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quinta-feira, outubro 19, 2023

'Cronos - A Relíquia do Tempo': escravos de Cronos, não percebemos o tempo oportuno



O mito da segunda chance domina o tema da viagem do tempo no cinema. Principalmente por ser um sintoma daquilo que o filósofo Giacomo Marramao chama de “hipertrofia de expectativas”: vivemos angustiados pelas chances perdidas no passado e pela aparente falta de tempo para chegar no futuro. Para os estoicos da Grécia antiga, nos tornamos escravos de Cronos e incapazes de perceber o “tempo oportuno” (kairós), aquilo que no presente nos conecta com o eterno. “Cronos – A Relíquia do Tempo” (2020) é um filme brasileiro que foge do clichê da “segunda chance”. Sobre um protagonista que, da pior maneira, descobre a ilusão de Cronos para encontrar Kairós: um cuidador de idosos recebe um relógio capaz de retroceder o tempo em até 24 horas, mas essa dádiva logo se torna uma maldição quando ele é obrigado a enfrentar as consequências pelo mau uso do dispositivo.

quinta-feira, agosto 10, 2023

Em 'Paraíso' a agenda tecnognóstica se encontra com a luta de classes


Tempo é dinheiro. Essa frase deixou de ser um mero provérbio motivacional para contos sobre empreendedorismo. Realizou-se na própria literalidade na financeirização: tempo é monetizado através dos juros e especulações no mercado financeiro. Mas e se o próprio tempo de vida de todos nós for monetizado e se transformar em bem para garantia em transações financeiras? Esse é o ponto de partida da produção Netflix alemã “Paraíso” (2023), trazendo a agenda tecnognóstica (a imortalidade através da tecnociência) para o campo da luta de classes. uma gigante farmacêutica descobriu uma maneira de reverter o processo de envelhecimento - alguém precisa sacrificar anos da sua própria vida para doá-la” ao receptor. Em troca de dinheiro, excluídos, refugiados e migrantes ilegais “doam” décadas das suas vidas, enquanto os super ricos têm a eventual imortalidade.

Dois temas interligados atravessam a produção original Netflix alemã Paraíso (2023): a busca da imortalidade pela elite da sociedade e a monetização do tempo.

Escrito por Simon Amberger, Peter Koclya e Boris Kunz (que também dirigiu), Paraíso gira em torno de uma gigante farmacêutica chamada Aeon (a referência gnóstica às entidades divinas não é casual, como veremos) que descobriu uma maneira de reverter o processo de envelhecimento. Porém, como acompanhamos na cinematografia recente, desde Parasita, nada condescendente com os super ricos, no filme a nova descoberta em manipulação genética não vem sem o elemento da luta de classes: alguém precisa sacrificar anos da sua própria vida para doá-la ao receptor – doadores e receptores precisam ter DNA correspondente.

Por exemplo, um indivíduo na casa dos 80 anos pode querer viver mais, e por uma quantia incrivelmente grande de dinheiro, poderia pedir a uma pessoa de 18 anos com um padrão genético semelhante que tivesse de 50 a 60 anos tirados de sua vida, permitindo que a pessoa de 80 anos retornasse aos 30 anos e a de 18 anos envelhecesse dramaticamente até os 70 anos dentro de alguns dias.

Mas quem se disponibilizaria a entregar para alguém os anos da própria vida? Claro, alguém que esteja desesperado, necessitando de uma soma de dinheiro que ajude a vida de seus familiares – refugiados, migrantes ilegais e excluídos da própria sociedade.

O marketing promocional da empresa fala em liberdade de escolha e livre-arbítrio: dispor parcela da própria vida em troca de dinheiro para dispor da liberdade de aproveitar o restante da existência como quiser. 



Em Paraíso, ageísmo e classismo se encontram – os ricos podem essencialmente viver para sempre se continuarem com o processo, mas são as classes subalternas que mais devem pagar o preço, sacrificando décadas das suas vidas por uma soma de dinheiro suficiente para resolver seus problemas financeiros.

Em muitos aspectos, Paradise lembra o filme de 2011, O Preço do Amanhã (In Time), no qual a imortalidade de poucos significava a mortalidade de muitos ao transformar o Tempo em moeda acumulável e estocável – o Tempo como moeda de especulação, reprodução da desigualdade e controle do crescimento populacional. 

