Nascido dentro de um carro, uma criança cresce com o poder de se comunicar telepaticamente com um automóvel da frota de taxi do pai. Já adulto, retorna e se reconecta com o velho amigo motorizado para, junto com seu tio, criar uma seita que pretende fazer uma conspiração automobilística de carros sencientes que dominarão os humanos. Esse é o filme brasileiro “Carro Rei” (2021), de Renata Pinheiro, que, para a crítica estrangeira, faz uma reflexão filosófica sobre as relação homem-máquina-natureza, lembrando filmes sobre o pós-humano como “Titane”, de Julia Decournau e “Crash”, de Cronenberg. Porém, essa é apenas a superfície de “Carro Rei”. O filme faz uma metáfora da maneira como foi chocado o ovo da serpente que eclodiu o imaginário que corroeu a democracia brasileira: o ovo da serpente tecnológica e do consumo.
A ficção científica brasileira Carro Rei (2021), dirigida por Renata Pinheiro, vem rodando os festivais de cinema fantástico pelo mundo, com destaque para o Fantasia International Film Festival, em Montreal, no ano passado.
Como era para se esperar, a crítica especializada estrangeira tem recebido um filme brasileiro como um produto exótico vindo de um país do qual é incomum surgirem bons filmes de gênero, como terror ou sci-fi. Alguns veem Carro Rei como uma pérola, alguma coisa resultante do cruzamento entre Glauber Rocha e Jean-Luc Godard. Outros, um filme que reflete “um país que se moderniza rapidamente de um passado rural e agrícola que ainda perdura nas periferias de cidades em crescimento”, uma espécie de Bye Bye Brasil (Cacá Diegues, 1980) do século XXI.
Outros vão além, ao ver o filme como uma reflexão filosófica sobre as relações do homem com a máquina e das máquinas com o mundo natural. Um filme influenciado diretamente pelas incursões de David Cronenberg entre erotismo, fetiche e tecnologia como em Crash (1996) e seus derivados, como no fetichismo erótico pós-humano do recente filme Titane (2021).
Todas são análises válidas e acertam nas referências de Carro Rei. Mas, ainda sim, ficam na superfície – apenas em referências que foram a embalagem icônica para o filme ganhar o mercado internacional e conquistar a crítica dos festivais de cinema fantástico ou dos chamados “filmes estranhos”.
Mas é claro que, para a crítica estrangeira, falta o contexto político brasileiro da última década que Carro Rei pretende traduzir dentro da linguagem do realismo fantástico. Uma década que foi marcada pela ascensão pelo imaginário protofascista no país, resultando na chegada ao poder da extrema-direita impulsionada pelo protagonismo de um partido militar e da guerra híbrida dirigida pela geopolítica norte-americana.
Mas Carro Rei aborda um aspecto bem particular (mas que foi decisivo) para toda essa guinada política que corroeu a democracia brasileira: a maneira como foi chocado o ovo da serpente que eclodiu um imaginário que alimentou o golpe político brasileiro: o ovo da serpente tecnológica e do consumo.
Certa vez a filósofa Marilena Chauí, em um debate sobre a ascensão conservadora em São Paulo (realizado na USP em 2012), sugeriu uma conexão entre os “aparatos neoliberais”, o encolhimento da esfera pública e o conservadorismo da classe média. Ela disse: “a classe média paulistana é um mistério. Convidam você para ir a casa deles, é bem recebido, fazem uma comida especial para você, te levam até a porta, oferecem carona etc. Mas basta dirigir um carro, entrar numa fila ou num espaço que deve ser compartilhado para se transformarem em bestas selvagens”.
Principalmente o leitor paulistano deve lembrar da resistência dos motoristas contra a redução dos limites de velocidades nas avenidas em São Paulo e, concomitantemente, a construção de ciclovias: ataques contra o prefeito do PT, Fernando Hadad, usando como álibi a “indústria da multa” para canalizar o ódio contra uma política que colocava o carro particular em segundo plano em nome de um planejamento urbano que privilegiava a esfera pública.
E como o atual presidente de extrema-direita retirou radares de rodovias federais (em nome de um suposto “prazer em guiar um carro”) e se promover com motociatas pelo país (e até em Miami) numa explicita promoção simbólica entre potência política e sexual com o rugir de motos de alta cilindrada – a quintessência do imaginário fascista clássico, desde Mussolini.
Esse é o tema mais profundo de Carro Rei. Ambientado na cidade nordestina de Caruaru (na qual convivem altos prédios residenciais com resquícios de um passado rural na periferia de uma cidade em crescimento), o filme acompanha a trajetória de uma família proprietária de uma pequena frota de taxi que, aos poucos, vai se transformando num culto místico-tecnológico em torno do “carro rei” – um carro que consegue se comunicar telepaticamente com um menino e que tentará moldar a cidade a sua imagem e semelhança. E da pior maneira possível.
