quinta-feira, junho 15, 2023

Chegamos sempre tarde no encontro com a vida no filme 'Já Era Hora'


A produção Netflix italiana “Já Era Hora” (Era Ora, 2022) é uma surpreendente comédia romântica, cujo argumento faz lembrar o clássico “O Feitiço do Tempo” e a comédia hollywoodiana “Click”: um workaholic, sem tempo para familiares e amigos, fica preso em um loop temporal no dia do seu aniversário, no qual ele sempre salta um ano no futuro. Busca uma saída para não perder aqueles que mais ama, enquanto percebe que, a cada salto, sua vida profissional é cada vez mais bem-sucedida. Uma comédia surpreendente porque o drama tragicômico do protagonista ecoa algumas reflexões do filósofo italiano Giacomo Marramao sobre o fenômeno moderno da “hipertrofia das expectativas”: a sensação de sempre estar chegando demasiadamente tarde no encontro com a vida.

Filmes sobre o Tempo sempre tiveram um sabor gnóstico, nas suas variadas formas: viagem, loop, anomalias, fendas, vórtices etc. Sabor gnóstico porque sempre confronta protagonistas com falhas ou instabilidades no próprio constructo da realidade – os acontecimentos não mais desencadeados pela causalidade tradicional, mas revelando um tecido tão complexo que gera a desconfiança de que há algo de arbitrário na construção desse cosmos. Algo hostil e demiúrgico.

A série Dark ou filmes como Feitiço do Tempo ou Contra o Tempo são exemplos desse appeal gnóstico. 

Mas também as maquinações sobre o Tempo no cinema também incorrem na mitologia moralista da “segunda chance”, na qual as instituições da realidade (principalmente a ordem familiar) são renovadas e fortalecidas. Filmes como Click e o premiado Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo seriam exemplos de como o tema é explorado dentro do clichê hollywoodiano da “quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem”.

O surpreendente filme italiano Já Era Hora (Era Ora, 2022) é uma comédia romântica que lembra muito a produção norte-americana Click, estrelada por Adam Sandler – em Já Era Hora temos um argumento parecido: um workaholic bem-sucedido profissionalmente e que não consegue aproveitar a felicidade da vida familiar e conjugal. Premido pelas exigências do trabalho, tudo o que mais quer é que o tempo dedicado a família passe logo para voltar correndo para sua empresa.

Porém, a semelhança para aí. Não há um dispositivo tecnológico como um controle remoto que faz Sandler acelerar o tempo até o momento em que a conveniência se volta contra ele. E nem a redenção moral da segunda chance do tipo “tudo apenas foi um sonho de advertência”, fazendo o protagonista retornar à ordem.

Em Já Era Hora temos uma sutil, pungente e palpável falha inexplicável no devir da realidade, no qual o tempo começa a saltar aleatoriamente. Tornando o protagonista prisioneiro de um loop no qual acaba perdendo o controle da própria vida.

Este loop de tempo no filme é explorado de forma criativa como uma alegoria para viver a vida sem viver o momento. O salto no tempo pode acontecer a qualquer momento, depois do primeiro salto que dá início ao drama de Dante (Edoardo Leo): no dia seguinte ao seu aniversário de 40 anos, descobre que inexplicavelmente passou-se um ano. 



Dante pode estar tendo uma conversa com sua esposa Alice (Barbara Ronchi), ou seu pai, ou seu melhor amigo para um minuto após fechar uma porta, um ano inteiro poderá passar. Tudo representado cenicamente de forma muito sutil: uma sugestão de áudio por meio de um relógio fazendo tique-taque, a barba que começa acrescer no rosto, um bigode e um barbear limpo etc. 

Como veremos, a grande virtude do filme do diretor Alessandro Aronadio é não cair no vício hollywoodiano do mito da segunda chance. Não é por menos que o protagonista se chama Dante – tal qual na obra de Dante Alighieri, “A Divina Comédia”, poderíamos colocar nos créditos iniciais do filme a advertência: “Vós que aqui entrais, abandonai toda a esperança”.

Isso porque o filme ecoa o conceito “hipertofia das expectativas” ou “obsessão da expectativa”, do filósofo italiano Giacomo Marramao – a cultura cotidiana contemporânea na qual o presente é sempre deslocado para o futuro cujo núcleo patogênico está no “retardamento de sentido em relação ao sucesso”, isto é, o sentido do presente está sempre condenado a chegar depois. Cada momento é vivido como fosse o próximo e a percepção do presente passa a ser sempre fugidia e insondável.

O Filme

Já Era Hora começa em uma festa de Ano Novo com o personagem principal Dante beijando por engano uma mulher chamada Alice que está usando o mesmo vestido de sua então namorada. Eventualmente, o tempo passa, e Dante acaba namorando e vivendo com ela. 



