Um carro pode proporcionar uma experiência mística fora do corpo? Com a
análise semiótica em 360 graus do caso do filme publicitário do Novo Honda
Civic 2015, que apresenta o consumo como um ato muito mais de transformação
espiritual do que de aquisição, o curso "A Linguagem das Mercadorias" da pós em
Comunicação e Semiótica da Universidade Anhembi Morumbi fez seu último encontro dissecando a
mais nova ferramenta semiótica: a “Adgnose”. Diferente das formas anteriores de
busca de identificação do consumidor por meio de fantasias-modais (através de pesquisas
por perfis sócio-econômicos e de estilos de vida), hoje o Marketing e a
Publicidade obtêm o descolamento máximo do consumo em relação à materialidade
do produto com a exploração dos arquétipos: símbolos e imagens do inconsciente
coletivo. Surge uma irônica operação semiótica publicitária: ao invés de
“comprar-consumir-ter”, agora temos “comprar-consumir-espiritualizar-se”.
Nessa
última segunda feira (22 de setembro) esse humilde blogueiro ministrou o último
encontro do curso “A Linguagem das Mercadorias” da pós-graduação em Comunicação
e Semiótica da Universidade Anhembi Morumbi (informações sobre o curso clique aqui). Nos seis encontros do curso,
acompanhamos como a linguagem que promove as mercadorias no capitalismo através
da Publicidade foi progressivamente tornando-se cada vez mais abstrata:
estudamos uma série de ferramentas semióticas que operaram um verdadeiro
descolamento dos signos em relação à materialidade dos produtos.
Vimos
que essa operação de “descolamento” é necessária por duas exigências econômicas
bem concretas:
(a)
Acompanhando o raciocínio dos teóricos da chamada Crítica da Estética da Mercadoria (Peter Haug, Michael Schneider),
percebemos que todas as estratégias do Capital em maximizar lucros se chocam no
limite físico do valor de uso das mercadorias: sua materialidade e finitude
pode limitar o consumo no tempo e espaço (satisfação, saciedade, durabilidade
etc.), diminuindo a velocidade da substituição dos produtos no mercado. Por
isso, historicamente o grande papel da Publicidade foi convencer o consumidor a
comprar o produto não pela sua utilidade,
mas pela inutilidade. Isto é,
associar o produto simbolicamente a um tipo de signo que torna-se cada vez mais
abstrato.
O consumido sempre será
sempre o signo, e não mais o produto. Isso garante uma insatisfação constante,
por trás da estética da realização plena oferecida pelas imagens publicitárias;
(b) A cartelização da
economia após o crash financeiro de 1929 levou a uma progressiva
indiferenciação tecnológica dos produtos: eles tendem a ficar cada vez mais
parecidos tanto na sua matéria-prima, fabricação, apresentação e durabilidade.
Novamente entra em ação a importância de transformar o produto em signo, porque
só nesse nível (o linguístico) os produtos irão se diferenciar: cor, design,
embalagem etc.
Os arquétipos e a Adgnose
publicitária
Nos cinco encontros
anteriores descrevemos essa trajetória de abstração da mercadoria que passou
por sucessivas fases: signo-fetiche, signo-afeto, signo-fantasia e
signo-dádiva – sobre esses conceitos clique aqui. No último encontro do curso,
tomamos contato com o signo mais abstrato e, por assim dizer, “metafísico” na
atualidade onde a imagem da mercadoria foi finalmente descolada da sua
materialidade: o signo-arquétipo.
Conceituamos
essa nova estratégia de “Adgnose” (advertising + gnosis – “iluminação
espiritual”), uma estratégia irônica da Publicidade onde ela parece ter assimilado todas as críticas
feitas a ela ao longo da história (consumismo, superficialidade, frivolidade,
materialismo etc.) e procura agora demonstrar que mudou, se espiritualizou e
não vê mais o consumo como mero ato de aquisição, mas agora de enriquecimento
espiritual.
E esse “enriquecimento
espiritual” viria com a identificação do consumidor com um arquétipo
reconhecido na signalidade do produto (imagem, apresentação, narrativa do filme
publicitário – a “storytelling” etc.).
Imagens do inconsciente coletivo
O conceito de arquétipo
surgiu em 1919 com o suíço discípulo de Freud Carl Gustav Jung. Para ele,
arquétipos seriam formas e imagens arcaicas do inconsciente coletivo. A
existência dos arquétipos pode ser deduzida a partir do comportamento, arte,
mitos, religiões e sonhos, formas de atualização em cada época e cultura dessas
formas psíquicas primordiais. Arquétipos como o do Herói, a Morte, o Fora da
Lei etc. são o núcleo psíquico de símbolos e imagens que dão o verdadeiro
significado para contos de fada, lendas, mitos e narrativas religiosas em
diversos países e culturas.
Mas principalmente, os
arquétipos podem ser símbolos de transformação pessoal pela maneira com que
cada pessoa lida com esses arquétipos coletivos, isto é, como esses símbolos
coletivos podem ser o desencadeador das necessidades de realização, pertença,
independência ou estabilidade.