Que a elite sempre almejou a imortalidade para perpetuar o poder, isso não é novidade. Veja o exemplo das pirâmides, nas quais faraós eram mumificados junto com seus bens e riquezas almejando a vida eterna. 

A diferença é que se no passado a imortalidade era buscada pelas vias metafísicas ou religiosas, hoje, através da tecnociência (manipulação genética, neociências, nanotecnologias e ciências computacionais), vislumbra-se a possibilidade da imortalidade ainda nesse mundo. Como, por exemplo, a agenda tecnognóstica do Vale do Silício: digitalizar a consciência e fazer um upload final para o céu da informação, superando as limitações da corporalidade – finitude, temporalidade e senso de fragilidade corporal.

Mas tudo isso confirma a máxima do Capitalismo: Tempo é dinheiro. Principalmente nesse momento da financeirização do Capitalismo – o controle do tempo através da velocidade em tempo real da manipulação de títulos, ações, fundos de investimentos, pregões das bolsas de valores conectadas em tempo real através do planeta. A produções de riqueza especulativa através da manipulação do tempo em si mesmo.



Como didaticamente o filme Os Imorais (The Grifters, 1990) nos explica como uma transferência rápida de informações entre o fechamento da Bolsa de Tóquio e a abertura da Bolsa de Nova York pode render fortunas: receber informações de Tóquio antes da Bolsa americana abrir, com uma vantagem de sete segundos, significaria ganhos milionários. 

Portanto o tema da monetização do tempo em filmes como O Preço do Amanhã e Paraíso, combinado com a utópica (ou distópica, dependendo do ponto de vista de classe social) imortalidade da classe dominante é um reflexo do atual espírito do tempo. 

O Tempo como dinheiro deixou de ser um mero provérbio motivacional para contos sobre empreendedorismo. Realizou-se na própria literalidade.

O Filme

Em Paraíso acompanhamos Max Toma, um corretor de vendas da Aeon altamente bem-sucedido, cujo trabalho é conversar com jovens pobres para que aceitem dinheiro em troca dos anos de suas vidas. 

Nas primeiras sequências encontramos Max convencendo um imigrante de 18 anos a “doar” 15 de seus anos por uma quantia fixa de 700.000 euros. Isso é dinheiro suficiente para tirar seus pais da pobreza e contratar um advogado de imigração para ajudar a garantir o visto de seu pai. Tudo isso em um miserável cenário decadente de um bairro repleto de refugiados e migrantes ilegais.

O marketing da farmacêutica Aeon é, como sempre, otimista e repleto de nobres intenções: imagine doar mais anos para gênios ganhadores de prêmios Nobel. A morte não mais interromperá suas pesquisas, revertendo suas descobertas para o benefício de toda sociedade – certamente não para os “doadores” de tempo de vida.



Apesar da aparência publicitária, o sistema criado pela Aeon é controverso e repleto de possibilidades de corrupção e potenciais abusos – há inclusive um crescente mercado negro de doação de tempo, obviamente através de máfias do Leste europeu. 

Há também um grupo terrorista chamado Adam Organisation que denuncia a imoralidade dessa reprodução da desigualdade mediante a limitação do tempo de vida dos pobres – seus militantes invadem clínicas da Aeon para matar os milionários receptores das “doações”.

No centro de tudo está Max, uma estrela em ascensão na empresa e com uma boa vida. Max não só recebeu um reconhecimento de funcionário do ano e um tapinha nas costas da CEO da AEON, Sophie Theissen, mas ele e sua esposa, Elena, acabaram de financiar um apartamento de luxo e estão tentando ter um bebê. Mas tudo desmorona quando o apartamento do casal sofre um não totalmente elucidado incêndio. O seguro deles não pagará um centavo e o banco cobrará deles a única garantia dada ao empréstimo residencial: 40 anos de vida de Elena – lembre-se, o tempo de vida tornou-se não só uma moeda como um bem que pode ser colocado como garantia em qualquer transação financeira.

Elena é levada por coerção policial e judicial à Aeon para entregar à força suas décadas de vida. Max está furioso, exigindo justiça. E a vida de sua esposa de volta. Isso imediatamente o coloca em rota de colisão com a CEO da Aeon, Sophie Theissen. Principalmente quando ele planeja sequestrá-la para reverter o processo de doação, ao descobrir que ela foi a receptora dos 40 anos de vida Elena.  Reverter o processo, obviamente, através da ajuda do mercado negro no Leste europeu.

