Uma gangue de ladrões que ao invés de assaltar um banco,
tenta invadir a mente de alguém para reaver um valioso quadro de Goya perdido
em uma frustrada tentativa de roubo a uma casa de leilões de artes. Com esse
argumento que mistura os filmes de Nolan “A Origem” com “Amnésia”, o diretor Danny Boyle
faz um interessante thriller psicológico noir no filme “Em Transe” (Trance,
2013). Boyle explora os principais ingredientes de um filme noir: homens
durões, uma mulher fatal e um mundo de ilusões onde nada é o que parece ser.
Nessa clássica receita de um thriller noir, Boyle acrescentou um ingrediente
bem contemporâneo: a psicologia gnóstica – “Em Transe” faz uma espécie de
engenharia reversa do processo de perda da nossa consciência na ilusão que
conhecemos como “realidade”: quanto mais acreditamos que temos livre-arbítrio,
menos percebemos que somos escravos de um estado hipnótico. Filme sugerido pelo
nosso leitor Felipe Resende.
Quatro
figuras semi-nuas estão se contorcendo no ar. Três delas usam chapéus pontudos,
e estão segurando a quarta contra a sua vontade. Seu rosto está contorcido em
uma careta agonizante e seus captores parecem chupar sua carne e sangue. Abaixo
dessa imagem horrível está uma quinta figura que se esconde sob um cobertor com
os punhos estendidos numa vã tentativa de afastar o tormento que paira acima
dele – ou talvez no interior da sua própria cabeça.
Esta
não é uma cena do thriller psicológico de Danny Boyle Em Transe (Trance, 2013):
é na verdade uma descrição do quadro chamado Bruxas no Ar do pintor espanhol Goya, pivô de toda a trama do filme
que gira em torno do seu roubo. Mas lá pela metade do filme, provavelmente o
espectador vai se identificar com o personagem do quadro que tem o cobertor
sobre a cabeça e compreender o porquê dessa obra ser o centro de tudo: o que
entendemos como realidade pode ser nada mais do que a soma de todas as
impressões, sugestões ou sentimentos criados por nós ou simplesmente inseridas
em nossa cabeça – acreditamos no livre-arbítrio de nossas ações e, baseado
nisso, construímos nossas vidas. Mas até que ponto isso é verdade?
No
filme Em Transe nada é o que parece ser. Boyle aplica essa primeira lição dos
filmes noir (gênero cinematográfico de filmes policiais nos anos 1940-50
marcado pela fotografia em pb de alto contraste com personagens em atitudes
cínicas em um mundo que se desfazia em ilusões), primeira referencia de onde o
diretor tirou a inspiração do filme – muitos espelhos refletindo rostos fragmentados,
superfícies reflexivas, planos inclinados mostrando ambientes noturnos.
O Filme
Como
tal, o filme começa com uma narrativa em of de um dos protagonistas, Simon (James McAvoy), um
leiloeiro de obras de arte em Londres. Ele explica para o espectador todos os protocolos de segurança
que envolvem obras de arte em uma casa de leilões. Simon parece um narrador
confiável: ele olha para nós, é bonito, bem sucedido com o seu sotaque
escocês... Em contraponto está o violento Frank (Vincent Cassel) e sua gangue
que pretende roubar a obra de Goya em pleno leilão. Mas algo sai errado no
plano: descobrimos que Simon era um dos membros da ação, mas ele é golpeado na
cabeça por Frank para arrancar dele o valioso quadro de Goya.
Sem
saber, Frank leva apenas a moldura do quadro. A tela fora arrancada minutos
antes e escondida por Simon, que retorna do estado de coma no hospital sem
conseguir lembrar onde a escondeu. Simon
não consegue lembrar, mas o segredo ainda está lá, em algum lugar na cabeça.
Como resgatá-lo?
Boyle
introduz na história o segundo elemento de um filme noir: a femme fatale. Frank tem uma ideia:
chamar uma hipnoterapeuta – através da hipnose, resgatar a memória vital para
os seus planos. A atraente e misteriosa Dra. Elizabeth Lamb (Rosario Dawson)
vai proporcionar o interessante argumento do filme: ao invés de vermos uma
quadrilha que tenta assaltar um banco, vemos ladrões que tentam invadir a mente
de alguém.
"Bruxas no Ar" (1797-98) de Goya |
A
partir desse momento, Em Transe
claramente começa fazer um mix de temas dos filmes A Origem (Inception,
2010) e Amnésia (Memento, 2000) do diretor Christopher Nolan. O ritmo do filme
começa a ficar mais frenético, cenas dos transes hipnóticos e da realidade se
misturam e, aos poucos, as primeiras impressões que tínhamos do início do filme
(o narrador confiável e bonito, a gangue de vilões decididos etc.) começa a ser
desconstruída em uma outra narrativa que começa a ser desvendada de trás para
frente.
A desconstrução noir
Assim
como em todo filme noir, os homens durões parecem ter o controle de tudo, mas
por trás das ilusões esconde-se o poder de sedução de uma mulher fatal capaz de
levar todos à destruição de forma sutil e supreendente.
