Um curta que é inspirado da própria experiência de vida da diretora, Anete
Melece. “The Kiosk” (2013) é um curta de animação sobre a difícil busca do
equilíbrio entre o trabalho e a vida pessoal. E a ainda mais difícil busca da
satisfação no trabalho. Com um raro senso de comédia estética e visual, “The
Kiosk” nos mostra uma protagonista literalmente presa no seu local de um
trabalho alienante, monótono e sem sentido. Um acidente força a protagonista
enfrentar uma jornada que transformará sua vida. Ou será que apenas realizou um
sonho dirigido pela mídia e o turismo? O curta aborda temas que envolvem a
“sociologia do cotidiano” do francês Henri Lefebvre – a “cotidianidade” como um
fenômeno das sociedades modernas: de um lado a rotina, tédio e monotonia dos
dias de trabalho. E do outro, as fantasias e compensatórias do que foi outrora
o “tempo livre”, hoje chamado “lazer”.
Ela
trabalhava em um escritório e achava que tinha um emprego decente. Exceto que
começou a ter uma crescente sensação de estar presa. Não possuía um emprego,
mas o emprego a possuía. Ela não estava mais aprendendo, crescendo, evoluindo.
Apenas repetindo as mesmas coisas, todo dia.
Então
largou o emprego no escritório e decidiu fazer algo criativo: um curso de
animação na Universidade de Ciências e Artes Aplicadas de Lucerna, Suiça. E no
seu trabalho de conclusão de curso, resolveu fazer um filme inspirado nessa
própria experiência pessoal: a fuga do trabalho alienante e a busca de uma
atividade criativa e gratificante.
O
resultado é o curta de animação The Kiosk
(2013). E a autora é Anete Melece. O curta é uma divertida comédia visual
com personagens propositalmente estereotipados, como o fumante compulsivo ou a
mulher com o coração partido. Todos passam pelo quiosque de Olga, uma mulher gorda
que trabalha e vive no próprio trabalho por conta própria.
Olga
literalmente está presa ao seu emprego: pela sua compleição física, ela não
consegue mais sair mais do quiosque. Trabalha, vive e dorme ali, vendendo
revistas, jornais, cigarros, doces e salgadinhos. Enquanto sonha com uma vida
diferente, longe dali, em praias paradisíacas. Bem diferente daquele quiosque
encravado numa rua barulhenta e movimentada de uma grande cidade.
Descobre
nas revistas lindas fotos de praias e lugares distantes. As recorta e cola nas
paredes internas do quiosque. Apenas para ficar olhando para elas, sonhando,
enquanto espera o sono chegar. Para acordar e ter mais um dia de trabalho
repetitivo e entediante.
Até
que um acidente irá força-la a fazer uma jornada e explorar novos caminhos.
Mas o
detalhe é que se a autora conseguiu romper totalmente com o seu antigo emprego
no escritório para buscar algo radicalmente novo e criativo, seu alter ego Olga
parece que não teve a mesma sorte: seu trabalho continuou “grudado” nela, mesmo
ao final da jornada forçada que a conduziu ao lugar das imagens paradisíacas
com as quais tanto sonhava.
Um
desfecho ambíguo: Olga não vê mais fumantes inveterados e mulheres mal amadas,
mas agora famílias felizes na praia diante de um mar azul. E agora não vende
mais revistas e jornais, mas sorvetes. Mas, mesmo assim, continua presa no
velho quiosque.
Quem é
o protagonista no curta: Olga ou o quiosque?
A sociologia do cotidiano
Os
temas levantados pelo The Kiosk
lembram bastante a obra A Vida Cotidiana no Mundo Moderno do sociólogo francês
Henri Lefebvre (1901-1991) e a sua discussão sobre a deterioração do trabalho
em atividades alienantes e repetitivas e a precarização do tempo livre,
transformado em lazer passivo e compensatório.
Do
ponto de vista de Lefebvre, o “cotidiano” é um fenômeno histórico novo, típico
das sociedades modernas. Nas sociedades tradicionais como as aldeias camponesas
e na Roma Antiga dominava um estilo de vida unitário que se contrapunham a dias
de exceção às regras como as Festas profanas.
Nessas
sociedades antigas o dia-a-dia estava envolvido com grandes ciclos (estações do
ano e ciclos de plantação e colheita) e grandes sistemas (religiosos, míticos
etc.). E os dias de Festas eram verdadeiros momentos de quebra ou suspensão
desses sistemas: dias do domínio do profano.
Para o
sociólogo francês a cotidianidade surge com o trabalho mecanizado, repetitivo,
especializado e burocrático. Principalmente com a expansão dos setores de
serviços na sociedade de consumo – trabalhos precarizados, subempregos. Lefebvre
chama de “sociedade burocrática de consumo dirigido”.
Num
tipo de trabalho repetitivo e fragmentado, nos sentimos inautênticos,
alienados, à espera do final de semana ou de um feriado prolongado nos quais
nos sentimos livres e com o tempo em nossas mãos. Porém, tudo o que conseguimos
é um lazer passivo e compensatório.
Transformado
em lazer, o nosso tempo livre nem sequer é uma sombra das antigas festas
profanas do passado: aos invés da quebra da ordem e inversão dos papéis e
hierarquias, o lazer se torna uma extensão da racionalidade do trabalho
cotidiano – seja pela passividade como forma de recuperar energias psíquicas e
físicas para a segunda-feira (ou a embriaguez como forma de anestesia e
esquecimento); seja pelas formas de lazer que cultivam valores e disposições
que serão resgatados no trabalho: praticas esportivas que cultivam valores da
performance, eficácia, eficiência, foco e engajamento. Praticamente exercícios
de simulação das práticas exigidas no mundo do trabalho.
Mas o
que se impõe é a cotidianidade, como rotina e monotonia, quebrados por momentos
de devaneios – fantasias escapistas como a da simpática protagonista Olga
(praias paradisíacas das fotos e cartões postais) ou o sonho de ganhar na
loteria para fugir do cotidiano para conseguir retomar o próprio tempo.
O que
marca o curta The Kiosk é o desfecho
irônico que lembra a crítica de Henri Lefebvre à ilusão de autossuficiência do
sujeito que a sociedade de consumo e a mídia vendem ao sujeito para suportar o
cotidiano: após a jornada forçada dentro do seu quiosque, finalmente Olga chega
àquela paisagem praiana que tanto sonhava. Porém, ainda entalada no quiosque,
quer dizer, ainda presa ao seu próprio trabalho.
O
própria fantasia de Olga é aquilo que o sociólogo francês definia como “consumo
dirigido”: o consumo, o lazer e o outrora tempo livre agora dirigidos por
sistemas simbólicos, como o sistema da moda, turismo e mídia - os sonhos de Olga para escapar da sua rotina
sem sentido, obesa e entalada em um quiosque, foram moldados por revistas de
moda e turismo.
Realizado
o sonho, Olga apenas trocou o mercado de produtos: de banca de revistas e
jornais, migrou para venda de sorvetes e guloseimas para banhistas.
Ficha
Técnica
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Título: The Kiosk
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Diretor: Anete Melece
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Roteiro: Anete
Melece
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Elenco: Anette
Herbst, Hans Huchti (vozes)
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Produção: Lucerne
University of Applied Sciences and Arts
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Distribuição: Vimeo
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Ano: 2013
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País: Suiça
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