domingo, dezembro 21, 2014

Nossa consciência é uma ilusão no filme "Em Transe"

Uma gangue de ladrões que ao invés de assaltar um banco, tenta invadir a mente de alguém para reaver um valioso quadro de Goya perdido em uma frustrada tentativa de roubo a uma casa de leilões de artes. Com esse argumento que mistura os filmes de Nolan “A Origem” com “Amnésia”, o diretor Danny Boyle faz um interessante thriller psicológico noir no filme “Em Transe” (Trance, 2013). Boyle explora os principais ingredientes de um filme noir: homens durões, uma mulher fatal e um mundo de ilusões onde nada é o que parece ser. Nessa clássica receita de um thriller noir, Boyle acrescentou um ingrediente bem contemporâneo: a psicologia gnóstica – “Em Transe” faz uma espécie de engenharia reversa do processo de perda da nossa consciência na ilusão que conhecemos como “realidade”: quanto mais acreditamos que temos livre-arbítrio, menos percebemos que somos escravos de um estado hipnótico. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

Quatro figuras semi-nuas estão se contorcendo no ar. Três delas usam chapéus pontudos, e estão segurando a quarta contra a sua vontade. Seu rosto está contorcido em uma careta agonizante e seus captores parecem chupar sua carne e sangue. Abaixo dessa imagem horrível está uma quinta figura que se esconde sob um cobertor com os punhos estendidos numa vã tentativa de afastar o tormento que paira acima dele – ou talvez no interior da sua própria cabeça.

Esta não é uma cena do thriller psicológico de Danny Boyle Em Transe (Trance, 2013): é na verdade uma descrição do quadro chamado Bruxas no Ar do pintor espanhol Goya, pivô de toda a trama do filme que gira em torno do seu roubo. Mas lá pela metade do filme, provavelmente o espectador vai se identificar com o personagem do quadro que tem o cobertor sobre a cabeça e compreender o porquê dessa obra ser o centro de tudo: o que entendemos como realidade pode ser nada mais do que a soma de todas as impressões, sugestões ou sentimentos criados por nós ou simplesmente inseridas em nossa cabeça – acreditamos no livre-arbítrio de nossas ações e, baseado nisso, construímos nossas vidas. Mas até que ponto isso é verdade?



No filme Em Transe nada é o que parece ser. Boyle aplica essa primeira lição dos filmes noir (gênero cinematográfico de filmes policiais nos anos 1940-50 marcado pela fotografia em pb de alto contraste com personagens em atitudes cínicas em um mundo que se desfazia em ilusões), primeira referencia de onde o diretor tirou a inspiração do filme – muitos espelhos refletindo rostos fragmentados, superfícies reflexivas, planos inclinados mostrando ambientes noturnos.

O Filme


Como tal, o filme começa com uma narrativa em of de um dos protagonistas, Simon (James McAvoy), um leiloeiro de obras de arte em Londres. Ele explica para o espectador todos os protocolos de segurança que envolvem obras de arte em uma casa de leilões. Simon parece um narrador confiável: ele olha para nós, é bonito, bem sucedido com o seu sotaque escocês... Em contraponto está o violento Frank (Vincent Cassel) e sua gangue que pretende roubar a obra de Goya em pleno leilão. Mas algo sai errado no plano: descobrimos que Simon era um dos membros da ação, mas ele é golpeado na cabeça por Frank para arrancar dele o valioso quadro de Goya.

Sem saber, Frank leva apenas a moldura do quadro. A tela fora arrancada minutos antes e escondida por Simon, que retorna do estado de coma no hospital sem conseguir lembrar onde a escondeu.  Simon não consegue lembrar, mas o segredo ainda está lá, em algum lugar na cabeça. Como resgatá-lo?

Boyle introduz na história o segundo elemento de um filme noir: a femme fatale. Frank tem uma ideia: chamar uma hipnoterapeuta – através da hipnose, resgatar a memória vital para os seus planos. A atraente e misteriosa Dra. Elizabeth Lamb (Rosario Dawson) vai proporcionar o interessante argumento do filme: ao invés de vermos uma quadrilha que tenta assaltar um banco, vemos ladrões que tentam invadir a mente de alguém.

"Bruxas no Ar" (1797-98) de Goya
A partir desse momento, Em Transe claramente começa fazer um mix de temas dos filmes A Origem (Inception, 2010) e Amnésia (Memento, 2000) do diretor Christopher Nolan. O ritmo do filme começa a ficar mais frenético, cenas dos transes hipnóticos e da realidade se misturam e, aos poucos, as primeiras impressões que tínhamos do início do filme (o narrador confiável e bonito, a gangue de vilões decididos etc.) começa a ser desconstruída em uma outra narrativa que começa a ser desvendada de trás para frente.

A desconstrução noir


Assim como em todo filme noir, os homens durões parecem ter o controle de tudo, mas por trás das ilusões esconde-se o poder de sedução de uma mulher fatal capaz de levar todos à destruição de forma sutil e supreendente.

