“Aquele que beber da minha boca se tornará como eu e eu
serei ele”. Essa frase atribuída a Jesus no evangelho gnóstico de São
Tomas encontrado no Egito há quase 70 anos é fonte de controvérsia por inspirar
uma visão herética de Cristo e da sua missão aqui na Terra: Ele não veio nos “salvar”,
mas nos “curar”, isto é, despertar Ele dentro de nós mesmos.
O historiador e mitólogo Joseph Campbell no livro O
Poder do Mito nos oferece uma didática interpretação dessa passagem do Evangelho
de São Tomas. “Que blasfêmia”, teria observado um padre na plateia em uma
conferência de Campbell. Claro, "somente um deus pode se equiparar a outro deus."
Para além da sua figura histórica, como Mito, Jesus Cristo reflete
nossas potencialidades espirituais, evocando poderes em nossas próprias vidas.
Para Campbell é uma ideia potencialmente revolucionária: além da fé em Cristo
suplantar a própria religião institucionalizada, significa, também, superar o
nosso próprio ego ao voltarmos à raiz da palavra “religião”: religio, religar,
onde a nossa vida isolada é ligada a uma vida una.
Nessa entrevista no livro O Poder do Mito, Campbell explica melhor:
MOYERS: Naturalmente, o âmago da fé cristã é que
Deus está em Cristo e que essas forças elementares, das quais você está
falando, encarnaram se em um ser humano, que reconciliou a humanidade com Deus.
CAMPBELL: Sim, e a idéia gnóstica e budista básica
é aquela que é verdadeira tanto para você como para mim. Jesus foi uma pessoa
histórica que percebeu em si mesmo que ele e o que ele chamou de Pai eram um
só, e viveu o conhecimento do estado crístico em sua própria natureza. Lembro
me de certa vez em que estava dando uma conferência, na qual falei sobre viver
a partir do sentido do Cristo em nós, e um padre que estava na platéia (como eu
soube mais tarde) virou se para a mulher ao seu lado e sussurrou: “Que
blasfêmia!”
MOYERS: O que você quer dizer com Cristo em nós?
CAMPBELL: Quero dizer que você deve viver de acordo
não com o sistema do seu próprio ego, dos seus próprios desejos, mas com aquilo
que você poderia chamar senso de humanidade – o Cristo – em você. Há um
pensamento hindu que diz: “Ninguém a não ser um deus pode adorar um deus”. Você
deve se identificar, de algum modo, com o princípio espiritual, qualquer que
seja, que seu deus represente para você, a fim de venerá-lo adequadamente e
viver de acordo com a palavra dele.
MOYERS: Ao se discutir acerca do deus interior, o
Cristo interior, a iluminação ou despertar que vem do interior, não há o perigo
de nos tornarmos narcisistas, de sermos tomados por uma obsessão pelo próprio
ego, o que pode levar a uma visão distorcida de nós mesmos e do mundo?
CAMPBELL: Isso pode acontecer, claro. É uma espécie
de curto circuito na trajetória. Mas o objetivo é ultrapassar a si mesmo e o
conceito que se tem de si mesmo, para atingir aquilo de que não somos senão uma
manifestação imperfeita. Ao termo de uma meditação, por exemplo, espera se que
você distribua os benefícios advindos dela – quaisquer que sejam – a todos os
seres vivos e ao mundo. Tais benefícios não podem ficar apenas para você. Veja,
há dois modos de pensar “Eu sou Deus”. Se você pensa: “Aqui, em minha presença física
e em meu caráter temporal, eu sou Deus”, então você está louco e provocou um
curto circuito na experiência. Você é Deus não em seu ego, mas em seu mais
profundo ser, onde você é uno com o transcendente não dual.
A palavra “religião” significa religio, religar. Se
dizemos que há uma única vida em nós ambos, então minha existência separada foi
ligada à vida una, religio, religada. Isso está simbolizado nas imagens da
religião, que representam aquela união. (CAMPBELL, Joseph. O Poder do
Mito. São Paulo: Palas Athena, 1990, p. 229-230).
Gnósticos votos de Feliz Natal!