Em Transe é um thriller noir e psicológico que a
cada sequência parece desconstruir todas a certezas que tínhamos da sequência
anterior. A desconstrução psicológica da narrativa chega a tal ponto que coloca
em xeque a própria liberdade de arbítrio dos próprios protagonistas do filme:
Frank e sua gangue são durões, decididos e planejaram tudo meticulosamente,
lembrando bastante os personagens de Guy Ritchie dos filmes como em Snatch – Porcos e Diamantes e Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes.
Mas será que todas as suas decisões foram, de alguma maneira, inseridas
anteriormente nas suas mentes por alguém? A hipnoterapeuta atraente e fatal estaria
por trás disso?
Dessa
forma Em Transe deixa de ser um thriller comum para se enquadrar em uma trama
psicológica gnóstica. A desconstrução das motivações por trás do roubo do
quadro de Goya chega ao próprio questionamento daquilo que entendemos como
realidade – a realidade pode ser construída a partir da soma de medos, culpa,
dúvidas, ressentimentos que podem acabar nos aprisionando.
Quando
acreditamos estar agindo racionalmente e em plexo exercício do nosso
livre-arbítrio, é quando não conseguimos ter consciência das verdadeiras
motivações que foram inseridas em nossas mentes.
Os estados de consciência
Para
a psicologia gnóstica, há quatro estados possíveis de consciência com
diferentes graus entre eles, sendo que a média das pessoas consegue ter acesso
apenas a dois. E no filme Em Transe, todos esses estados são abordados:
(a) Sono, transe, sonho –
inconsciência onde o indivíduo é incapaz de alterar o ambiente. Vive-se o mundo
da ilusão e sonhos onde não conseguimos lembrar de quem são ou de onde vieram;
(b) Vigília – estamos
em certa medida consciente do ambiente e somos capazes de agir no mundo.
Entretanto, paradoxalmente sonhamos com nossas memórias, preocupações e
pensamentos. Nossa consciência ainda dorme e temos nossa atenção atraída para
certas coisas em determinados momentos. Por isso, nos tornamos impulsivos,
contraditórios e facilmente manipuláveis por ameaças, elogios ou seduções do
mundo exterior;
(c) Auto-consciência – Somos ao
mesmo tempo observadores e observados. Vemos o ambiente e estamos consciente
disso. Observamos pensamentos e processos, ao invés de apenas sonharmos com
eles. Nesse estado, podemos criar virtudes e conhecimento esotérico;
(d) Consciência desperta –
Consciência desperta, livre e incondicionada. Libertamos nossa psicologia. A
Iluminação vem do interior de nós mesmos, a partir do próprio Ser.
A
grande questão do filme Em Transe e
que desafia o espectador é o de superarmos os estados de consciência (a) e (b)
e conquistarmos o terceiro estado: o problema fundamental dos protagonistas
Frank e Simon é que durante toda a trama eles acreditam que têm consciência de
tudo, que puxam todas as cordas e que são livres para racionalmente planejar
tudo. Mas sem saberem são escravos de um passado, de algo ou de algum comando
que foi inserido em suas mentes. E por trás de tudo talvez esteja a mulher
fatal Elizabeth Lamb e a onipresente hipnose que embaralha ilusão e realidade.
Psicologia Gnóstica
O
filme apresenta o problema central da psicologia gnóstica: sem alcançarmos o
estado da auto-consciência nossa vida se processa mecanicamente onde sentimos e
agimos de acordo com uma experiência subjetiva do mundo. A qualidade do
terceiro estado é a não-reação aos nossos estados internos e eventos externos –
o terceiro estado requer meditação, o duplo estado de observar e ser observado.
O
fator chave para a perda da consciência é a identificação – identificamo-nos
com nós mesmos, com as palavras dos outros, memórias, sentidos, o mundo. Frank
é ambicioso (que roubar o valioso quadro de Goya) e Simon impulsivo (endividado
em jogos de pôquer), formas de identificação onde nossa mente é atraída sem
consciência.
O
próximo passo é a fascinação - começamos
a nos entreter com pensamentos e ideias em torno do objeto. Passamos a ter
devaneios, como sonhos em estado de vigília. Tal como Frank e Simon, agirmos
racionalmente em busca desse objeto, porém sem termos consciência da fonte da
identificação.
E
por último, a consciência adormece: nessa fase estamos em um tipo de hipnose e
somos muito sugestionáveis em relação ao objeto/pessoa/evento com o qual
estamos fascinados. Por isso, os homens durões e controladores do filme se
tornam tão facilmente sugestionáveis pelos poderes hipnóticos de Elizabeth.
Dessa
maneira, a narrativa do filme Em Transe pode ser considerada uma espécie de
engenharia reversa no nosso processo de perda da consciência nas ilusões da
realidade. As bruxas permanecem no ar, embora sejam produtos da nossa
inconsciência.
Ficha Técnica |
Título: Em
Transe (Trance)
|
Diretor:
Danny Boyle
|
Roteiro:
Joe Ahearne e John Hodge
|
Elenco: James McAvoy, Rosario Dawson, Vincent Cassel
|
Produção:
Pathé, Cloud Eight, Film 4
|
Distribuição:
20th Century Fox
|
Ano: 2013
|
País: Reino Unido, França
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