Em 2011 o Partido Comunista Chinês proibiu o tema viagem no tempo em produções audiovisuais, sob alegação de que não eram “realistas”. Certamente, o filme “2046: Os Segredos do Amor” (“2046”, 2004), do diretor Wong Kar-wai (“In the Mood for Love”), fez parte dessa tendência de filmes sobre o tema que se tornaram popular na TV do país e irritou o governo. É um filme para cinéfilos corajosos cuja narrativa pula não só do futuro para o passado e vice-e-versa, como também confunde a realidade literária de um livro sci-fi escrito pelo protagonista com o seu próprio presente, cujos personagens reais se transformam em ficção no seu livro. Tentando capturar a experiência da memória de um grande amor perdido, o filme se trata da luta do homem contra o tempo que torna todo momento feliz passageiro. Por que algo tão bom de repente não mais funciona?
Em 2011, no nonagésimo aniversário do Partido Comunista da China, a Administração de Rádio, Filme e Televisão do país avaliou que um dos maiores seriados de sucessos, “Jade Palace Lock Heart” era “uma história frívola que não pode ser encorajada”. Era uma série de ficção científica na qual a protagonista volta à China antiga onde encontra amor e felicidade. O que resultou numa proibição generalizada do tema “viagem no tempo” no cinema e audiovisual, sob a justificativa de que são necessárias “produções realistas sobre a Revolução Chinesa” – clique aqui.
Em outras palavras, as autoridades passaram a exigir um maior realismo no cinema e TV, seja nas produções ficcionais ou documental.
Na época, esse humilde blogueiro avaliava que a proibição de filmes ou séries em torno do tema “viagem no tempo” tinha a ver com um país que vive uma verdadeira Revolução Industrial (afinal, “Made in China” tornou-se uma marca que invadiu todos os mercados do planeta) que cresce numa rotina de trabalho massacrante e exploradora, não poupando até o trabalho infantil. Portanto, qualquer forma de entretenimento não deve oferecer qualquer experiência “perturbadora”. Ao contrário, deve oferecer entretenimento tranquilizador que o amarre ao presente: a tranquila adaptação aos papéis sociais, com seus deveres e sacrifícios - clique aqui.
Bem entendido, por “realismo” estamos nos referindo estritamente ao chamado “realismo cinematográfico”: os ardis da montagem e da edição fazem com que o olhar do espectador se identifique com o olhar da câmera e do personagem, produzindo a ilusão realista de continuidade, a figura do sujeito-espectador e a identificação primária. Além do elemento da verossimilhança, que pode tornar a narrativa ficcional como fosse “parecida com a realidade”.
Certamente, a produção chinesa 2046: Os Segredos do Amor (2046, 2004), de Wong Kar-Wai, foi uma dessas produções nacionais que fez o tema da viagem no tempo entrar no radar do Partido Comunista chinês. Considerado uma continuação informal do anterior In the Mood for Love (2000), que completaria uma trilogia sobre o amor com Days of Being Wild (1990), o filme foi concluindo às pressas para estrear no Festival de Cannes – o terceiro rolo chegou às pressas no aeroporto enquanto os dois primeiros já estavam rodando na estreia do festival.
Uma história de amor sem esperança que constantemente força o espectador a saltar no tempo e na realidade. Sucessivos saltos em que o diretor parece tentar entender o porquê de uma coisa tão boa como o amor de repente parecer não querer mais funcionar. Como na pergunta que Ian Curtis faz em “Love Will Tear Us Apart” da clássica banda pós-punk Joy Division.
Após os eventos de “In the Mood for Love”, o protagonista Chow Mo-wan passa a vida como escritor e retorna a Hong Kong depois de passar alguns anos em Cingapura. Tenta superar seu amor frustrado e idealizado por Su Li-zhen. Por isso, tornou-se um mulherengo, vivendo longas noitadas regadas a muita bebida e sexo. O número do quarto do hotel de In the Mood for Love e outro número de quarto de hotel neste filme no qual conhece outra mulher de seu passado (que está no quarto 2046), o inspiram a alugar o vizinho quarto 2047 do Oriental Hotel. E, também, escrever um romance de ficção científica chamado “2046”.
Prepare-se para tristeza, desespero, esperança, inspiração e, em seguida, um retorno à miséria enquanto percorremos esta viagem híbrida de ficção científica e romance, ao lado do desgosto de um escritor e das tentativas que ele faz de lidar com isso.
Uma história de amor sem esperança (e sem “retorno-à-ordem”), que tenta lidar com o principal fator que o corrói: a seta da entropia, o tempo que não permite que nada que seja bom perdure.
O problema, é que no maquínico cotidiano industrial chinês, o tempo não é algo contra o qual temos que nos rebelar, mas se adaptar.
O Filme
2046 é apresentado com quatro arcos principais da história. A primeira é sobre o relacionamento de Chow com Wang Jing-wen, (filha do proprietário do hotel no qual está hospedado), que está apaixonada por um jovem japonês cuja relação jamais será aceita por seu pai.
