sexta-feira, agosto 19, 2022

Vai ter golpe? A História jamais será transmitida ao vivo pela TV



Nos últimos dias, nunca se ouviu ou se leu tanto o adjetivo “histórico”. Seja na mídia hegemônica ou na progressista. Adjetivando eventos que foram transmitidos ao vivo pela TV: a leitura da Carta em Defesa da Democracia na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, SP, e o discurso do ministro Alexandre de Moraes na solenidade de posse na presidência do TSE. "Históricas" defesas da Democracia. Mas será que a TV consegue mesmo mostrar ao vivo acontecimentos históricos? Ou será que a mídia só escolhe aqueles eventos que confirmem um script pré-estabelecido que já esteja rodando? Qual script? O roteiro do “golpe-pode-estar-à-nossa-espera-na-esquina”. Pedagogia do medo diariamente alimentada por notas plantadas (“agrojornalismo”) nos espaços diários dos “colonistas” dos principais veículos de imprensa. A História é feita por acontecimentos silenciosos, à margem de qualquer representação e racionalização. Enquanto o “histórico” midiático são sempre eventos ruidosos, estridentes e emergenciais. Telecatchs canastrões. 

Em 2014, o jurista Dalmo Dallari apresentava sua crítica e perplexidade diante das transmissões ao vivo das sessões do Supremo Tribunal Federal (o único país no mundo em que sessões de um tribunal superior são transmitidas ao vivo). Dallari apontava o “vedetismo e deslumbramento” dos ministros que prejudicariam a “impessoalidade e serenidade das decisões”. O jurista criticava a “interferência nefasta” das transmissões ao vivo que oferecia “atrativos e desvios emocionais” e que prejudicavam ou mesmo anulavam a “independência, a serenidade e a imparcialidade do julgador” – clique aqui.

Desde o Mensalão, os ministros do STF tornaram-se estrelas sob as lentes das câmeras ao vivo. Dentro do “golpe de veludo” da estratégia de guerra híbrida brasileira, funcionou dentro do script da grande mídia: a transmissão ao vivo como forma de pressão psicológica para o Supremo sentir o “efeito de manada” ou de “linchamento” incitado na opinião pública pela agenda do jornalismo corporativo naquele momento. 

O “ao vivo” ou “tempo real” criam um forte efeito de realidade tanto no objeto da transmissão quanto nos espectadores. No objeto cria o “efeito Heisenberg” (Neal Gabler): a TV passa a transmitir o efeito que a transmissão ao vivo provoca e não mais a realidade. E no espectador, a ilusão criada pela simulação do efeito de realidade.

Há um mal-entendido sobre a natureza das imagens e, principalmente, sobre as transmissões ao vivo:

(a) a imagem não é a realidade, mas um signo da realidade;

(b) como signo, toda imagem é a simulação de uma ausência (o objeto não é presencial) através de mediações tecnológicas: câmera, switcher, delay etc. Há uma simulação do presencial, mascarando a seleção, edição, enquadramento, angulação e assim por diante. Vemos um espectro (comunicação espectral), uma realidade fantasmagórica;

(c) as imagens midiáticas produzem o “efeito Heisenberg”, como denomina Neal Gabler: efeito secundário onde as mídias não mais relatam o que as pessoas estão fazendo, mas mostram o que as pessoas fazem para obter a atenção da mídia. Em outras palavras, à medida em que os eventos estão sendo vividos cada vez mais para tornarem-se imagem, a mídia está cada vez mais cobrindo a si mesma e o seu impacto sobre a vida.

A partir desses pressupostos desenvolvidos por autores como Daniel Boorstin, Umberto Eco e, o mais carbonário de todos, Jean Baudrillard, a História jamais será transmitida ao vivo pela TV

Mais radical, Baudrillard falava em uma “greve dos acontecimentos” – nenhum acontecimento verdadeiramente histórico poderá ser transmitido ao vivo porque para merecerem a atenção dos meios de comunicação, os fatos devem concordar com um script pré-estabelecido (pauta, agenda etc.). Em outras palavras, tudo o que acompanhamos nas telas são meros eventos (não-acontecimentos, pseudo-eventos etc.), jamais acontecimentos.



Numa sociedade do espetáculo, os acontecimentos verdadeiramente históricos sempre serão de natureza silenciosa, invisível. A mídia somente os revelará a posteriori, a partir do momento em que os acontecimentos se tornem tão disruptivos que o modo alarme é acionado, passando a ser reportados pelos meios de comunicação de massa.

É possível vermos a História na TV?

Não obstante, nunca se ouviu e leu tanto o adjetivo “histórico” nas mídias tanto hegemônicas quanto alternativas para designar a leitura da Carta em Defesa da Democracia, na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco (SP), e também o discurso de Alexandre de Morais na sua posse à presidência do TSE – um discurso qualificado como “duro” na “defesa intransigente” do processo eleitoral. E, principalmente, das urnas eletrônicas,pièce de resistánce da estratégia alt-right de apropriação semiótica do clã Bolsonaro. 

De imediato “colonistas” (aqueles jornalistas de plantão especializados em “agrojornalismo” – repercutir notas plantadas por fontes interessadas) começaram a traçar um paralelo entre a leitura da Carta de 1977, com as indefectíveis imagens de arquivo em p&b do golpe militar de 1964 e policiais militares correndo nas ruas desferindo cacetetes sobre manifestantes. 

Será que é mesmo possível vermos acontecimentos históricos se desenrolando ao vivo na TV?

A primeira pergunta que vem à mente desse humilde blogueiro é a seguinte: por que à época da leitura da Carta de 1977 não houve transmissão ao vivo? Por que a emissora de TV hegemônica na época, a Rede Globo, simplesmente ignorou aquele verdadeiro acontecimento? ... Além de também ignorar a crescente epidemia de meningite.

