Uma época em que o cinema era menos auto-indulgente e jovens diretores
tinham acesso a altos orçamentos para realizar os projetos mais bizarros. Foi
nos anos 1970, na onda de um subgênero chamado de “cinema da meia-noite” onde
cinéfilos aventureiros embalados com muita maconha frequentavam cinemas nas
madrugadas, assistindo a filmes que foram imediatamente cultuados. Foi o caso
de “O Fantasma do Paraíso” (1974) de Brian De Palma, em uma ousada paródia em que
funde os clássicos “Fausto” com “O Fantasma da Ópera” e o glam rock e o hard
rock da época. Nesse subgênero começou também o revival de muitos temas
mitológicos gnósticos, como nesse filme: o mito do Demiurgo ressurgindo como um
cruel produtor musical que se apossa definitivamente da alma de seus artistas
por meio de pactos de sangue.
Antes de toda onda do gnosticismo
pop que esse blog detectou a partir do filme Dead Man (1995) de Jim Jarmusch e cujo ápice de popularidade foi
inegavelmente Matrix (1999), os temas
gnósticos eram explorados em filmes cults ou autorais. Filmes ainda sem
pretensão de popularidade e restrito a pequenos grupos de cinéfilos com gostos
bem particulares.
É o caso do filme de Brian de
Palma O Fantasma do Paraíso, um filme
produzido deliberadamente para ser um sucesso cult, para um nicho de público
que nos anos 1970 era chamado de “cinema da meia-noite”: filmes com temática
livremente estranha e bizarra que eram exibidos em horários alternativos das
madrugadas, para espectadores aventureiros e sedentos por experimentações. Uma época em que a indústria do entretenimento
permitia que jovens diretores fizessem todo tipo de filme.
Numa entrevista, o diretor Brian de
Palma se referia a esse período: “Era uma época em que se permitia aos jovens
diretores fazerem todo tipo de filme. Se o filme El Topo (já analisado pelo blog, clique
aqui) era um western cheio de surrealismo impenetrável, com imagens
ocultas alucinógenas embalada por um público de cinéfilos fumantes de maconha,
com certeza pensei que as pessoas não ficariam assustadas com O Fantasma do Paraíso, paródia cheia de
roupas bizarras, cores berrantes e com música hard rock da qual todos os jovens
falam hoje”.
O
Fantasma do Paraíso
de De Palma, mestre dos planos sequências e das montagens paralelas com telas
divididas mostrando sequências simultâneas, foi o resultado de um bizarro mix
de Fausto com O Retrato de Dorian Gray, O
Fantasma da Ópera e pitadas do expressionismo alemão do filme O Gabinete do Dr. Caligari.
Seu ponto de partida é a
sátira e o pastiche: uma paródia da onda das opera rock naquela década como Jesus Cristo Superstar e Tommy. “Ele vendeu a alma para o Rock”,
está escrito no pôster promocional, apontando para um tema gnóstico que De
Palma vai encontrar no crescimento vertiginoso da indústria da cultura pop
naquele momento, e que chegaria ao ápice anos depois com o surgimento da MTV: a
metáfora de um cosmos manufaturado por um Demiurgo (a cultura Pop) que
repetiria um drama arquetípico da mitologia gnóstica – a exploração da
espontaneidade e vitalidade humana como forma do Demiurgo injetar alguma “luz”
ou conteúdo espiritual em um universo em si sem vida e vazio. E por isso,
destinado à destruição... a não ser que aprisione o homem para roubar-lhe sua
energia e pureza.
O Filme
A narrativa é centrada no
Paraíso, o maior clube de rock jamais construído, cujo proprietário é uma
espécie de deus dos produtores do rock chamado Swan, cruel e que estranhamente
mantém-se sempre jovem. Ele precisa de um novo som para a sua banda estilo anos
1950, os Juicy Fruits. Mas simplesmente não consegue encontrar algo de novo,
fresco e vibrante. Um dia Swan ouve um jovem chamado Winslow (William Finley)
tocando ao piano uma balada simples e tocante que, acredita Swan, será
perfeita.
Swan engana Winslow que lhe
cede os direitos completos da música. Sem pagar-lhe um tostão em direitos
autorais, manda-o para prisão em uma armação envolvendo drogas. Após passar por
horríveis torturas na prisão, Winslow escapa sedento por vingança, mas tudo dá
errado: metade do seu rosto acaba queimado em uma máquina de prensagem de
discos de vinil. Sem mais poder cantar, ele transforma-se em um monstro, veste
uma fantasia e começa a assombrar o Paraíso, tornando a vida de Swan um
inferno.
Mas o estoque de crueldades
maquiavélicas de Swan não tem fim: ele ainda convencerá Wislow a escrever uma
ópera rock completa para a nova banda de hard rock cuja vocalista ele ama (por
significar toda a pureza em um mundo de mentiras e crueldades) e que
participará do show de inauguração do clube Paraíso. Tudo sob um diabólico contrato
no melhor estilo da história do livro Fausto,
de Goethe.
