Quando revelou que ia sair da bancada do Jornal Nacional (acendendo as mais diversas teorias conspiratórias), Patrícia Poeta disse que preparava um “projeto de programa de entretenimento” e afirmou “ter se preparado a vida inteira para isso”. Se isso for verdade, é a repetição de um fenômeno que vai da apresentadora Daniela Albuquerque (que descobriu a profissão de jornalismo em uma caixa de toddinho) ao jornalista esportivo Tiago Leifert escalado para apresentar o reality show musical da TV Globo “The Voice Brasil” – confirmando a profética iniciativa de Silvio Santos quando colocou a jornalista Lilian Witte Fibe no júri do “Show de Calouros” em 1991. É o infotenimento, fenômeno no passado restrito ao mundo das “notícias diversas”(notícias insólitas e inexplicáveis), mas hoje recorrente quando jornalistas egressos das “hard news” decidem partir para projetos de entretenimento. Mais que exceções, parecem revelar secretas conexões que sempre existiram entre notícia e entretenimento.
Três parábolas televisivas:
(a) Em 1991 a jornalista
Lilian Witte Fibe foi contratada por Silvio Santos para comandar o Jornal do
SBT. Logo depois, a jornalista foi convocada pela dono da emissora para fazer
uma participação especial no Show de Calouros, quadro do programa das tardes de
domingo de Silvio Santos, ao lado de figuras como Pedro de Lara e Elke
Maravilha. Contrariando o princípio da época da credibilidade do jornalismo,
Silvio coloca a apresentadora do principal telejornal da emissora em um
programa de auditório ao lado das figuras mais caricatas da TV brasileira ;
(b) No início dos anos 2000
é lançado em Toronto, Canadá, o Naked
News. Apresentado pela Internet e TV a cabo, é um telejornal apresentado
ainda hoje onde as apresentadoras fazem strip-tease enquanto leem as notícias.
Com o slogan “um programa que não tem nada a esconder”, faz um irônico
trocadilho com o suposto ideal do jornalismo por “transparência” e de querer apresentar “a realidade nua e
crua”.
Lilian Witte Fibe no Show de Calouros: Silvio Santos foi profético |
(c) Em 2003, novamente
Sílvio Santos (esse incendiário midiático) manda o requisito da credibilidade
do telejornalismo às favas e coloca duas ex-participantes do reality show da
emissora, Casa dos Artistas, na
bancada (vazada, claro, para mostrar suas belas pernas) do Jornal do SBT: Analice Nicolau e Cynthia Benini. Com provocativas pernas
cruzadas e com modelitos misto de aeromoças da Aeroflot com dançarinas de
lambada, liam as notícias e apresentavam o quadro Tolerância Zero com ações policiais nos EUA.
A ascensão do Infotenimento
Essas três histórias
inusitadas poderiam ser os sintomas mais agudos de um espectro que ronda o telejornalismo:
o chamado “infotenimento” (informação + entretenimento), suposto “gênero” cuja
existência colocaria em xeque a própria natureza do Jornalismo: seria a notícia
um entretenimento assim como qualquer outro produto da sociedade de consumo? Se
isso for verdade, como ficaria o axioma de que a informação é o alicerce de uma
democracia saudável e de cidadãos críticos e conscientes?
Se no passado esse mix da
notícia com entretenimento era ainda tímido com os faits divers (“fatos diversos”, notícias excepcionais ou insólitas
não categorizáveis pelas editorias tradicionais como Política, Economia,
Internacional ou Esportes), nesse início de século XXI torna-se cada vez mais
explícito e sem pudores.
Os exemplos são cada vez
mais recorrentes, o que elevam os rompantes de Sílvio Santos no passado a
categoria de profecias:
(a) jornalista Pedro Bial: ex-correspondente
internacional da TV Globo, egresso das hard
news (cobriu eventos como Guerra do Golfo, a queda do Muro de Berlim etc.)
entra para o mundo do infotenimento como apresentador do Fantástico em 1996.