Como veículo de apoio a ditadura militar, obviamente o acontecimento não seguia o script editorial. Tornou os acontecimentos históricos (como, p. ex., a leitura da Carta de 1977 como movimento de resistência) invisíveis. Até o desenrolar da História culminar com os disruptivas manifestações de rua da “Diretas Já”, não restando para Globo e grande mídia, no último instante, render-se à própria História e transmitir os acontecimentos... mesmo dizendo que tudo não passava de uma “comemoração pelo aniversário da cidade de São Paulo”.



Bem diferente desse momento atual. Mudou o script. Agora é “o-golpe-pode estar-à-nossa-espera-na-esquina”. Vai ter golpe? Quem vai dar o golpe? De onde virá o golpe? Esse é o clima cotidiana criando pelos colonistas em notas cotidianamente plantadas por supostas “fontes”: militares, o clã Bolsonaro, os “temores” do comitê de campanha de Lula, os cochichos na caserna, a escalada de posse de armas pelos CACs, o recrudescimento da violência policial etc. E o destaque no noticiário da “reação” da sociedade civil contra a ameaça golpista.

O script da pedagogia do medo

Em postagem anterior (clique aqui) esse Cinegnose chamou a atenção para essa estratégia de guerra híbrida de criar a paralisia estratégica no inimigo: a estratégia da “pedagogia do medo”, normalizando as embaraçosas evidências de que as instituições não estão funcionando (para começar, o último ato de Fachin no TSE ampliando mais militares para “inspecionar as urnas”, um papel inconstitucional para as Forças Armadas – para grande mídia, tudo não passaria de “distensionamento”).

Se as “instituições estão funcionado”, estariam sujeitas a um “golpe” – pedagogia do medo que tem ainda uma outra função: apagar as digitais de um golpe militar que já ocorreu, o golpe híbrido, de “veludo”, com a própria anuência do STF e TSE na sua concretização em 2018.

Como esquecer o papel chave do mesmo ministro Alexandre Moraes na impugnação da candidatura Lula em 2018, rejeitando pedido de liberdade do candidato e ainda indeferindo pedido de nova distribuição do caso Lula aos integrantes da Segunda Turma. E mais! Diante da recomendação da ONU em garantir os direitos políticos do petista, Moraes desconversou: “cada macaco no seu galho!”. Pois bem, tudo aquilo deu nisso no qual estamos...



Pois é esse ministro, agora assumindo a presidência do TSE, demonstrando o amplo domínio de espectro que a pedagogia do medo criou, arrancou da mídia tanto corporativa quanto progressista aclamações como “discurso de posse histórico”, “discurso duro”, “discurso forte” etc., na defesa da “democracia”.

Obviamente, tudo transmitido ao vivo porque adicionou mais um ato ao script “o-golpe-pode estar-à-nossa-espera-na-esquina”. Sustentando o contínuo blefe de Bolsonaro e da psyOp das Forças Armadas, desde 2018, quando o atual chefe do Executivo se apropriou da crítica ao processo eleitoral. Ensaiado pelo PT quando Haddad ameaçou que “eleição sem Lula é fraude”.

E o ato mais recente desse script é a trepidante notícia divulgada, como não poderia deixar de ser, por um “colonista” do site “Metrópole”, Guilherme Amado, mostrando conversas em um grupo formado por empresários bolsonaristas no Whatsapp defendendo um “golpe de Estado” no caso de Lula vencer a eleição – empresários tão relevantes quanto qualquer grupo de bolsomínios no aplicativo que, diariamente, clamam por “intervenção militar constitucional”. Qual é a novidade? O golpe que estaria na esquina, ganhando repercussão entre juristas que pedem ao STF a “investigação de empresários”- clique aqui.

Esse domínio total de espectro acabou beneficiando o próprio corporativismo dos “históricos” ministros do TSF na sua luta contra o golpe. Como polpuda remuneração por todo esse telecatch, os ministros aprovaram para si próprios aumento de 18%, cujos salários poderão ultrapassar 46 mil reais... num momento em que supostamente (pelo menos para a PEC Kamikaze) estamos num “estado de emergência”. Silêncio por todo espectro, da direita à esquerda... Afinal, precisamos resistir ao “golpe”.


Deleuze e Derrida


Evento e Acontecimento

A recorrência da expressão “histórico” por todo espectro midiático, apenas confirmam a Teoria do Acontecimento de pensadores como Gilles Deleuze ou Jacques Derrida. Para os autores, os eventos ou fatos seriam aqueles de natureza ruidosa, escandalosa: casos naturais, sociais ou artificiais que ganham espaço nas manchetes dos jornais e tornam-se notícias estridentes e emergenciais. 

Já os acontecimentos são de outra natureza: silenciosos e insensíveis, passando à margem de qualquer representação ou racionalização. O Acontecimento seria aquilo que provoca crise, um fato único e excepcional, imprevisível e jamais repetível. O Acontecimento provoca uma crise, altera a vivência – leia DELEUZE, Gilles. Deleuze: Uma Filosofia do Acontecimento, Editora 34 e FRANÇA, Vera Regina & OLIVEIRA, Luciana de. Acontecimento: Reverberações, Autêntica, 2012.

Talvez o único elemento “histórico” nessas transmissões ao vivo seja o desempenho extremamente canastríssimo, estereotipado e overacting dos atores que performam esse script do medo: o leitor reparou que antes de Alexandre de Morais fazer o seu “histórico” discurso na solenidade de posse no TSE, travou um alegre cochicho ao pé de ouvido com o perigoso golpista Bolsonaro? 

 

 

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