Uma comédia de excessos
O Fantasma do Paraíso é uma
comédia de excessos. Uma das grandes piadas do filme (que traduz em humor
paródico um tema clássico gnóstico) é Swan como um produtor diabólico da
indústria musical. Ela reinventa a sua banda a cada dois meses sempre tentando
buscar as últimas tendências do pop. Ele começa com os Juicy Fruits, uma banda nostálgica baseado em estilo “sha-na-na”
com brilhantina e jaquetas de couro, para depois tornarem-se loiros em estilo
Beach Boys e, mais tarde, ao andrógino glam
rock no melhor estilo rock horror
show, com os músicos como glamorosos mortos vivos no palco.
A conexão entre vender a
alma ao diabo ou vende-la para o show-business
parece a princípio bastante óbvia. Mas não me lembro de outro filme em que essa
conexão seja tão explícita e contada de forma tão excessiva, literal e
transparente quanto em O Fantasma do
Paraíso. Praticamente todo o filme acontece no enorme clube de rock
Paraíso: lá está o auditório dos shows, a gravadora de Swan, os bastidores onde
ocorrem as maquinações e o escritório de onde o Demiurgo vê e controla tudo.
Como em O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde, Swan quer a juventude
eterna: ele próprio tem um contrato com o Diabo. Mas o resultado é que ele
acabou criando um cosmos frio, sem vida, e que precisa de constante injeção de
energia e espontaneidade. Assim como o público que assiste aos shows no
Paraíso.
O Demiurgo quer algo de nós
Fausto, Dorian Gray,
Drácula, vampiros e seres da noite partilham dessa mesma origem no arquétipo
gnóstico de vivermos em um mundo que tende para a morte e entropia por ser
falho e imperfeito, cópia mal feita da Plenitude. E por isso, todas as
estruturas que sustentam esse mundo (corporações, indústria do entretenimento,
Estado, sistema financeiro etc.) buscaria extrair de nós a fagulha de Luz que
carregaríamos secretamente – espontaneidade, alegria, boa-fé, criatividade,
motivação etc.
O sangue sugado por
vampiros, pactos com o Diabo através do sangue, mortos vivos que comem cérebros
ou, como no caso desse filme, a indústria fonográfica que espreme o suco da
criatividade até jogar fora o bagaço por meio de maquiavélicos contratos, são recorrências
dessa velha mitologia gnóstica.
O enredo de O Fantasma do
Paraíso é o próprio Fausto, de
Goethe. Associado ao clássico O Fantasma
da Ópera, oferece a Brian De Palma a espinha dorsal de uma sólida
narrativa. O filme acrescenta um toque sobrenatural perto do fim. Mas
basicamente, é a história do antogonismo entre o compositor Wislow e o
produtos/demiurgo Swan, que sem perceber está lentamente criando um fantasma
louco que não será capaz de controlar.
O personagem Swan é uma
criação magnífica: sua baixa estatura, cabelos loiros longos, grandes óculos
escuros, estranho sotaque e uma carranca perpétua conferem a imagem de um
estranho vilão napoleônico.
Wislow não é tão imponente,
mas seus olhos esbugalhados conferem ao personagem um toque ao mesmo tempo
ingênuo e maníaco.
Gnosticismo e o “cinema da meia-noite”
Realizado no meio da onda do
“cinema da meia-noite”, O Fantasma do
Paraíso é de uma era onde o cinema era menos auto-indulgente e os diretores
tinham a liberdade de tomar grandes orçamentos e executar as ideias mais
loucas: números musicas bizarramente ultrajantes, orgia lésbica, cenas em
estilo jailbreak filmadas em ritmo de
cinema mudo, um estranho musical onde o Fantasma está ligado a um enorme
sintetizador Moog (usados na época por bandas de rock como Emerson, Lake and Palmer) para poder falar enquanto recuperava sua voz após o acidente com a
prensa de discos de vinil, diversas cenas com a tela dividida mostrando eventos
simultâneos, inúmeras homenagens a outros filmes incluindo a mais estranha e
engraçada paródia da cena do chuveiro do filme Psicose de Hitchcock entre outras imagens indeléveis.
Talvez por isso, nesse
cenários dos anos 1970 onde filmes surgiam imediatamente como obras cult, temos
o revival de muitos temas gnósticos
como também em outros estranhos filmes cultuados como Zardoz
(1974) ou O
Homem Que Caiu na Terra (1976). A inesperada liberdade de
experimentação dada pela onda do subgênero “filmes da meia-noite” acabou
abrindo a oportunidade a jovens diretores destilarem uma espécie de
sub-zeitgeist que já estava presente na literatura pulp-science da ficção científica B, HQs de super-heróis e
magazines de horror e fantasia.
Dessa forma, através de uma
furiosa parodia, o filme O Fantasma do
Paraíso reatualizou a mitologia gnóstica do Demiurgo que desta vez baixou à
Terra sob a forma de um produtor musical. Mas, assim como todos os demiurgos,
ele sabe que o homem tem algo de muito especial e que precisa disso para evitar
a desintegração da sua obra cósmica imperfeita no caos e entropia.
Ficha Técnica |
Título: O
Fantasma do Paraíso
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Diretor: Brian De Palma
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Roteiro:
Brian de Palma
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Elenco:
Paul Williams, William Finley, Jessica Harper, Gerrit Graham
|
Produção: Harbor Productions
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Distribuição:
Oregon Films (Brasil, DVD)
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Ano:
1974
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País:
EUA
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