Daí foi um passo para tornar-se apresentador do reality show Big Brother
(curiosamente o programa era tratado como fato jornalístico na pauta dos
telejornais da emissora) onde passou a destilar crônicas moralistas para
candidatos eliminados;
Pedro Bial: das hard news às crônicas moralizante do Big Brother Brasil |
(b) Jornalista Fátima
Bernardes: ao lado William Bonner, apresentadora do principal programa
jornalístico da Globo, Jornal Nacional, depois de 13 anos abandona o telejornal
para se lançar em um programa de entretenimento, algumas notícias e variedade –
Encontro com Fátima Bernardes. Isso pouco tempo depois do episódio da
entrevista com a candidata Dilma Roussef nas eleições de 2010 onde ao vivo teve
que manter o controle do marido William Bonner que começava a perder a
compostura diante da que seria a futura presidenta;
(c) Jornalista Patrícia
Poeta: cercada por muitas teorias conspiratórias, revela que vai abandonar a
bancada do Jornal Nacional em novembro próximo para dedicar-se a um “projeto de
entretenimento”. Isso em pleno ano eleitoral e após mais um incidente com entrevista
com a candidata Dilma Roussef: apontou o dedo em riste para a presidenta numa
entrevista ao vivo, onde dessa vez ambos (Bonner e Poeta) perderam a
compostura. Uma entrevista que já entrou para a história da TV de um telejornal
em crônica crise de audiência. Patrícia Poeta afirma que “preparou-se a vida
inteira” para esse projeto pessoal de programa de entretenimento;
(d) Jornalista Tiago
Leifert: após reformular a tradicional linguagem dos programas esportivos
(centrada no esporte como notícia) e criar uma inusitada fórmula onde a atração
é o próprio programa com muita metalinguagem (piadas do apresentador com os
jogadores, ônibus estúdio do programa que vira notícia, etc. – sobre isso clique
aqui), o editor-chefe do Globo
Esporte é convocado para apresentar as edições do reality show musical The Voice Brasil. Com esse exemplo, novamente
podemos considerar que Silvio Santos foi profético quando escalou a jornalista
do sisudo mundo da Economia, Lilian Witte Fibe, para o júri do Show de Calouros em 1991.
Por que o telejornal é agradável?
As análises críticas do
telejornalismo se concentram principalmente nas manipulações da pauta, edição e
na ingerência de interesses político-ideológicos nas angulações das matérias.
Mas se esquecem de uma coisa que parece ser tão óbvia que acaba se tornando natural:
todo telejornal é feito para ser agradável.
Não importa o seu conteúdo
específico, o quanto as notícias sejam boas ou más ou quão profundamente as
manipulações dos apresentadores possam nos afetar ideologicamente, no todo é
sempre agradável assistir a um telejornal – ritmo, cores, cenografia, imagens
limpas etc.
Tão agradável que,
paradoxalmente, quando um telejornal tem que criar um efeito de realidade forte
(isto é, dar a uma notícia um aspecto mais “realista”) tem que propositalmente
“sujar” a imagens com vídeos granulados e áudio com muitos ruídos e
legendas para dar um efeito documental.
Em seu texto
clássico chamado O
Telejornal e Seu Espectador, Robert
Stam questiona esse pressuposto de todo telejornalismo: por que o noticiário
deve ser agradável?, Stam chama a atenção para a natureza ficcional do
telejornalismo: o prazer voyeurista do espectador, as noções de teledramaturgia
que os apresentadores devem ter ao ler as notícias no teleprompter, matérias
com trilhas musicais que pontuam emoções ao melhor estilo das telenovelas,
efeitos croma key que colocam jornalistas dentro de quadros sinóticos de
previsão do tempo etc.
Konstantin Stanislavski é o pai dos âncoras de telejornais? |
Por isso, ao lidar desde o
início com a linguagem audiovisual cinematográfica e televisiva, o destino do
telejornalismo teria sido sempre o do entretenimento. Robert Stam demonstra
isso ao descrever como o telejornalismo reproduz as mesmas técnicas hollywoodianas de
identificação ao procurar construir a credibilidade dos apresentadores no olhar
para a câmera, gestos e fisionomias em técnicas cujas origens podem ser
encontradas nos métodos de interpretação do ator no sistema Stanislavski ou no método da famosa Actor’s Studio.
O destino do telejornal em uma “mídia fria”
Aliado ao argumento de
Robert Stam, temos também as proféticas visões do pesquisador canadense
Marshall McLuhan quando categorizou as mídias entre as chamadas “quentes”
e “frias”. Para ele jamais a televisão
seria um veículo de “informações” no sentido pedagógico ou racional: a TV era
uma mídia muito “fria” (recepção dispersa e baixa definição) para veicular um conteúdo
“quente” (a informação, conteúdo de alta definição) – sobre essa tema clique
aqui.
Os casos de
Pedro Bial, Fátima Bernardes, Patrícia Poeta e Tiago Leifert podem não ser a
exceção, mas a revelação da própria natureza do telejornalismo, a sua vocação
natural para o entretenimento muito antes da informação.
Quando a
apresentadora Daniela Albuquerque foi ridicularizada por haver afirmado que
tinha descoberto o Jornalismo em uma caixa de toddynho (leu a descrição da
carreira em uma série de profissões na caixa do produto em um café-da-manhã),
ninguém entendeu que, ao lado do terrorista midiático Sílvio Santos, talvez
tenha sido aquela que revelou de forma sincera as ambíguas conexões entre
informação e entretenimento.