O gato já tinha subido no telhado. Primeiro, ele alimentou os
“colonistas” do jornalismo corporativo com a notícia de que faria um “retiro
espiritual” em outubro desse ano. Numa tal de organização chamada “Brahma
Kumaris” – movimento espiritual criado na Índia em 1937.
Para depois, numa sessão plenária do Supremo Tribunal Federal, o
ministro Luís Roberto Barroso anunciar sua aposentadoria antecipada, fechando
um ciclo de doze anos. Desde a posse em 2013, na vaga aberta pela aposentadoria
do ministro Ayres Brito.
Num discurso auto-indulgente (voz embargada e olhos rasos d’água),
mais do que explicar as razões da aposentadoria antecipada, revelou o auto
centramento midiático em que se tornou o STF. Desde os tempos do Mensalão,
ponto de partida da guerra híbrida brasileira que culminou com o impeachment da
presidenta Dilma Rousseff (2016) e o golpe militar híbrido de 2018 – a vitória
eleitoral a fórceps do capitão da reserva Bolsonaro.
E o golpe da judicialização política que ajudou a desmobilizar a
esquerda.
Na saída do palácio do STF, diante dos microfones e câmeras de
ávidos repórteres, Barroso continuou seu show auto-indulgente – pelo seu
discurso, ele praticamente sugeriu que foi o responsável pela continuidade
democrática do País ao dizer que sai no momento certo... em que o Estado de
Direito foi estabilizado.
Mas foi além: disse que em sua aposentadoria continuará a “pensar
o Brasil”, “falando e escrevendo”. Para bom entendedor, meia palavra basta.
Tantos eufemismos e motivações supostamente altruístas para esconder o seguinte
plano: fora do STF, tornar-se um think tank, lobista e informante de
pauta para o jornalismo político da grande mídia.
Barroso não teve um rompante ou algum tipo de burnout para
cogitar um “retiro espiritual” antes de decidir-se pela aposentadoria.
Aparentemente, tudo teve timing e sincronismo – o momento perfeito para a
detonação de uma bomba semiótica no contínuo midiático atmosférico (muito
diferente da velha “opinião pública” – sobre a diferença conceitual, clique aqui.
Primeira, as sanções de Trump contra a “ditadura do STF” - o
magistrado é ligado ao meio acadêmico norte-americano. Ele foi senior fellow
da Escola de Governo John F. Kennedy, em Harvard, e cursou mestrado e
pós-doutorado nos EUA. “O filho teve que abandonar casa e emprego em Miami.
Barroso não pode mais dar aulas em Harvard. Toda a vida deles era americana”,
disse um interlocutor próximo ao ministro, destacando o peso emocional das
sanções – clique aqui.
Em segundo lugar, o timing da antecipação da aposentadoria: às
vésperas de um ano eleitoral e num momento em que o jornalismo corporativo começa
a escalar as pautas negativas para fazer frente à onda positiva de Lula das
últimas semanas – o retorno às manchetes do irmão de Lula na crise do INSS, o
rombo bilionário dos Correios, crise fiscal e até a crise do metanol que ganhou
vulto nacional supostamente pela falta de fiscalização do Governo etc.
O despertar das viúvas carpideiras
A bomba semiótica de Barroso começa a ser detonada quando sua
aposentadoria antecipada desperta as viúvas carpideiras de Biden, Kamala e Novos
Democratas existentes na grande mídia brasileira – cujo coração, apesar da Era
Trump, ainda bate forte com as pautas woke: identidade, raça e gênero.
“Vaga de Barroso reaviva pressão sob Lula, que só escolheu 1
mulher em 10 indicações” (Folha), “Saiba quem são as 13 mulheres sugeridas a
Lula por entidades como opções para vaga no STF” (Estadão), “Abaixo-assinado a
Lula por mulheres no STF já passa de 40 mil assinaturas” (CNN) “Barroso
defendeu a Lula indicação de mulher” (CNN).
A pauta acabou virando transversal, passando do noticiário para o
entretenimento: “Angélica estreia programa no canal GNT pedindo uma mulher
negra para o STF. Enquanto a cantora Anitta reclama em postagem nas redes que
“em 134 anos o STF já teve 172 ministros. Entre eles, apenas três mulheres – e
nenhuma negra”.
Ao mesmo tempo, o jornalismo corporativo vê outra oportunidade de
encaixar um evento à “Semiótica Nem-Nem” – a estratégia semiótica de criar uma
equivalência simbólica entre Lula e Bolsonaro, supostamente as extremidades
ideológicas no espectro político polarizado. Na busca (até aqui hercúlea) pela
despolarização quando conseguir dar tração a uma suposta terceira via
“técnica”, sem ideologias e despolarizada. Até o momento, o governador de SP, Tarcísio
de Freitas, é a primeira aposta.
Por isso tentam equiparar os “extremismos” do Lulopetismo e o
Bolsonarismo. Por exemplo, para a “colonista” Andreia Sadi, Lula e Bolsonaro
abandonaram o critério meritocrático do “notório saber jurídico” pelo “nome de
confiança”. Transformando o STF numa espécie de puxadinho do Governo.]
Por trás dessa pressão midiática das viúvas carpideiras de Biden e
Kamal está a discussão da aplicabilidade do conceito de representatividade na
escolha de ministros do STF.
