domingo, abril 29, 2018

Com elegância e decadência a modernidade aguarda o nazismo na série "Babylon Berlin"


A série mais cara de televisão alemã, a produção Netflix “Babylon Berlin” (2017-) cria para o espectador uma estranha sensação de atualidade. É ambientada na Berlin do final de década de 1920, coração da modernidade urbana do cinema e dos clubes de jazz. Mas também da hiperinflação, pobreza, racismo, drogas, filmes pornográficos e a ascensão de grupos proto-nazistas. Subprodutos do envenenamento psíquico da República de Weimar na qual comunista e bolcheviques são o pretexto para destruir uma jovem democracia. Um jovem inspetor de polícia dá uma batida e descobre um estúdio de cinema onde eram produzidas versões de contos bíblicos, com muito sexo e pedofilia. Mas o fio da meada que o policial puxará o levará a um obscuro submundo no qual se esconde todo o mal psíquico que fará um país cair nos braços do totalitarismo.

Assistir à série Netflix Babylon Berlin (ainda sem data prevista para estreia na Netflix brasileira) nos traz uma estranha sensação. Muitos comparam a série atual com a clássica de Rainer Fassbinder, Berlin Alexanderplatz, de 1980. Mas se a série de Fassbinder impressionava pela reconstituição histórica da Berlin da década de 1920 (através da visceralidade do diretor), Babylon Berlin impressiona pela atemporalidade – ou melhor, na estranha sensação de atualidade.

Assim como a obra-prima de Fassbinder, a série Netflix, baseada em uma série de romances de Volker Kutscher e que estreou na Alemanha e Inglaterra no final do ano passado, é ambientada na modernidade urbana de Berlin do final da década de 1920 – uma cidade enorme, cheia de contradições: respira a modernidade cultural, artística e tecnológica, mas também está imersa na hiperinflação, pobreza, idealismo, niilismo, ganância corporativa, racismo, filmes pornográficos, tóxico dependência, política progressista e obscurantismo político – a ascensão do nazismo.

Babylon Berlin suscita duas questões: como de uma sociedade tão cosmopolita, sofisticada cultural e tecnologicamente surgiu tanta decadência espiritual e econômica ao lado do nazi-fascismo, misticismo e religião?

E por que o turbilhão político e a ascensão de movimentos antidemocráticos e de direita da cena alemã do final dos anos 1920 soam ainda como algo muito familiar na atualidade? Haveria uma ressonância da série com a atual crise brasileira? Uma analogia a atual ameaça da frágil democracia brasileira, às voltas com milícias de direita e manifestações de rua clamando por intervenção militar?


A doença psíquica da República de Weimar


Babylon Berlin exige do espectador conhecer minimamente o contexto político daquele momento na Alemanha: a chamada “República de Weimar” – designação histórica dada ao período alemão após a derrota na I Guerra Mundial e que durou até o início do regime nazista. Como sistema democrático representativo e semi-presidencial, se aliava às ideias libertárias e revolucionárias da modernidade da virada do século: o cinema, o jazz, a liberdade sexual, o feminismo etc.

Mas, por outro lado, a República de Weimar carregava o ônus da derrota e da humilhação das condições impostas pelo Tratado de Versalhes – imposto pelos vitoriosos que impediam a recuperação econômica da Alemanha.

Ou seja, a jovem democracia alemã já surgiu psiquicamente envenenada pela humilhação, ressentimento e nostalgia – muitos começaram a associar a democracia com fraqueza e humilhação, dando força à nostalgia dos tempos do imperador e da monarquia. Caldo cultural que permitiria mais tarde a ascensão de Adolf Hitler como o visionário do regresso aos supostos “bons tempos” da época imperial e antidemocrática.

 Por isso, Babylon Berlin é um mergulho nessa atmosfera psíquica envenenada através de um mix que lembra a estética noir dos detetives atormentados e às voltas com álcool e drogas (parecem sempre habitar uma estranha região entre a vigília e a inconsciência) e o expressionismo cinematográfico de Gabinete do Dr. Caligari de Robert Wiener e Dr. Mabuse de Fritz Lang – filmes policiais e de mistério que envolviam a metáfora de uma Alemanha transformada em fantoche de hipnotizadores e marionetistas.

Aliás, filmes banidos pelo ministro da propaganda nazi Joseph Goebbles. Ele temia que essas produções poderiam diminuir a confiança da nação nos seus políticos...


A Série


Uma locomotiva avança veloz noite adentro, até ser detida por uma árvores em chamas que cai no meio da via férrea.  A locomotiva para e é tomada de assalto por homens que saem por trás de arbustos. Tiram os uniformes dos funcionários, para em seguida vesti-los, para depois mata-los . Engatam na composição um vagão tanque. Para, em seguida, seguir velozmente em direção à Berlin.