Dante é um workaholic em ascensão em uma grande empresa de seguros. Em uma tentativa de proporcionar a Dante um momento de alegria familiar em sua vida tão estressante, Alice dá a Dante uma pequena festa surpresa com os amigos, para comemorar seu aniversário de 40 anos, mesmo com a maioria dos objetos e móveis ainda estarem empacotados – eles mudaram de casa recentemente. No entanto, os afazeres de Dante continuamente adiam a festa até horas mais tarde do que ele havia prometido estar em casa.

No dia seguinte, Dante acorda apenas para descobrir que tudo mudou: todas as caixas estão desempacotadas, todos os móveis estão montados e, mais chocante do que qualquer outra coisa, Alice está com meses de gravidez. Inexplicavelmente, um ano se passou no espaço de um dia!

O salto no tempo acontece de novo e de novo, sempre no dia do seu aniversário – lembrando o filme O Feitiço do Tempo, ele está preso nessa data, porém, dando saltos de um ano à frente no tempo. Dante está perpetuamente preso em um ciclo de tempo no qual cada ano de sua vida passará em questão de horas, a menos que ele possa encontrar uma saída.

Tal como no filme Click, Dante descobre que nesse salto de um ano, ele esteve o tempo inteiro numa espécie de piloto automático, apenas trabalhando, sem envolver-se mais profundamente com Alice, sua filha, parentes e amigos. Seu casamento está por um fio e, desesperado, vê que Alice está cada vez mais se distanciando a cada salto no tempo. Enquanto descobre que, a cada salto no tempo, ele está subindo meteoricamente na empresa.

Apesar de sua semelhança com muitos outros filmes, uma coisa marcante no filme são as maneiras como os saltos no tempo são representados. Em vez de vermos Dante desmaiando e acordando para descobrir que está um ano à frente, o filme representa o tempo pulando através de um ambiente em mudança, como a casa de Dante sendo de repente desempacotada. É uma maneira sutil, mas clara, de significar que ocorreu um salto no tempo.



Mas esses saltos de tempo nunca são realmente explicados. O que causou o salto ou mesmo o catalisador deles nunca é aprofundado. A narrativa apenas concentra-se na angústia do protagonista que não consegue encontrar uma saída. Continuamente vemos Dante abandonando suas esperanças e sendo obrigado a aprender, de alguma forma, a usar esses saltos a seu favor. Esse será o caminho de saída.

Hipertrofia de Expectativas

Esse humilde blogueiro não sabe se o diretor Alessandro Aronadio leu o livro de seu compatriota Giacomo Marramao, “Kairós – Apologia do Tempo Oportuno”. Mas em toda narrativa estão ecos dos conceitos do filósofo italiano.

Para Marramao, nos tempos atuais vivemos sempre “desregulados”. Vivemos os acontecimentos e os fatos, mas permanecemos tão somente em seus interstícios; temos uma temporalidade desviada dos sentidos e dos objetivos da experiência, tanto individual como coletiva. 

Nossa síndrome de falta de tempo vem disso. É o paradoxo de dispormos de todo o tempo, como durante as férias ou nos períodos de descanso entre um trabalho e outro, e declaramos que não temos tempo. Marramao chama essa restrição progressiva do espaço da experiência de hipertrofia da expectativa: dilatam-se os horizontes da expectação e reduzem-se as margens da experiência.



Há um certo “descarrilamento” do presente, diz ele: projetamo-nos continuamente para o futuro ou então voltamo-nos para o passado, sendo-nos impossível encarrilharmo-nos devidamente no presente (idem). É exatamente o inverso dos processos de retenção e propensão, em fenomenologia, como formas de incorporação de passado e futuro no presente.

Para o filósofo, esse fato conduz a duas patologias: uma melancólica e outra maníaca. A primeira é dos que padecem de “depressão retentiva” e não possuem a capacidade de “projeção onírica”. Eles têm sempre a impressão de chegar “demasiado tarde” ao encontro com a vida. 

E a segunda, aquela que condena o homem a viver cada momento como se fosse o próximo; o presente é continuamente deslocado, o novo é neutralizado e o futuro, constantemente inclinado ao passado, o fagocita. O que resulta é um retardamento do Sentido: só conseguimos percebê-lo a posteriori, sempre como tragédia.

Em síntese, essa desregulagem da sociedade contemporânea (representada de forma tragicômica no filme), criadora dessas patologias, tem a ver com a própria atrofia do presente vivenciado.


  

Ficha Técnica

 

Título: Já Era Hora

Diretor: Alessandro Aronadio

Roteiro: Alessandro Aronadio e Renato Sannio

Elenco:  Edoardo Leo, Barbara Ronchi, Mario Sgueglia, Francesca Cavallin 

Produção: BIM Produzione

Distribuição: Netflix

Ano: 2022

País: Itália

 

 

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