sexta-feira, agosto 26, 2022

Viagem no tempo e a angústia dos millennials no filme 'Efeito Flashback'


A Relatividade e a mecânica quântica alteraram radical nossa percepção tempo-espaço, ao ponto do tema da viagem no tempo se tornar um tema recorrente – o fascínio da “segunda chance” em que o passado poderia ser alterado. Mas nada como nesse século, em que o boom de produções sobre o tema reflete a angústia existencial da geração millennial: a angústia do crescimento, maturidade e a necessidade de fazer escolhas. “Efeito Flashback” (2020) é um bom exemplo: um jovem analista de informações que renunciou ao desejo de se tornar um artista visual encontra casualmente um antigo amigo do ensino médio. Um encontro que traz do passado memórias esquecidas que retornam como um flashback. Na verdade, o efeito de uma droga misteriosa da época que permitia escapar do espaço-tempo linear e experimentar vidas alternativas. Passado e presente se misturam em loop e deslocamentos, sem o usuário ter em que se apegar. O que traz a questão central desse boom sobre viagens no tempo: e SE eu tivesse feito outra escolha? Como seria a minha vida?

Em postagens anteriores (veja links ao final) discutíamos como a relatividade e a mecânica quântica no campo da Física alterou a nossa percepção ordinária sobre o Tempo. Se a viagem no tempo clássica era dominada pelo fantasma da entropia (no máximo só podemos testemunhar fatos passado e futuros, sem alterá-los devido da fatalidade d flecha do tempo), a realidade relativa e quântica incendiou a nossa imaginação. Materializado no mito da segunda chance: e se pudéssemos reverter uma decisão infeliz que acabou miseravelmente definindo quem nós somos?

Essa angústia Sartreana e existencial diante da nossa liberdade de escolha parece ter sido ampliada na sociedade de consumo pós-guerra: as inúmeras e imaginárias alternativas bombardeadas sobre nós (opções de consumo, carreira, amores etc.) pelas diversas mídias, aplicativos e plataformas apenas potencializam a inquietação e ansiedade – o quê escolher? Com quem namorar diante das opções uma plataforma de encontros como um Tinder? O quê escolher nas gigantescas gôndolas de hipermercados?

Essa angústia do medo da liberdade de escolha ampliou-se ainda mais na geração mais tecnologizada da História: a millennial, surfando ou navegando na Internet e redes sociais em mídias espectrais cujos usuários criam identidades fluidas e mutantes com avatares, selfies etc.

Essa talvez seja a explicação do boom de produções em torno do tema da viagem no tempo, desde Efeito Borboleta (2004) – o século de uma geração tão angustiada e insegura em assumir escolhas e riscos que se tornam jovem adultos, como se adiassem sine die a própria maturidade.

Talvez essas características estejam bem evidentes no filme Efeito Flashback (2020), escrito e dirigido por Christopher MacBride, estrelado por Dylan O’Brien (The Maze Runner) como o protagonista Fred Fritzell – um jovem adulto que está começando em um novo emprego e prestes a se casar. Ele está às vésperas de um momento decisivo em sua carreira: a apresentação de um relatório à cúpula da empresa. Embora no passado Fred Fritzell tenha aspirado ser um artista visual, ele agora é um analista de informações morando em um apartamento elegante em um grande condomínio.



Um encontro casual com alguém do passado faz ele lembrar de toda uma cadeia de eventos durante o ensino médio e, principalmente, memórias de uma antiga colega de classe chamada Cindy Williams (Maika Monroe). Embora ele tenha frequentado o ensino médio com Cindy e até mesmo tivesse sentimentos não expressos por ela, ela desapareceu antes dos exames finais, e ninguém parece saber para onde ela foi ou o que aconteceu com ela.

Por algum motivo, que mais tarde descobriremos, essas lembranças fazem Fred começar em colocar em xeque as suas escolhas pessoais e profissionais na sua vida – ele mal consegue escolher junto com a sua namorada a cor do azulejo do banheiro na nova casa em que viverão.

A viagem no tempo em Efeito Flashback não acontecerá com alguma mediação tecnológica futurista envolvendo os complexos cálculos de mecânica quântica ou relatividade. Mas ligada às lembranças de quinze anos atrás envolvendo uma nova droga recreativa que circulava no ambiente escolar. Uma droga chamada Mercury (ou “Mec”) – uma nova droga recreativa que, em sua versão pura, permitiria que seus usuários escapassem do espaço-tempo linear e passem a experimentar vidas alternativas.



Literalmente acompanhamos o protagonista, quinze anos depois, vivendo flashbacks dessa poderosa droga. Porém, um flashback muito especial ao criar um loop temporal em que Fred Fritzell viverá a noite fatídica do consumo da versão pura da Mercury, o desaparecimento de Cindy, tudo conectado a deslocamentos laterais por vidas alternativas criadas por diferentes escolhas em suas vidas.

Tudo isso nos leva a um conto alucinante ao melhor estilo Christopher Nolan (porém, com baixo orçamento e nenhum CGI) sobre a ilusão do tempo, o fardo de crescer e a angústia em torno das escolhas que fazemos, consciente ou inconscientemente, que acabam nos definindo. O que traz a questão central desse boomsobre viagens no tempo: e SE eu tivesse feito outra escolha? Como seria a minha vida?

O Filme

Fred é um analista de informações em uma sede corporativa genérica – aparentemente frustrando, nas horas vagas fazendo ilustrações e relembrando o seu desejo frustrado de se tornar um artista visual. Mora com a namorada Karen (Hannah Gross) em um ambiente elegante em um complexo de apartamentos de arranha-céus. 