Arquétipos: transformação ou motivação?
Na Adgnose esses símbolos de
transformação acabam sendo traduzidos na Publicidade como “motivações” fonte de
energia para serem aglutinadas e aprisionadas em narrativas e imagens que
ponham em movimento um novo imaginário: o consumo muito menos como um ato
de acúmulo e ostentação e mais uma oportunidade de buscar uma espécie de atalho
para a iluminação espiritual: comprar-consumir-espiritualizar-se.
Quando o consumidor se
reconhece no arquétipo, realiza-se um sonho há muito tempo almejado pelos
diversos dispositivos que a Publicidade desenvolveu (subliminares, psíquicos,
cognitivos etc.): a identificação total do consumidor com o produto, a
mercadoria transformada no espelho do próprio consumidor.
Marketing: Fantasia modal superada pela busca do arquétipo |
A partir dos arquétipos
básicos descritos por Jung (Persona, Sombra, Animus, Self, Mãe e Sábio), através
da ferramenta da Adgnose o Marketing e Publicidade procuram fixar os perfis
psicográficos de consumidores em 12 arquétipos, traduzidos como princípios
motivadores: Inocente, Explorador, Sábio, Herói, Fora-da-Lei, Mágico, Normal,
Amante, Palhaço, Protetor, Criador, Poderoso.
A Linguagem das Mercadorias 360 graus
Como último encontro do
curso, resolvemos construir uma abordagem em 360 graus dos diversos níveis de
abstração da linguagem das mercadorias. Embora esses diversos níveis tenham uma
distância cronológica na história da Publicidade, eles atualmente funcionam de
forma simultânea em cada peça publicitária, seja visual ou audiovisual.
Como estudo de caso pegamos
o comercial do Novo Honda Civic 2015. Ele chamou a atenção de todos da classe
pela sua abordagem inicial evidentemente “espiritual”, quando a voz em off
descreve uma experiência de “sair do corpo e ser levado pelo vento”, e depois
ver a si mesmo no novo Honda Civic através dos olhos de uma coruja, de um velho
e de um menino. Veja o comercial que analisamos:
Usando a tricotomia da
semiótica peirciana:
(a) no nível da Primeiridade verificamos a construção do
signo-afeto: câmera na mão tremendo, carro em velocidade, constantes enquadramentos
em diagonal: a voz em of é serena e
“espiritual”, enquanto as imagens são tensas, rápidas e em desequilíbrio. Temos
a dominante de forma visual em diagonal, derivada do triângulo. Como vimos em
aula anterior sobre as formas geométricas como arquétipos e simbolismos
psíquicos (sobre a chamada “Geometria Sagrada” clique aqui), o triângulo
refere-se a uma dominante de apelo ao Ego.
(b) essa aparente
contradição (discurso em of
“espiritualizado” e o signo-afeto apelando ao Ego) é resolvida no nível da Segundidade, com a construção do
signo-fantasia: no final do filme, vemos uma mulher atraente olhando de forma
provocativa, enquanto o protagonista volta para seu corpo, olha seu próprio
reflexo no vidro do Honda Civic, numa clássica construção do automóvel como símbolo
fálico – potencia e força masculina, apelo ao Ego.
(c) Terceiridade: nesse nível temos o principal apelo dessa peça
publicitária: não estamos consumindo apenas um Honda Civic, mas o arquétipo do
“Mágico”: o apelo a experiências extra-sensoriais e coincidências, momentos
mágicos e experiências de transformação, experiências de fluxo etc.
Se na tradicional
psicografia das pesquisas de marketing o estilo de vida e valores do
público-alvo são representados por signos de identificação, na Adgnose temos um
estágio mais avançado onde o público vê-se representado em um arquétipo, e não
mais numa fantasia-modal. Isso quer dizer que o produto “desaparece” ou é
deslocado para o segundo plano por prometer ao consumidor uma espécie de
enriquecimento espiritual: a gnose.
As motivações tradicionais
da compra de um veículo (apelo ao Ego, simbolismo fálico de poder e sedução)
acabam sendo “racionalizados” por um consumo espiritualmente correto, new age e
com valores supostamente “elevados”. Em outras palavras, o arquétipo do Mágico
acaba assumindo um duplo papel: primeiro, como fator motivacional e de
identificação do consumido (reforçado pela metáfora final dos olhos do
protagonista se fundirem com os faróis acesos do Honda Civic).
E segundo, como álibi ou
pretexto para esconder as motivações mais primárias e inconscientes: o
signo-fetiche – o carro como extensão fálica masculina.
Numa visão 360 graus do
curso, chegamos a uma síntese da dinâmica semióticas das mercadorias:
PrimeiridadeSinalização |
SegundidadeInformação |
TerceiridadeComunicação |
Afeto
|
Emoção
|
Arquétipo
|
Extra-signo
|
Desejo, fantasia
|
Adgnose
|