Os defensores da representatividade argumentam que um STF mais
diverso, com membros de diferentes gêneros, raças, origens sociais e regionais,
seria mais legítimo e capaz de compreender e decidir sobre a pluralidade de
questões da sociedade.
O que fortaleceria a legitimidade: embora a nomeação não seja
feita por voto popular, a composição do tribunal pode ter sua legitimidade
fortalecida se for percebida como um espelho da sociedade que julga. Isso pode
aumentar a confiança da população nas decisões judiciais.
O sintomático é que toda essa reivindicação por uma
representatividade do STF coincida com o momento em que a mídia descobre o
poder Judiciário – as longas sessões enfadonhas com um inescrutável judiciales
(pela própria natureza técnica, dotada de toda uma liturgia às avessas do timing
midiático) começaram a dar lugar à concisão e rapidez na medida em que o
Judiciário toma consciência de agora os holofotes midiáticos estarem concentrados
nele. O que passa a ser interpretado como “protagonismo político” pelo
eufemismo narrativo midiático.
É exatamente esse o ardil desse discurso progressista difuso: imporem
magistrados mais “representativos” que, pela própria natureza “representativa”,
tornam-se mais sensíveis às pressões, reivindicações da “sociedade”. Em outros
termos, tornar os magistrados mais sensíveis à atmosfera política do momento. “Atmosfera”
de uma “sociedade”, logicamente, fabricada pelo clima de opinião midiático – fabricação
que passa, por exemplo, por premiações ofertadas a magistrados e juízes, como o
“Prêmio Innovare”, promovido pela Fundação Roberto Marinho desde 2004. Uma das
mais importantes premiações da justiça brasileira, para reconhecer e divulgar
práticas inovadoras que contribuam para a melhoria do sistema judicial.
O seminal Joaquim Barbosa
O caso seminal que serviu como modelo para ser replicado por esse progressismo
difuso foi o do ministro Joaquim Barbosa e sua performance (atenta pelas lentes
das câmeras de TV) durante o julgamento do Mensalão.
Indicado por Lula em 2003, o presidente recém-eleito buscou sinalizar
para a sociedade uma mudança na composição da Corte, incluindo um ministro de
origem humilde e, pela primeira vez, um negro na sua formação, o que foi
considerado um ato de grande significado simbólico.
Este foi precisamente o gênio da guerra híbrida iniciada com o
Mensalão: Barbosa foi o relator e atuou de forma enérgica contra integrantes do
governo petista. Barbosa facilmente incorporou o personagem que a grande
mídia construiu para ele - “O menino pobre e negro que mudou o Brasil” - Veja).
Por ter a consciência de ser o primeiro magistrado negro no STF
acreditava que deveria corresponder ao significado simbólico imbuído a ele pela
sociedade.
Ser mais realista que o rei: provar que era um negro que, embora indicado
por Lula dentro de uma agenda progressista, não estava alinhado com a esquerda.
Para completar o sincronismo dessa perfeita bomba semiótica, a
ministra Cármen Lúcia, na esteira da aposentadoria antecipada de Barroso,
também afirmou que também cogita antecipar sua saída.
A única mulher hoje no STF parece que conseguiu chamar a atenção
de todos (concentrados em Barbosa) com a sua suposta aposentadoria. Durante
evento promovido pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP),
Cármen aproveitou o debate em torno da aposentadoria do ministro Luis
Roberto Barroso, para reforçar seu apoio à presença de mais mulheres na
mais alta Corte do país.
A magistrada ressaltou ainda que as mulheres compõem mais da
metade da população brasileira e do eleitorado, e há muitas profissionais
qualificadas no campo jurídico que podem ocupar a cadeira de Barroso.
Claro que claro que a discussão em torno do conceito de
representatividade na escolha dos ministros do STF é complexa e controversa.
Mas também e evidente que, se fala-se tanto em equilíbrio dos poderes como um sistema
de pesos e contrapesos para manter em funcionamento a engrenagem da democracia,
é preciso admitir que a noção de representação no Judiciário é de natureza
distinta.
O STF deve atuar com base na lei e na Constituição, não como um
órgão de representação direta da população. Para isso temos as duas casas
do Congresso (representação proporcional) e a presidência da República –
representação majoritária.
Mas, como uma bomba semiótica detonada próxima ao ano eleitoral, a
verdade está em outra cena. E não nessas das discussões conceituais acadêmicas.
Talvez, no sincericídio da apresentadora Angélica na estreia do
seu programa no canal fechado GNT. Pegando a carona na hype, Angélica usou o
espaço para pedir que a próxima indicação de Lula ao Supremo Tribunal Federal
(STF) seja alguém do sexo feminino e, preferencialmente, que seja negra.
Para Angélica, a reivindicação por representação da “diversidade
brasileira” se justificaria porque “O TRIBUNAL DITA OS RUMOS DO PAÍS”.
Para além da percepção ingênua da apresentadora sobre política,
está o sincericídio da judicialização: por que não o Supremo Tribunal, que “dita
os rumos do País”, não assumir de uma vez a ideia de representação política?
Afinal, desde o Mensalão a judicialização tornou convenientemente
manca a democracia brasileira...