O Filme
Carro Rei começa vislumbre do Brasil rural de ruas periféricas: vacas serpenteiam entre carros velhos e vagam pelas ruas estreitas, impedindo um homem de levar sua esposa, que está em trabalho de parto, ao hospital. Na verdade, não vão muito além e ela dá à luz na parte de trás do carro. Isso parece desencadear alguma habilidade incomum em seu filho, Uno (aka, Nino – Alexandre Lima e, adulto, Luciano Pedro Jr), que desde tenra idade parece ser capaz de se comunicar telepaticamente com carros. Mas principalmente com um carro em particular, da frota de táxis de seu pai, que até parece gostar dele - embora não demore muito para que essa 'amizade' pareça suspeita e devaste a pequena unidade familiar.
Conforme Uno cresce, ele parece perder – ou esquecer – suas habilidades e luta para seguir seu próprio caminho. Enfaticamente, ele não quer passar a vida simplesmente fazendo o que seu pai fez, e quer se formar como bioagricultor, abordando questões como poluição e produção comunitária de alimentos sustentáveis.
Isso causa uma rixa com seu pai, coincidentemente arrastando Uno de volta para os ferros-velhos e para o veículo telepático que ele deixou para trás em sua infância. Encontrando o caminho de volta para o mesmo táxi destruído de antes, Uno percebe que ainda pode se comunicar com ele. Pensando talvez que seu 'dom' possa ser usado para algum propósito ou talvez por pura curiosidade, Uno pede a ajuda de seu tio Zé Macaco (Matheus Nachtergale), e eles o reformam, transformando-o no “carro rei” – Zé, usando suas habilidades por lidar com lixo eletrônico, constrói uma interface de comunicação entre o “carro rei” e os humanos.
Ao que tudo indica, Uno e Zé têm um conjunto particular de habilidades com todos os carros, e é bem na hora - no momento em que o governo baixa uma determinação de retirar carros em circulação com mais de quinze anos. Ou seja, os carros velhos da classe média baixa se tornam ilegais.
É nesse momento que a frota de taxi se transforma numa seita místico-tecnológica com sede de justiça: reformarão todos os carros velhos para os tornar também autoconscientes, tendo como inimigos justamente o grupo de bioagricultores de Uno e todo o discurso ambientalista da sustentabilidade.
“Carro Rei” vira um culto protofascista, mas também objeto de fetiche erótico de uma dançarina de pole dance (ironicamente chamada Mercedes – Jules Elting) que se torna sua “primeira-dama” e amante – as cenas de sexo com o carro são referências diretas do filme Titane e Crash.
O objetivo da seita é dominar a cidade (ao vender os carros autoconscientes para a população incauta) e matar o grupo opositor ambientalista, liderado por Amora (Clara Pinheiro) e a professora universitária (Rubeuza Souza).
Carro Rei faz uma reflexão pós-humana da tecnologia, como nos informa a certa altura o discurso de Zé Macaco para os mecânicos-funileiros-adeptos da seita. Segundo ele, desde que o homem primitivo pegou a primeira pedra para esfarelar sementes, criou a primeira ferramenta: “a pedra já estava no DNA do homem”, grita Zé. O homem é a ferramenta, é o seu DNA. Logo, a humanidade se converterá num ser híbrido, cujo Carro Rei é o protótipo.
Porém, o filme vai além em cenas como, por exemplo, em que vemos alto-falantes tocando o hino nacional brasileiro no ferro-velho da seita, enquanto os adeptos, trajando macacões azuis, verde e amarelo, reformam os carros velhos.
Paradoxalmente, a modernização recente do país através do modelo neodesenvolvimentista dos governos do PT, acabou chocando o ovo da serpente: consumo, meritocracia que, logo depois, a guerra híbrida combinou com patriotismo e conservadorismo moral traduzido politicamente pelo discurso político extremista de direita.
Não é por menos que a seita do Carro Rei volta-se contra os discursos eco-socialistas: “a guerra é a única higiene do mundo”, diz Zé Macaco a certa altura, parafraseando Filippo Tomasi Marinetti, o líder dos artistas modernistas do Futurismo italiano do início do século XX. Glorificavam o militarismo e patriotismo, combinando com o gesto destruidor dos libertários. “Queremos glorificar a Guerra!”, exortava Marinetti, assim como a seita do Carro Rei, numa estranha combinação entre justiça social e violência.
Tal como os futuristas, a seita quer fazer uma guerra para acabar com todas as guerras para que a humanidade alcance a pureza maquínica: fundir-se com a pureza da máquina, que nunca erra.
O tio de Uno, Zé Macaco, é um espetáculo digno de ser contemplado: seus trejeitos são estranhamente símios, porém sempre às voltas com placas de circuitos eletrônicos, virabrequins e pistão de motores. Parece querer voltar para a pureza primitiva em que a pedra saiu do DNA humano e o transformou em homo sapiens.
O problema é que sempre quando surgem discursos religiosos, científicos ou políticos sobre pureza, higiene e limpeza da sociedade e da História, descobrimos que sempre, da pior maneira possível, as coisas não acabam bem.
Ficha Técnica |
Título: Carro Rei |
Diretor: Renata Pinheiro |
Roteiro: Sergio Oliveira, Renata Pinheiro, Leo Pyrata |
Elenco: Luciano Pedro Jr, Matheus Nachtergaele, Clara Pinheiro, Jules Elting, Alexandre Lima |
Produção: Aroma Filmes, ANCINE |
Distribuição: Boulevard Filmes |
Ano: 2021 |
País: Brasil |