É quando Paraíso se transforma: vira num thriller genérico de perseguição, abandonando a inteligente premissa inicial – espere tiros, explosões e loucas perseguições motorizadas na terra e asfalto.



Agenda tecnognóstica

A agenda tecnognóstica da imortalidade marcou bastante os filmes das primeiras décadas deste século, desde Vanilla Sky (2003), o pós-humano em The Machine (2013), a fábula de tecnologia e poder em Transcendence (2014) ou o pesadelo tecnognóstico na série Altered Carbon (2018).

Mas agora essa agenda parece transformada com a tendência recente do cinema infernizar a vida daquele 1% da população obscenamente rica: Parasita, O Cardápio, Glass Onion ou Triângulo da Tristeza. Das reflexões metafísicas e gnósticas sobre o pós-humano, passamos para o tema da imortalidade tecnognóstica ser colocada no campo da luta de classes.

O tema do tecnognosticismo está lá, no próprio nome da gigante farmacêutica: “Aeon”. Na tradição gnóstica simboliza simultaneamente o aspecto feminino de Deus e a alma humana, emanação divina proveniente do Pleroma para manter a conexão entre a Luz interior e esse plano fora do cosmos no qual vivemos aprisionados.

Foi um Aeon (Sophia) que foi responsável pela transição do imaterial para o material, do numenal ao sensível, causado por uma falha – uma paixão que produziu um filho (o Demiurgo, Yaldabaoth, o “filho do caos”). Sophia decai no mundo material conseguindo infundir alguma fagulha espiritual no cosmos físico produzido pelo Demiurgo. Tanto Sophia quanto a humanidade tornam-se prisioneiros desse cosmos. Embora tenha conseguido retornar ao Pleroma (o plano da plenitude espiritual e cósmica), ela observa a humanidade, tentando ajudá-la a alcançar a gnose e retornar à antiga morada, o Pleroma.

Como farsa, a empresa chama-se “Aeon”. Numa sociedade fraturada em classes, a reinterpretação dessa mitologia gnóstica pelo Capital somente pode ser através da imortalidade da elite, cuja missão é manter em funcionamento esse cosmos que aprisiona a todos.


 

Ficha Técnica

 

Título: Paradise

Diretor: Boris Kunz, Tomas Jonsgården, Indre Juskute

Roteiro:  Simon Amberger Peter Kocyla Boris Kunz

Elenco:  Lisa-Marie Koroll, Kostija Ullman, Marlene Tanzcik

Produção: Neuesuper

Distribuição: Netflix

Ano: 2023

País: Alemanha

   

 

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sábado, agosto 05, 2023

Em 'LOLA' o lado prometeico e sombrio de cada progresso tecnocientífico


Desde o cultuado “Primer” (2004) não se viu um filme tão engenhoso sobre viagem no tempo quanto “LOLA” (2022). Não exatamente uma viagem no tempo, mas sobre duas irmãs que na década de 1930 inventaram um dispositivo que captava ondas de rádio vindas do futuro. Em 2021 foi encontrada a filmagem sobre a invenção e a história das irmãs que no início apenas queriam estudar o Tempo – apaixonaram-se por David Bowie e Stanley Kubrick antes mesmo deles nascerem. Mas da pior maneira possível descobriram que a tecnociência é prometeica: tal como o titã que foi acorrentado por roubar o fogo dos deuses, elas foram cegadas pelo brilho da própria invenção. Viram-se prisioneiras dos dilemas éticos e morais em conhecerem o futuro no meio da Segunda Guerra Mundial e o dispositivo do tempo virar arma contra os nazistas. No entanto, como em qualquer grande poder, há um potencial lado sombrio. 

sexta-feira, julho 07, 2023

'Indiana Jones e a Relíquia do Destino': parapolítica, arqueologia proibida e ocultismo nazi



