Toda refilmagem revela o espírito de época quando comparada com o
original. É também o caso da série Netflix "Perdidos no Espaço" (Lost In Space, 2018), nova versão
da série clássica de TV dos anos 1960 – que já contava com um longa-metragem em
1998. Agora os Robinsons não são mais a família nuclear perfeita do sonho
americano, mas uma família à beira da separação que tenta reunir os cacos
enquanto enfrenta os perigos de um planeta desconhecido. O novo “Perdidos no
Espaço” revela o espírito de época do século XXI: o militarismo e a amoralidade
do vilão. Além da relação histérica com o objeto do desejo, traço psíquico da
cultura contemporânea: só voltamos a desejar aquilo que amamos na eminência da
sua perda com a morte ou a destruição.
Refilmagens
de filmes ou séries são sempre interessantes. Principalmente porque
possibilitam um comparativo do “espírito de época”: a maneira como cada produto
audiovisual representa o imaginário ou a sensibilidade de cada momento, da
sociedade ou do período histórico.
Como o historiador francês Marc Ferro escreveu no livro clássico
“Cinema e História”: “o imaginário é tanto história quanto
História, mas o cinema, especialmente
o cinema de ficção, abre um
excelente caminho em direção aos campos da história psicossocial nunca
atingidos pela análise dos documentos" (FERRO, Marc, Cinema e História,
São Paulo: Paz e Terra, 1992, p.12).
A nova versão da série clássica de TV Perdidos no Espaço (1965-68), a produção Netflix Lost in Space (2018), é mais refilmagem.
Até então, contávamos com o longa-metragem Lost
in Space (1998) com William Hurt e Gary Oldman, como o vilão Dr. Smith e
dirigido por Stephen Hopkins.
Nas três versões a estrutura do argumento continua a
mesma: uma catástrofe natural ameaça a humanidade (respectivamente,
superpopulação, poluição e um cometa), obrigando-a a buscar um novo planeta
para colonizá-lo. Uma família é enviada (ou várias, como na série Netflix), um
robô com mal funcionamento atrapalha tudo, sempre tendo por trás um vilão, o
famigerado Dr. Smith que planeja sabotar a missão – na série atual, substituído
por uma mulher vigarista e golpista.
Mas as semelhanças param aí. O plot narrativo central
sempre foi a Família Robson, uma típica família nuclear – os pais (John e
Maureen) e seus três filhos (Penny, Judy e Will). Mas o que é marcante nessas
três versões é como a família vai aos poucos se desfazendo. Nos anos 1960
tínhamos uma família coesa e unida: os pais se amavam e os irmãos eram
solidários. No filme de 1998 encontramos problemas de autoridade e confiança
que estremecem a ordem familiar.
"Perdidos no Espaço" nos anos 1960, 1990 e 2010 |
Uma família em cacos
E na série atual, encontramos os Robinsons em cacos: os
pais à ponto da separação e os filhos ressentidos pelo eminente divórcio. Os
filhos ensimesmados e distantes uns com os outros, a mãe, uma brilhante
cientista, tenta sem sucesso manter o astral da família. E o pai, um militar,
prefere ficar no front de combate do que viver a rotina familiar.
Por isso, parece até que os inúmeros perigos que os
Robinson enfrentam (geleiras que desabam, animais selvagens, tempestades
imprevisíveis ou enguias que consomem o combustível da Júpiter 2) na série
atual são meros pretextos para criar situações que permitam a família voltar a
se unir e juntar os cacos.
Há em Lost In Space
um pressuposto paradoxal e pós-moderno para o gênero ficção científica atual: a
ausência de futuro ou da perspectiva de conhecer novos mundos – “indo onde
nenhum homem jamais esteve”, como se dizia na célebre abertura de outra série
clássica, Jornada nas Estrelas.
Famílias inteiras são levadas para colonizar um planeta
em Alpha Centauri. Mas os novos mundos, galáxias e seres na imensidão do
universo não são capazes de tocar ou transformar o espírito humano: são apenas
novos cenários para as velhas picuinhas e dramas humanos – egoísmo,
indiferença, traição etc. Todos parecem fugir de algo que aparentemente
deixaram na Terra, mas sem sucesso. O mal acompanha a humanidade, mesmo nos
mundos distantes.
Como é dito em uma marcante linha de diálogo do quarto
episódio, que parece sintetizar o espírito de época de Lost In Space: “O problema com a sua colônia são as pessoas. Viajam
milhões de quilômetros no espaço e acham que serão diferentes. Não importa do
que fogem da Terra... elas estão trazendo junto”.
A Série
Lost in Space da Netflix tem a marca do militarizado século XXI, da
política externa dos EUA do combate ao terrorismo: a família Robinson foi
marcada pela ausência do pai, o militar John Robinson (Toby Stephens), casada
com a engenheira aeroespacial Maureen Robinson (Molly Parker) as filhas Judy
(Taylor Russel), Penny (Mina Sundwall) e filho mais jovem Will (Maxwell
Jenkins).