O segundo arco é sobre o relacionamento entre Chow e Bai Ling, que se muda para um quarto adjacente, o 2046. Bai Ling, que se veste como Su Li-zhen, porém muito mais agressiva e lasciva, parece ter uma vida muito parecida com Chow, preferindo festas e bebedeiras.
O terceiro arco é um flashback da vida de Chow em Cingapura e seu relacionamento com sua alma gêmea perdida do passado cujo nome também é Su Li-zhen.
O quarto arco acontece no romance escrito por Chow “2046”, mundo misterioso no futuro no qual nada muda ou é corroído pelo tempo. As pessoas viajam para 2046 numa espécie de trem que percorre na velocidade da luz para recuperar o que perderam pelo Tempo, para nunca mais voltarem. Exceto o seu protagonista chamado Tak, que quer retornar para o tempo em que a estória de Chow é narrada.
Por isso, 2046 não é um filme fácil de acompanhar, pulando não só do futuro para o passado e vice-e-versa, como também confundindo a realidade literária do livro escrito por Chow com o seu próprio presente, cujos personagens se transformam em ficção no seu livro.
2046 tem uma fotografia deslumbrante. O uso da iluminação, música e cenografia que seguem a estética clássica dos filmes noir – filma os atores principalmente em close-up e plano médio, com detalhes arquitetônicos barrocos ao fundo, com fumaça de cigarro constantemente envolvendo o ar e criando climas de tensão e mistério. As cores lúgubres preenchem os planos detalhadamente compostos, adicionando texturas e detalhes enquanto oculta parte dos rostos dos personagens. Wong Kai-wai faz um filme visualmente tão deslumbrante que muitas vezes ficamos hipnotizados pelas composições visuais, fazendo-nos nos perder em uma narrativa complicada em que os quatro arcos narrativos descritos acima se confundem.
Nos filmes noir, o protagonista central é sempre um detetive, literal ou simbólico, sempre tentando resolver um enigma. Em 2046, Chow é um tipo particular de detetive: vivendo na sujeira de um submundo de Hong Kong, ele parece ser um detetive (no caso, é um jornalista) em que tenta resolver o enigma pela sua obsessão pela suposta alma gêmea perdida.
Nos anos que se seguiram após a perda, Chow jamais conseguiu tirar da cabeça a pergunta “e se?...”. Em vez de aceitar e superar seu erro, tenta capturar aquela sensação que viveu em seu passado feliz.
O amor idealizado de Chow por Su, que ele perdeu, o leva a um estado em que ele não consegue se manter fiel às suas emoções. Então ele segue em frente sem olhar para trás apenas para olhar para aqueles que o lembram de seu amor perdido, o que acaba levando à percepção de que ele precisa deixar o passado para trás. Os pensamentos de Chow são mais explorados no mundo da ficção científica de seu romance “2046” do que na vida real. À medida que cada um dos personagens de sua vida é retratado como um personagem do romance, suas emoções reais em relação a eles são expostas, à medida que a escrita progride.
Essa é a forma que assume o seu livro “2046”, como fossem sessões de auto-análise: seu protagonista Tak embarcou naquele trem para o futuro para viver na eternidade o melhor momento da sua vida – o filme japonês After Life (1998) já havia desenvolvido esse tema, trocando o futuro pela vida após-morte: reencenar cinematograficamente no além-túmulo a melhor memória da vida na Terra – clique aqui.
O impulso de “detetive” do protagonista parece ser freudiano: assim como o protagonista do seu livro (o único que retorna do idílico ano de 2046), Chow decide retornar em flashback para Cingapura. Mas não mais para reviver ou tentar capturar o passado – mas para simbolizá-lo. Reviver a cena traumática, não para repeti-la neuroticamente como clichê (como no futuro de 2046), mas compreendê-la, simbolizá-la.
Superar sem esquecer ou mesmo deletar as memórias, como pregam terapias distópicas como as da Cientologia. Afinal, nossa identidade é basicamente estruturada pelas memórias.
Certamente foram por causa de filmes como esse de Wong Kar-wai que o Partido Comunista Chinês se interpôs, proibindo temas associado à “viagem no tempo” – no ritmo industrial do cotidiano chinês, pensar em passado e futuro é um luxo do qual o operário não pode dispor tempo. Para ele, deve ser produzido um certo tipo de entretenimento que o ajude a se adaptar ao ritmo industrial do presente.
Ficha Técnica |
Título: 2046: Os Segredos do Amor |
Diretor: Wong Kar-wai |
Roteiro: Wong Kar-wai |
Elenco: Tony Chiu-wai Leung, Ziyi Zhang, Faye Wong, Carina Lau, Takuya Kimura |
Produção: Jet Tone Production, Shangai Film Group, Orly Films |
Distribuição: MUBI, Pandora Filmes |
Ano: 2021 |
País: China, Hong Kong |