As psyOps da guerra híbrida militar veem a sociedade civil e a opinião pública como um “palco de operações” numa analogia à guerra convencional: false flags, guerra criptografada, abordagens informacionais indiretas, controle total de espectro etc. são mobilizados com um objetivo: criar a simulação de que “as instituições estão funcionando”. E seu efeito residual é a “pedagogia do medo”, o medo de que um golpe possa ocorrer a qualquer momento. Ocultando o fato de que o golpe já aconteceu. Mas foi híbrido, mantendo abertamente sob tutela as instituições civis. A Carta em Defesa da Democracia (já com mais de 400 mil signatários) partilha dessa ilusão criada pelo “palco de operações”, com a ajuda midiática que ressuscita na tela fotos e vídeos da velha ditadura militar. Como um fantasma que pudesse voltar. Paralisando a esquerda que, temerosa, permanece pacata, protocolar e institucional. Mesmo sabendo que as instituições foram aparelhadas pelo golpe militar híbrido.
Em 1986 os estudantes do Lyceu, Paris, entraram em greve, dentro de uma onda de protestos em massa após uma nova lei assinada pelo governo, denominada Lei Devaquet. Motins e saques ocorreram em toda Paris, espalhando-se por outras três cidades.
Os jornalistas da grande mídia tinham ainda na cabeça a Revolução de Maio de 1968 e, ansiosos, passaram a cobrir os acontecimentos como o “novo 68”. Nada na cobertura poderia ser perdido, com medo de deixar escapar qualquer detalhe de um pretenso “novo acontecimento histórico”.
Na verdade, estavam diante de adolescentes não muito politizados e que não sabiam muito bem o que dizer. Mas os jornalistas começaram a levar a sério os porta-vozes. E os porta-vozes também começaram a se levar à sério.
Para o sociólogo francês Pierre Bourdieu, esse foi um exemplo de como podem os jornalistas, num misto de boa-fé e ingenuidade, deixarem-se levar pelos seus pressupostos, categorias de percepção e expectativas inconscientes – leia BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão, Jorge Zahar Editor, 1997.
A “Carta em Defesa da Democracia”, lançada na última terça-feira por juristas e pela Faculdade de Direito da USP (como uma resposta aos ataques de Bolsonaro ao processo eleitoral brasileiro, principalmente após a reunião do chefe do Executivo com embaixadores estrangeiros) está sendo encarada pela mídia tanto corporativa quanto progressista como uma rememoração da Carta aos Brasileiros de 1977, texto de repúdio à Ditadura Militar redigido pelo jurista Gofredo Silva Telles. E lida pelo próprio no território livre do Largo do São Francisco, em São Paulo.
Até agora com mais de 400 mil signatários, a atual Carta está sendo considerada “um ponto de inflexão”, assim como foi em 1977, dando início na época a um processo de liberalização, controlado pelo presidente General Geisel.
Como em 1977? |
Esse humilde blogueiro tem sérios motivos para acreditar que o diagnóstico de Bourdieu sobre o comportamento da mídia em 1986 na França pode ser perfeitamente aplicada ao viés pelo qual as mídias estão considerando a Carta atual como “ponto de inflexão”.
Invariavelmente acompanhamos na mídia comentários que buscam pontos em comum entre 1977 e 2022. Na TV, as recorrentes fotos ou vídeos da TV Cultura desbotados com imagens do jurista Gofredo Silva lendo desafiadoramente a Carta aos Brasileiros. Metonicamente seguidas por imagens da performance de Bolsonaro diante dos perplexos embaixadores estrangeiros.
De onde virá o golpe?
A atual Carta surge em um contexto do medo de um possível golpe contra a democracia: de onde virá? Da ala golpista das Forças Armadas? De Bolsonaro, isolado, com a ajuda dos CACs e policiais militares? Da violência política armada contra as oposições? Atentados contra zonas eleitorais no dia da eleição para empastelar o processo? Há fantasmas de golpes por todos os lados.
Teme-se retrocesso: voltar a uma ditadura militar. E as imagens da ditadura (o golpe militar de 1964) vem à cabeça de todos. Principalmente na dos jornalistas, sejam veteranos ou jovens, todos mesmerizados pelas imagens históricas de um golpe militar old school.
Observa-se nessa necessidade urgente de defesa da democracia um primeiro erro de avaliação: embora a Carta incorpore o espírito de 1977, a diferença é que lá no passado os militares estavam no poder; e agora eles supostamente iriam querer retornar através de um novo golpe, para destruir a democracia. Como fizeram seus antecessores.
Para reforçar esse argumento, apontam para o suposto “pito” que o Secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin III, na Conferência dos Ministros de Defesa da América realizada em Brasília, deu em Bolsonaro ao defender o “controle civil firme dos militares” e “profundo respeito pelos direitos humanos, Estado de Direito e a devoção à democracia”.
Ele veio no Brasil dar um pito no Bolsonaro? |
O problema é que jornalistas e "colonistas" (aqueles especializados em ser correias de transmissão de notas plantadas) não percebem a profunda ironia nessas palavras protocolares do secretário norte-americano: a atuação de militares em cargos civis no governo federal aumentou em 193% desde 2019. Em um governo comandado por um chefe do Executivo militar que chegou ao poder impulsionado pela própria geopolítica do Departamento de Estado dos EUA – por meio de uma guerra híbrida que, mais tarde, foi emulada pelos militares brasileiros no atual governo de ocupação do Estado.