Sua mãe (Liisa Repo-Martell) está morrendo no hospital, sua memória se foi. A incapacidade de a mãe lembrar quem ele é deixa algo solto no cérebro de Fred. Ele começa então a vivenciar momentos em branco nos quais vê (ou imagina) figuras tentando comunicar-lhe mensagens enigmáticas.



Esses distúrbios parecem de alguma forma ligados às experiências do ensino médio 15 anos antes, quando uma misteriosa droga recreativa chamada Mercury estava circulando. Ele volta a entrar em contato com dois colegas de classe, o antigo traficante Sebastian (Emory Cohen) e o companheiro de viagens lisérgicas Andre (Keir Gilchrist). Mas eles não podem responder a sua verdadeira pergunta: O que aconteceu com Cindy, uma inconformada que usou “merc” para “exploração” ao invés de simples fuga recreativa? 

Nenhum deles tem qualquer memória dela e um ex-professor diz que Cindy “simplesmente desapareceu” antes mesmo de se formar.

Enquanto Fred continua repetindo cenas (remontando à infância) em sua cabeça, ele começa a perder o controle. O passado se confunde com o presente, realidades alternativas alarmantes se apresentam, e sugere-se que Mercúrio abriu um portal para um plano no qual “todos os pontos existem simultaneamente”. Cindy ficou do outro lado daquela porta? Ele pode se juntar a ela lá? Ele iria querer?

Repleto de cortes estroboscópicos e imagens moderadamente psicodélicas, Flashback é um thriller psicológico levemente sci-fi que cria uma sensação de derrapagem no tempo em que não há nada seguro para Fred se agarrar.

O ponto mais extremo da ruptura com a realidade é o momento em que o filme parece derivar para alguma coisa entre Matrix e Donnie Darko. A busca por Cindy e a insatisfação com as próprias escolhas que fez na vida chega ao ápice quando Fred relembra quando tomou Mercúrio puro. Ele é informado sobre uma “forma de vida invasiva”:

Números. Linguagem. Cor. Forma. Tudo uma má interpretação das informações ao seu redor. Uma interpretação errônea imposta a você por uma forma de vida invasiva que está tentando controlar sua consciência. A substância que você ingeriu temporariamente neutraliza a influência da forma de vida invasiva que está tentando forçá-lo a perceber a informação da mesma maneira que ela: de forma linear. Perceber as escolhas como tendo resultados inevitáveis. Resultados que ela lhe ditou, controlando assim todas as suas escolhas e, com efeito, eliminando-as. Ele atinge esse objetivo influenciando você a perceber a mais elaborada de todas as interpretações errôneas. Tempo.

Tomada literalmente, isso poderia apontar para uma teoria da simulação da realidade ou até mesmo a existência de alienígenas que controlariam a humanidade.



Porém, após Fred fazer uma espécie de “test drive” em outras versões paralelas de si mesmo (como um pintor em uma casa no litoral mediterrâneo, explorando um deserto africano etc., sempre com Cindy ao seu lado), o filme prepara para um surpreendente retorno à ordem.

Em Efeito Flashback, Fred experimenta múltiplas escolhas. Ele experimenta pela primeira vez a vida que se sente forçada a ele – com Karen, seu trabalho e sua mãe moribunda. Ele então experimenta uma vida com Cindy, onde se torna um artista, vê o mundo e permite que Merc destrua o conceito de tempo linear. Em última análise, no entanto, ele escolhe voltar à vida com Karen, seu trabalho e sua mãe moribunda, mas parece muito mais contente com sua vida desta vez.

Por isso, Efeito Flashback lembra bastante um subgênero iniciado nos anos 80 iniciado com o filme de Scorsese After Hours (1985): o tema do “desconstruindo o Yuppie”: um protagonista certinho e bem-sucedido é vítima de uma sequência de eventos em cadeia exponencialmente perigosos.

Parece que toda geração teve o seu “desconstruindo o Yuppie”: Totalmente Selvagem (1986), Single White Female (1992), Vidas em Jogo (1997), Vicious Fun (2020) seriam alguns exemplos de “yuppies” (ou millenials ou hipsters, na atualidade) que veem sua vida confortável ser desconstruída para depois retornar à ordem – o seu cotidiano, o seu emprego etc.

Diferente de viagens no tempo que não retornam a ordem, levando a desconstrução cósmica ao limite rompendo a ordem (seja cósmica – a própria entropia – seja pessoal ou social), como em Donnie Darko (2001), Mr. Nobody (2009) ou The Wave (2019), em Flashback todas frenéticas viagens através das realidades paralelas (SE eu tivesse escolhido isso, SE eu tivesse escolhi do aquilo...) nada mais faz do que voltar a apreciar a vida da qual queria escapar.

Além de Efeito Flashback refletir essa angústia do crescimento e maturidade dos millenials (afinal, crescer é fazer escolhas), também emerge um traço neurótico do próprio desejo: somente na iminência da perda, passamos a desejar o objeto outrora rejeitado pelo desejo. Assim como para muitos somente é possível sentir a intensidade da vida na proximidade da morte.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Efeito Flashback

Diretor: Christopher MacBride

Roteiro: Christopher MacBride

Elenco:  Liisa Repo-Martell, Dylan O’Brien, Hannah Gross, Maika Monroe

Produção: Resolute Films and Entertainment

Distribuição: Lions Gate Entertainment

Ano: 2020

País: Canadá

 

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