O gênio de Spielberg com a franquia Indiana Jones foi mesclar a ficção (com o melhor que o cinema americano faz: filmes de perseguição) com um aspecto obscuro da História: a parapolítica (arqueologia proibida e ocultismo nazi). A corrida arqueológica por objetos sagrados com a promessa de adquirir poder mundano. Desde que, em 1939, arqueólogos da Waffen-SS chegaram na cidade sagrada de Lhasa, Tibet. Em “Indiana Jones e a Relíquia do Destino” (2023), James Mangold faz um respeitoso mix de todos os tropos da franquia. Porém, com uma novidade, um tema da arqueologia proibida: os “Artefatos Fora do Lugar”, relíquias descobertas que parecem estar fora do tempo, que acaba desafiando a cronologia da História convencional. Mas estamos em uma obra de puro entretenimento que evita temas espinhosos. Então, nada melhor do que a velha viagem no tempo e todos os seus clichês. 

quinta-feira, junho 15, 2023

Chegamos sempre tarde no encontro com a vida no filme 'Já Era Hora'


A produção Netflix italiana “Já Era Hora” (Era Ora, 2022) é uma surpreendente comédia romântica, cujo argumento faz lembrar o clássico “O Feitiço do Tempo” e a comédia hollywoodiana “Click”: um workaholic, sem tempo para familiares e amigos, fica preso em um loop temporal no dia do seu aniversário, no qual ele sempre salta um ano no futuro. Busca uma saída para não perder aqueles que mais ama, enquanto percebe que, a cada salto, sua vida profissional é cada vez mais bem-sucedida. Uma comédia surpreendente porque o drama tragicômico do protagonista ecoa algumas reflexões do filósofo italiano Giacomo Marramao sobre o fenômeno moderno da “hipertrofia das expectativas”: a sensação de sempre estar chegando demasiadamente tarde no encontro com a vida.

quinta-feira, abril 20, 2023

Série 'Devs': uma Big Tech em busca de um "Rosebud" quântico


Causalidade versus acaso; determinismo versus livre-arbítrio. O velho dilema da Filosofia resolvido deterministicamente por um supercomputador quântico que consiga processar todas as variáveis possíveis do Universo até se transformarem em informações quânticas computáveis, prevendo todas as causas e efeitos. Até o momento em que o mapa se confunda com o próprio território, lembrando o clássico conto de Jorge Luís Borges. É a série de Alex Garland “Devs” (2020), na qual o gênio dono de uma Big Tech está em busca de seu “Rosebud”: secretamente reencontrar a pequena filha falecida manipulando o mapa da linha do tempo de todas as causas e efeitos. E em torno de tudo isso, espionagem industrial, assassinatos e a Inteligência do governo.

segunda-feira, março 13, 2023

'Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo': Matrix na era quântica vence Oscar 2023


Passamos metade da nossa vida cometendo erros, e a outra metade tentando corrigi-los. O impacto da física quântica na cultura moderna foi estender ainda mais a angústia existencial: e se tivéssemos feito outras escolhas? Quais teriam sido minhas outras linhas do tempo? Viagens exponenciais no tempo e multiversos são os impactos na cultura pop de paradoxos quânticos como “o gato de Schrödinger” e a Interpretação dos Muitos Mundos de Hugh Everett. “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” (2022) é uma rara visão cinemática que extrapola ao limite esses paradoxos, levando sete dos 11 prêmios que concorria no Oscar 2023: uma estressada sino-americana dona de uma lavanderia quase falida e com relações familiares em crise é arrastada para uma batalha cósmica em um anárquico redemoinho narrativo de multiversos - uma verdadeira Matrix da próxima era da computação quântica.

quarta-feira, fevereiro 22, 2023

Série 'Olá, Amanhã!': a ideia de futuro é o que faz a sociedade parecer avançada


Olhar o estilo retrofuturista otimista, brilhante e ensolarado dos anos 1950-60, ao estilo “Os Jetsons”, ainda nos fascina. Olhamos com a nostalgia do futuro do passado do século XXI: e se tivesse dado certo? Mas a série Apple TV+ de comédia dramática “Olá, Amanhã!” (Hello Tomorrow!, 2023-) suspeita que todo esse tecno-otimismo esconde algo muito mais sombrio: uma sociedade (tanto no passado como no presente) repleta de produtos avançados que apenas fazem a sociedade parecer avançada – um futuro que nada mais foi do que uma ilusão de fuga do tédio e angústia existencial numa sociedade que impõe a rotina e padronização. Uma empresa vende um projeto inédito: um condomínio de classe média na Lua, prometendo aos felizes compradores abandonar a Terra e fugir dos seus próprios problemas. Mas tudo parece ser um castelo de cartas pronto para desabar.