Governo que, desde o primeiro dia, encara a opinião pública como um palco de operações e põe em ação táticas de guerra híbrida como false flags, guerra criptografada, abordagens informacionais indiretas, controle total de espectro etc.
Pedagogia do medo
Toda a repercussão em torno da Carta em Defesa da Democracia não consegue entender a especificidade do momento atual em relação ao passado: o golpe militar já ocorreu, mas de forma lenta, híbrida, sob a aparência de que “as instituições estão funcionando”. Se há semelhanças, a única é essa: lá como cá, as Forças Armadas estão no poder. Em 1977, numa ditadura clássica com repressão policial, tortura e censura; aqui, em 2022, um governo cuja inteligência militar detona diariamente bombas semióticas diversionistas: caos informacional com método. Cujo efeito mais imediato é criar a simulação de que as instituições estão funcionando. E a cada arroubo ou bravata do fusível a ser queimado chamado Bolsonaro, criar a simulação de que algum golpe está sendo preparado.
Como aponta o professor da Fundação Escola de Sociologia e Política, Aldo Fornazieri, há um ataque da “pedagogia do medo”, uma tática em pinça (outra ferramenta de guerra híbrida para controle total de espectro) na qual, de um lado, Bolsonaro intimida; e do outro, setores da esquerda disseminam o medo. “Medo do golpe, medo de enfrentar Bolsonaro, medo do segundo turno...”, afirma Fornazieri.
Com isso querem calar, bloquear reações dos seus inimigos, conseguir adesões forçadas dos neutros e até de adversários. Intimidados, os partidos adversários fazem uma oposição pacata, protocolar que, em última instância, termina por naturalizar as práticas antidemocráticas. Em muitos casos, como o foi na Alemanha, até autoridades deixam de cumprir o seu dever por estarem intimidadas – clique aqui
O espírito que anima a atual Carta pela Defesa da Democracia é bem diferente de 1977: lá era desafiador, de enfrentamento à ditadura militar para abrir caminhos para a volta da Democracia. Aqui em 2022, dominada pelo medo de perder algo que já não mais existe. A não ser nos seus aspectos formais que criam a aparência de que “as instituições estão funcionando”.
Desde que o então presidente do STF, Dias Toffoli, passou a ser "assessorado" pelo general Ajax Porto Pinheiro, as instituições começaram a ser tuteladas pelos militares. Segundo Toffoli, para “criar canais de diálogo com setores importantes...”.
A mesma tibieza foi escancarada quando o então presidente do TSE, o ministro Luís Roberto Barroso, criou a Comissão de Transparência das Eleições com a presença militar – “gentilmente convidada”, segundo o ministro iluminista. E, para manter essa aparência de funcionamento das instituições, o Ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, criou o midiático telecatch ao enviar um questionário com “44 sugestões de melhorias no processo eleitoral”. Fachin respondeu e o ministro da Defesa ficou “em silêncio”, como comemorou a mídia: vejam como as instituições estão funcionando!
Até onde esse Cinegnose sabe, vigiar o processo eleitoral não é papel constitucional dos militares.
Assim como, nos últimos meses, onze PECs foram aprovadas à base de tratoradas no Congresso, passando por cima não só do regimento interno da casa legislativa quanto da própria Constituição. Se o STF é o “guardião da Constituição”, onde estava o Supremo? Negando os pedidos de suspensão da tramitação da PEC Eleitoral através da inefável figura do ministro André Mendonça. PEC que subverteu a própria legislação eleitoral: a poucos meses da eleição, usa a máquina pública para criar auxílios emergenciais.
Isso sem falar do casuísmo da figura jurídica do “estado de emergência” (não previsto na Constituição) que, no contexto atual das instituições civis tuteladas pelos militares, pode ser utilizada como pretexto para qualquer coisa.
A pedagogia do medo só pode dar certo se a PsyOp militar for bem-sucedida na simulação de normalidade institucional – de que tudo o que foi descrito nos parágrafos acima fizesse parte de uma normalidade institucional do país. E a repercussão dessa carta prova que a guerra híbrida militar está atingindo em cheio seus objetivos.
Essa pedagogia do medo é que esvazia as ruas, deixando-as de mão beijada para a extrema-direita ocupá-las. Assinatura online de uma carta de defesa da democracia, assim como as inúmeras notas de repúdio feitas por instituições civis, morrem, por exemplo, nas ironias do chefe do executivo que chama tudo de “cartinhas” – aliás, ironias do presidente que mais produziu provas contra si mesmo... mas tudo o que faz o STF, como sempre, é dar alguns dias de prazo para Bolsonaro dar as devidas “explicações”...
O resultado é, como descreve o professor Fornazieri, uma “oposição pacata, protocolar” que abandona os espaços públicos pelo medo de não querer atrapalhar um processo eleitoral marcado não por teorias conspiratórias (tática diversionista de Bolsonaro), mas por dúvidas justificadas (sobre isso clique aqui).
Por acreditar que as instituições funcionam, a esquerda é tomada pelo medo difuso, evitando fazer qualquer movimento que possa se tornar pretexto para um golpe que possa vir de qualquer lugar.
Aceitar a existência de uma situação em que o golpe militar já aconteceu e de que as instituições civis estão tuteladas não mais por mecanismos clássicos da ditadura, seria fundamental para as estratégias políticas da esquerda: abandonar uma confortável oposição parlamentar que se limita a acionar instituições já aparelhadas como STF e PF e partir para um enfrentamento mais enérgico – mobilização da sociedade civil e movimentos sociais não somente através de notas de repúdio ou cartas online, mas do resgate da democracia no espaço público real das ruas, praças e avenidas.