pessoas dispostas a
mata-lo ou tolerantes ao gesto de alguém que tenha essa iniciativa. Desde
quando estava no avião que o trazia a Curitiba, com mensagens ameaçadoras pelo
rádio da aeronave. E o “sair na hora certa” é o sine die do golpe político;
(d) “Lula
deixou de ser humano para se tornar uma ideia”, afirma Pinheiro. Muito conveniente
para o adversário na guerra semiótica. Na verdade, semioticamente essa
afirmação (e toda estratégia de sebastiniazação de Lula) está incorreta: estão,
isto sim, iconificando Lula, como bem
demonstra a profusão de fotografias ao estilo Sebastião Salgado: Lula cercado e
nos braços do povo. O destino de Lula é a idolatria pelo ícone. Mais um mito
ecumênico no panteão dos heróis como Che Guevara, Martin Luther King ou
Mandela. O que importa em uma guerra semiótica (se é que a esquerda se
interessa por isso) é o rendimento simbólico – repercussão, impacto, de signos
que criem dissonância em relação à aparência soft de um golpe político soft sem
exércitos (ainda). Apenas Judiciário e Mídia, interpretação arbitrária das leis
e narrativa de textos e imagens.
Enquanto a esquerda levanta ícones, o complexo
jurídico-midiático pensa sempre em símbolos que produzem efeitos midiático.
Empate e desobediência civil é tudo o que não querem. Pedem da vítima apenas
“calma, sabedoria e inspiração divina”.
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