quinta-feira, novembro 17, 2022

Somos escravos do futuro em 'Dois Minutos Além do Infinito'

Filmado apenas com um Iphone em um único plano sequência, ambientado em um café real da cidade de Kyoto, o filme japonês “Dois Minutos Além do Infinito” (Dorosute no Hate de Bokura, 2020 – disponível na HBO Max) é uma das experiências cinematográficas mais inovadoras dos últimos anos. Kato, o proprietário do café, descobre que na tela do computador em seu apartamento no andar de cima está sendo transmitido, via Zoom, diretamente do café abaixo, sua versão dois minutos à frente no futuro. O filme explora um dos aspectos mais interessantes da viagem no tempo: os loops temporais e seus paradoxos. Principalmente, a dicotomia filosófica entre livre-arbítrio e necessidade. Afinal, seríamos escravos do futuro? Essa seria uma séria questão quando acrescentamos ao tema o tempo recursivo e a profecia autorrealizável.

quarta-feira, novembro 16, 2022

Depois do espaço, o capitalismo quer colonizar o tempo na série 'The Peripheral'


“Eu anexaria os planetas, se pudesse”, queixava-se o homem de negócios colonialista britânico Cecil Rhodes na década de 1930: o mundo já estava todo parcelado e colonizado. Portanto, onde o Capitalismo encontraria novos mundos para colonizar. A guerra sempre foi uma solução paliativa. Se os espaços de conquista acabaram, resta o Tempo. Se hoje a microinformática é a ferramenta para as negociações em tempo real do financismo global, a imaginação do escritor sci-fi William Gibson pensou na mecânica quântica como um novo salto: a colonização das realidades paralelas nas diversas linhas do tempo. A série Amazon Prime “The Peripheral” (2022-), baseada no romance de 2014 de William Gibson, traz para a ficção científica esse realismo capitalista. Uma jogadora de games em RV testa uma versão Beta de um novo jogo que na verdade transfere seus dados de consciência para um futuro alternativo na qual um Instituto de Pesquisas oferece uma solução político-econômica inédita: a colonização do Tempo.

quarta-feira, outubro 05, 2022

Em 'Vortex' a velhice e a morte são os grandes equalizadores da existência


Depois de filmes como “Irreversível”, “Enter the Void” e “Climax”, com perturbadoras cenas de violência sexual, extremos afetivos e lisérgicos, dessa vez o diretor franco-argentino Gaspar Noé volta-se para o tema da velhice e decrepitude física e mental em “Vortex” (2021, estreou no MUBI Brasil). Um casal de idosos passa seus dias em um apartamento labiríntico em Paris, cercado de objetos, pôsteres e livros, memórias de um passado de radicalismo político e engajamento intelectual. Aqui, a velhice e a espera da morte são grandes equalizadores existenciais - não importa quem você é ou foi. Sem exceção, todos estão indo na mesma direção. E todos os nossos índices das memórias e realizações serão deixados como testemunhos que deveriam ser duradouros. Mas numa sociedade em que o elo geracional se quebra, esses índices do passado estão condenados a se tornarem tão efêmeros quanto a nossa passagem por esse mundo.

quinta-feira, setembro 29, 2022

O smartphone matou a experiência urbana do flâneur


Já se tornou um lugar-comum na paisagem urbana: pessoas caminhando, sentadas em pontos de ônibus ou em terraços de café ou bares com as costas curvadas, cabeça inclinada e olhares fixos para a tela do smartphone. As nossas vidas nas bolhas das redes sociais e nos aplicativos de mensagens instantâneas nos obriga a olhar para baixo, blindando-nos de “felizes acidentes”, o acaso, o espanto, insight, a experiência do sublime ou mesmo inspiração poética no espaço real das ruas e parques. Em síntese, a experiência urbana do flâneur, tão enaltecida tanto por Charles Baudelaire quanto pelo filósofo Walter Benjamin como o personagem que fazia ponto crítico ao capitalismo, por estar no contrafluxo, resistindo à disciplina. Mas o capitalismo não pode tolerar tempo e espaço livres. A indústria cultural foi o primeiro passo para a disciplina do tempo livre. Depois, inventaram o smartphone.