Dessa forma começa a série Babylon Berlin, cuja narrativa girará em torno do misterioso conteúdo dessa vagão-tanque que clandestinamente segue para Berlin, no meio de outros vagões carregados de gás de alto poder letal.

Todos parecem rumar a capital alemã, a frenética cidade no coração da República de Weimar. Um lugar de personagens extremos – hiperinflação, pobreza e desempregados nas ruas, ex-combatentes de guerra com lesões pós-traumáticas e viciados em morfina. 

A extrema direita ganha impulso, juntamente com as organizações proletárias de esquerda. A tensão aumenta com a proximidade das comemorações do Dia do Trabalho, primeiro de maio.


Enquanto isso, nas casas noturnas endinheirados e novos ricos pouco se importam com o que acontece. Estão embalados pelo auge da Era do Jazz, no meio de sexo, perversões, álcool, drogas e muito niilismo, como se festejassem a beira do abismo. Tudo parece ser o tic-tac de uma bomba relógio prestes a explodir.

Salta para o primeiro plano da narrativa o jovem inspetor da Polícia de Costumes Gereon Rath (Volker Bruch). Ele veio da cidade de Colônia na pista de um misterioso caso (como sempre no filme noir, o mistério envolverá a si mesmo e a própria família) que desemboca numa batida a um estúdio que fazia filmes pornográficos envolvendo sexo adulto e pedofilia.

Filmes que fazem releituras de contos bíblicos com muito sexo e perversão. Lentamente a investigação puxará o fio da meada que nos levará a um obscuro submundo: um investigador com rígida educação católica, viciado em morfina (ele próprio, sofrendo de traumas psíquicos da guerra e perpetuamente perturbado) que será conduzido a segredos que terão a ver com grupos proto-nazistas e empresários corruptos – no qual se destaca um brutamontes tatuado, sempre vestido como um padre. Literalmente, ele leva para suas vítimas a “extrema unção”...


Igualmente intrigante é o personagem Charlotte Ritter (Liv Lisa Fries), que durante o dia encontra trabalho na sede da polícia (na qual desempregados se engalfinham em busca de trabalho intermitente... familiar, não?) a fim de manter sua família que vive no meio do desemprego e miséria. E à noite Charlotte se transforma numa garota de programas em um clube de ricaços – o Moka EFTI.

Junto com Gereon, fará uma improvável dupla de investigação que conduzirá o espectador pelos meandros de uma Berlin que avança célere para os braços do totalitarismo – no qual os comunistas e movimentos proletários são o grande álibi para a repressão policial sobre as massas.

Uma Berlin atemporal


As cenas do clube, do trem e as recriações de Berlin dos anos 1920 são deslumbrantes e fabulosas pela escala épica. O que reflete a ambição dos criadores da série e os custos – é a produção mais cara da televisão alemã, atualmente chegando a 38 milhões de euros. Levou seis meses para as duas temporadas serem rodadas, mobilizando mais de 5.000 extras.


É impossível não perceber a atemporalidade do vertiginoso mundo de Berlin com traições e execuções clandestinas, no qual todo mundo tem que servir a alguém. A sucessão dos personagens parecem mais o desfile de arquétipos presentes até hoje em sociedade em decadência econômica e política: assassinos amorais, gangsters com fala mansa como “o Armênio”, o líder de um grupo proto-nazista com uma grande cicatriz no rosto, uma sombria estrela femme fatale que canta nos shows do Moka, espelhando niilismo, ostentação e decadência moral.

Uma jovem democracia sofrendo o ônus da derrota (perto da derrota da I Guerra, a liderança militar alemã atirou o poder nas mãos dos democratas para colocar os prejuízos da guerra na conta da democracia) que passaram a sofrer os ataques nostálgicos da direita pelos supostos bons tempos das épocas do Imperador.

Os paralelos com a pesada atmosfera política brasileira são inevitáveis: de um lado a nostalgia pelos “bons tempos” da ordem dos governos militares. No meio, a massa de desempregados que vê perder direitos trabalhistas enquanto vivem de bicos e trabalhos intermitentes. E do outro o “comunismo” como álibi para desqualificar a democracia e a política como “corrupta” e a exigência por “soluções finais”.

E assim como a misteriosa figura de um doutor hipnotizador que sobrevoa a narrativa de Babylon Berlin (sugerindo a metáfora de uma sociedade hipnotizada e manipulada), também no Brasil temos o nosso “Dr. Caligari”: a grande mídia e o império das Organizações Globo.



Ficha Técnica 

Título:  Babylon Berlin
Criadores: Henky Handloegten, Tom Tykwer, Achim von Borries
Roteiro: Henky Handloegten, Tom Tykwer, Achim von Borries
Elenco:  Volker Bruch, Liv Lisa Fries, Peter Kurth, Mathias Brandt
Produção: X-Film Creative Pool, Sky
Distribuição: Netflix, Sky Atlantic
Ano: 2017-
País: Alemanha


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