Em Transe é um thriller noir e psicológico que a cada sequência parece desconstruir todas a certezas que tínhamos da sequência anterior. A desconstrução psicológica da narrativa chega a tal ponto que coloca em xeque a própria liberdade de arbítrio dos próprios protagonistas do filme: Frank e sua gangue são durões, decididos e planejaram tudo meticulosamente, lembrando bastante os personagens de Guy Ritchie dos filmes como em Snatch – Porcos e Diamantes e Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes. Mas será que todas as suas decisões foram, de alguma maneira, inseridas anteriormente nas suas mentes por alguém? A hipnoterapeuta atraente e fatal estaria por trás disso?

Dessa forma Em Transe deixa de ser um thriller comum para se enquadrar em uma trama psicológica gnóstica. A desconstrução das motivações por trás do roubo do quadro de Goya chega ao próprio questionamento daquilo que entendemos como realidade – a realidade pode ser construída a partir da soma de medos, culpa, dúvidas, ressentimentos que podem acabar nos aprisionando.

Quando acreditamos estar agindo racionalmente e em plexo exercício do nosso livre-arbítrio, é quando não conseguimos ter consciência das verdadeiras motivações que foram inseridas em nossas mentes.

Os estados de consciência



Para a psicologia gnóstica, há quatro estados possíveis de consciência com diferentes graus entre eles, sendo que a média das pessoas consegue ter acesso apenas a dois. E no filme Em Transe, todos esses estados são abordados:

(a) Sono, transe, sonho – inconsciência onde o indivíduo é incapaz de alterar o ambiente. Vive-se o mundo da ilusão e sonhos onde não conseguimos lembrar de quem são ou de onde vieram;

(b) Vigília – estamos em certa medida consciente do ambiente e somos capazes de agir no mundo. Entretanto, paradoxalmente sonhamos com nossas memórias, preocupações e pensamentos. Nossa consciência ainda dorme e temos nossa atenção atraída para certas coisas em determinados momentos. Por isso, nos tornamos impulsivos, contraditórios e facilmente manipuláveis por ameaças, elogios ou seduções do mundo exterior;

(c) Auto-consciência – Somos ao mesmo tempo observadores e observados. Vemos o ambiente e estamos consciente disso. Observamos pensamentos e processos, ao invés de apenas sonharmos com eles. Nesse estado, podemos criar virtudes e conhecimento esotérico;

(d) Consciência desperta – Consciência desperta, livre e incondicionada. Libertamos nossa psicologia. A Iluminação vem do interior de nós mesmos, a partir do próprio Ser.

A grande questão do filme Em Transe e que desafia o espectador é o de superarmos os estados de consciência (a) e (b) e conquistarmos o terceiro estado: o problema fundamental dos protagonistas Frank e Simon é que durante toda a trama eles acreditam que têm consciência de tudo, que puxam todas as cordas e que são livres para racionalmente planejar tudo. Mas sem saberem são escravos de um passado, de algo ou de algum comando que foi inserido em suas mentes. E por trás de tudo talvez esteja a mulher fatal Elizabeth Lamb e a onipresente hipnose que embaralha ilusão e realidade.

Psicologia Gnóstica


O filme apresenta o problema central da psicologia gnóstica: sem alcançarmos o estado da auto-consciência nossa vida se processa mecanicamente onde sentimos e agimos de acordo com uma experiência subjetiva do mundo. A qualidade do terceiro estado é a não-reação aos nossos estados internos e eventos externos – o terceiro estado requer meditação, o duplo estado de observar e ser observado.

O fator chave para a perda da consciência é a identificação – identificamo-nos com nós mesmos, com as palavras dos outros, memórias, sentidos, o mundo. Frank é ambicioso (que roubar o valioso quadro de Goya) e Simon impulsivo (endividado em jogos de pôquer), formas de identificação onde nossa mente é atraída sem consciência.

O próximo passo é a fascinação -  começamos a nos entreter com pensamentos e ideias em torno do objeto. Passamos a ter devaneios, como sonhos em estado de vigília. Tal como Frank e Simon, agirmos racionalmente em busca desse objeto, porém sem termos consciência da fonte da identificação.

E por último, a consciência adormece: nessa fase estamos em um tipo de hipnose e somos muito sugestionáveis em relação ao objeto/pessoa/evento com o qual estamos fascinados. Por isso, os homens durões e controladores do filme se tornam tão facilmente sugestionáveis pelos poderes hipnóticos de Elizabeth.

Dessa maneira, a narrativa do filme Em Transe pode ser considerada uma espécie de engenharia reversa no nosso processo de perda da consciência nas ilusões da realidade. As bruxas permanecem no ar, embora sejam produtos da nossa inconsciência.


Ficha Técnica


Título: Em Transe (Trance)
Diretor: Danny Boyle
Roteiro: Joe Ahearne e John Hodge
Elenco: James McAvoy, Rosario Dawson, Vincent Cassel
Produção: Pathé, Cloud Eight, Film 4
Distribuição: 20th Century Fox
Ano: 2013
País: Reino Unido, França




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