Estamos 30 anos no futuro, um salto que não requer tanto
esforço da imaginação dos roteiristas. Afinal, se na época da série original
Neil Armstrong ainda daria o pequeno passo na Lua, agora o empresário Elon Musk
fala em colônias marcianas até 2040.
E a série ainda conta com um grande orçamento, o que se
reflete na tela – tudo, dos figurinos ao design das naves e muitos efeitos em
CGI, demonstra que o projeto foi meticulosamente elaborado e com muito dinheiro
disponível.
Nesse futuro próximo, a Terra está em crise com várias
guerras, conflitos e, para completar, a “estrela do Natal” (um cometa) colide
com o planeta criando uma espécie de noite eterna e obrigando os humanos a
andar com máscaras de gás nas ruas.
Em crise conjugal e à beira da separação, Maureen decide
partir com os filhos para uma missão de busca de um novo lar em Alpha Centauri,
que traga esperança de sobrevivência à humanidade. John Robinson decide, então,
seguir com a família para tentar reconquistá-la em um outro mundo. Mas a missão
dá errado e a nave Júpiter 2, assim como outras Jupiters que compunham a
missão, caem em um planeta desconhecido.
Um planeta marcado por violentos contrastes de biomas: um
inóspito deserto seco e quente pode aparecer repentinamente por trás de imensas
geleiras, podendo terminar numa floresta úmida.
Tudo sob ameaças de tempestades inesperadas e exóticos e selvagens
animais.
Ao contrário de Perdidos
no Espaço 1.0, o robô é de origem alienígena e cultivará uma relação de
amizade e fidelidade com Will Robinson – repetindo sempre o bordão do velho
robô do passado: “Perigo, Will Robinson!”.
E dessa vez, o Dr. Smith será uma mulher (Parkey Poser).
Mas com as mesmas maquinações, traições e a covardia do velho Dr. Smith.
O vilão Amoral
É com a Dra. Smith que começamos a perceber o espírito da
época atual refletido na série: enquanto no passado o Dr. Smith era o vilão
clássico, um sabotador e espião típico da Guerra Fria que pretendia destruir um
projeto científico do mundo livre, aqui em 2018 a Dra. Smith é apenas uma
sobrevivente: ela trai, põe em risco a vida dos outros, mente e eventualmente
até mata. Mas por mera sobrevivência – uma pequena escroque que viveu uma
carreira de pequenos crimes e que fugiu da Terra se infiltrando na missão
espacial.
Típica visão do Mal no século XXI, presente em zumbis,
monstros e aliens: não matam por “maldade” (dentro da antiga polaridade
certo/errado, moral/imoral) mas pela sobrevivência física – são máquinas
amorais de matar. Na personagem Dra. Smith vemos, claro, apenas uma pequena
fração do mal amoral desse século. Mas será o suficiente para provocar estragos
ao longo da primeira temporada.
Porém, o marcante
em Lost In Space é como a família
Robinson não é mais a perfeita família nuclear do sonho americano dos anos
1960. Entre uma tempestade assustadora, uma geleira que ameaça esmagar a
Júpiter 2 e o ataque de animais selvagens, a família tenta juntar os cacos do
que foi um dia uma vida conjugal.
Uma relação histérica com o desejo
Mais uma faceta do espírito de época desse século: a
relação histérica com o objeto do desejo. Como uma espécie de deliberada recusa
à satisfação. O outrora objeto do desejo só pode voltar a ser desejado na
eminência da sua perda. Nove em cada dez filmes, não importa o gênero, refletem
essa relação psíquica regressiva com o objeto amado: casais que vão descobrir
que se amam à beira da morte ou destruição; uma família separada que se
reconcilia durante uma catástrofe geológica como no filme 2012; a perda da
própria vida é a condição para o protagonista valorizar os momentos felizes de
uma família desfeita como em Beleza
Americana etc.
Nos anos 1960-70 a família nuclear perfeita estava
presente tanto na pré-história (Os
Flintstones, 1960-66), na Roma Antiga (Os
Mussarelas, 1972) ou no futuro como Os
Jetsons (1962-87) e Perdidos no
Espaço (1965-68).
Hoje esse ideal perdido permanece assombrando as famílias
modernas. Como um ideal inatingível e apenas valorizado no limite da morte,
catástrofe ou da ameaça do próprio fim da espécie humana.
Por isso, Lost In
Space é mais uma Hipo-utopia dentro do gênero sci-fi: fala mais do presente
do que sobre mundos distantes “onde o homem jamais esteve”.
Ficha
Técnica
|
Título: Lost In Space (série)
|
Diretor: Neil Marshall (criação Irwin Allen)
|
Roteiro: Matt
Sazama, Burk Sharpless
|
Elenco: Molly Parker,
Toby Stephens, Maxwell Jenkins, Taylor Russell, Mina Sundwall, Ignacio
Serrichio
|
Produção: Legendary
Television
|
Distribuição: Netflix
|
Ano: 2018-
|
País: EUA
|
Postagens Relacionadas |