quinta-feira, setembro 15, 2022

'O Preço do Amanhã': a imortalidade de poucos implica na mortalidade de muitos


Sempre ouvimos falar que Tempo é dinheiro. Com a financeirização do capital e a crescente utilização do dinheiro eletrônico e digital no lugar do papel-moeda, esse provérbio torna-se cada vez mais metafórico: não se trata mais tanto de dinheiro, mas da logística do Tempo – quanto mais rápido, maior oportunidade de lucros no cassino global em que se transformou o Capitalismo. Mas ainda temos que manipular signos do dinheiro (títulos, ações etc.). Mas, e se o próprio Tempo em si virar uma moeda acumulável e estocável? Esse é o intrigante argumento de “O Preço do Amanhã” (In Time, 2011), num futuro em que a imortalidade de poucos implica na mortalidade de muitos: uma elite consegue estocar séculos de Tempo, tornando-se virtualmente imortal, enquanto a maioria corre da morte (contada retroativamente num relógio subcutâneo), lutando para ganhar Tempo, seja através do salário, doações ou empréstimos. Nova forma de Capitalismo em que o Tempo vira moeda de especulação, reprodução da desigualdade e controle populacional.

sexta-feira, agosto 26, 2022

Viagem no tempo e a angústia dos millennials no filme 'Efeito Flashback'


A Relatividade e a mecânica quântica alteraram radical nossa percepção tempo-espaço, ao ponto do tema da viagem no tempo se tornar um tema recorrente – o fascínio da “segunda chance” em que o passado poderia ser alterado. Mas nada como nesse século, em que o boom de produções sobre o tema reflete a angústia existencial da geração millennial: a angústia do crescimento, maturidade e a necessidade de fazer escolhas. “Efeito Flashback” (2020) é um bom exemplo: um jovem analista de informações que renunciou ao desejo de se tornar um artista visual encontra casualmente um antigo amigo do ensino médio. Um encontro que traz do passado memórias esquecidas que retornam como um flashback. Na verdade, o efeito de uma droga misteriosa da época que permitia escapar do espaço-tempo linear e experimentar vidas alternativas. Passado e presente se misturam em loop e deslocamentos, sem o usuário ter em que se apegar. O que traz a questão central desse boom sobre viagens no tempo: e SE eu tivesse feito outra escolha? Como seria a minha vida?

sexta-feira, julho 22, 2022

'2046: Os Segredos do Amor': por que algo tão bom de repente não mais funciona?


Em 2011 o Partido Comunista Chinês proibiu o tema viagem no tempo em produções audiovisuais, sob alegação de que não eram “realistas”. Certamente, o filme “2046: Os Segredos do Amor” (“2046”, 2004), do diretor Wong Kar-wai (“In the Mood for Love”), fez parte dessa tendência de filmes sobre o tema que se tornaram popular na TV do país e irritou o governo. É um filme para cinéfilos corajosos cuja narrativa pula não só do futuro para o passado e vice-e-versa, como também confunde a realidade literária de um livro sci-fi escrito pelo protagonista com o seu próprio presente, cujos personagens reais se transformam em ficção no seu livro. Tentando capturar a experiência da memória de um grande amor perdido, o filme se trata da luta do homem contra o tempo que torna todo momento feliz passageiro. Por que algo tão bom de repente não mais funciona?

quarta-feira, maio 04, 2022

A mitologia de Cronos e um buraco na ilusão do Tempo na série 'Outer Range'


Deus existe? E se existe, por que deixa coisas ruins acontecerem? Por que nos sentimos abandonados por Deus? Por que o Universo é eterno é nós somos finitos? Qual a natureza de um misterioso buraco sem fundo que surge em pleno pasto de uma fazenda no Wyoming? Inspirado na antiga mitologia grega de Cronos (um Titã que se tornou o “Deus do Tempo”), a série da Prime Video “Outer Range” (2022- ) é povoado por personagens angustiados com essas questões, entre a Metafísica, a ficção científica e os tropos clássicos do gênero Western. Um misterioso buraco que parece ligar ao Tempo Eterno (anterior a Cronos) e a feroz disputa territorial entre duas famílias de fazendeiros faz da série uma aposta sobre questões filosóficas e gnósticas: o Tempo como um acidente na Criação, da qual só podemos escapar se conseguirmos perceber aquilo que os gregos antigos chamavam de “Kairós”: o “acontecimento único”.

quarta-feira, novembro 24, 2021

"Noite Passada em Soho": por que temos saudades de épocas que não vivemos?



Por que a nostalgia pós-moderna nos domina? Cada geração sempre tem saudades de épocas que não foram vividas, como se para obtermos alguma sensação de futuro precisássemos roubá-la do passado. “Noite Passada em Soho” (“Last Night in Soho”, 2021) até parece se alinhar a outros filmes que desconstruíram essa nostalgia do “futuro do passado” como “Meia Noite em Paris” (2011), de Woody Allen, ou “La Belle Époque” (2019) ao acompanhar uma jovem interiorana obcecada pela “swinging London” dos anos 1960 e que vai para Londres estudar design de Moda. Na medida em que o drama romântico começa a mergulhar no terror (sonhos lúcidos de viagem no tempo ao Soho dos 60’s começam a se fundir com a realidade trazendo seus fantasmas), o filme acaba caindo no plot do conto de amadurecimento por transgressão e punição – quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem.

quinta-feira, agosto 12, 2021

Shyamalan faz thriller sobre a fratura da finitude humana no filme 'Tempo'


Paira em todas as cenas do novo filme de M. Night Shyamalan o espírito de Rod Serling, da série cult “Além da Imaginação”. “Tempo” (Old, 2021) é um filme sobre doença, envelhecimento e mortalidade. Mas principalmente sobre a condição existencial da finitude num universo que implacavelmente caminha para a entropia e o fim. Tentamos esquecer isso com o hedonismo tecnológico e do entretenimento. Mas, e se caíssemos numa praia paradisíaca e isolada onde misteriosamente o tempo está fora de controle e tudo envelhece de forma acelerada? Então essa condição cósmica viria à nossa consciência como uma fratura exposta. Shyamalan é um dos poucos cineastas contemporâneos que tem um compromisso kamikaze com as próprias ideias: depois de filmes com uma série de plot twists iconoclastas, em “Tempo” o diretor chega ao estado da arte – vai do metafísico e gnóstico para a crítica social numa virada que mistura gêneros: do thriller e terror para a pura ficção científica, combinando conceitos de magnetismo e regeneração celular.

quarta-feira, agosto 04, 2021

Descendo a toca do coelho quântico no filme "The Mandela Effect"


Muita gente possui em comum falsas memórias: de filmes que jamais foram feitos, de lembranças de nomes, logotipos, caixas de jogos de mesa e personagens de desenhos animados bem diferentes do que são na realidade. Mas qual realidade? Essa é a questão principal do chamado “Efeito Mandela”, fenômeno viral no qual muitas pessoas começam a descobrir que têm as mesmas falsas memórias dos mesmos eventos – produzindo conspirações quânticas como a experiência do gato de Schrödinger, a hipótese dos Muitos Mundos e a teoria do Universo como uma simulação computacional. Tudo isso inspirou o filme independente “The Mandela Effect” (2019): inconformado com a morte da sua pequena filha em um acidente, um designer de games de computador desce pelo buraco da toca do coelho quântico do Efeito Mandela acreditando que em alguns desses mundos das suas falsas memórias ela esteja ainda viva. Mas o filme apresente indícios de que a explicação do Efeito Mandela pode estar no fenômeno da hiper-realidade. 

quinta-feira, julho 15, 2021

Filme "A Guerra do Amanhã" é propaganda da Doutrina Biden para guerras do futuro


Desde que a Primeira-Dama Michelle Obama abriu o envelope de Melhor Filme do Oscar em 2013 em link ao vivo direto da Casa Branca, tornou-se explícita e sem rodeios a função de Hollywood como máquina de propaganda política. O Filme “A Guerra do Amanhã” (2021, disponível na Prime Video) é mais uma peça de propaganda, dessa vez escancarando a “Doutrina Biden” para o planeta. Do futuro vem uma força tarefa alertando que a humanidade está sendo dizimada por alienígenas xenomorfos e pede ajuda: enviar para lá mais tropas que auxiliem na batalha. Um mix dos clichês do gênero: viagem no tempo, monstros alienígenas, problemas mal resolvidos entre pai e filha, um herói que ao mesmo tempo tenta salvar o mundo e reunir a família etc. Mas também os indefectíveis RAVs (russos, árabes e vilões em geral e, agora, chineses também) que estão no filme, porém, de forma indireta, metonímica, com efeitos subliminares de propaganda política.

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