quarta-feira, março 30, 2022

Os zumbis são espelhos dos vivos em 'Os Mortos Não Morrem'


O planeta sai do eixo devido a uma exploração geológica predatória no Polo Norte. O dia e noite começam a mudar instantaneamente. Os animais fogem ou enlouquecem. Mas na pequena cidade de Centerville todos ignoram, imersos em que estão na sua pacata rotina. Até que os mortos ressuscitam, transformados em zumbis. Mas eles não querem apenas comer os vivos: querem voltar a consumir produtos e objetos de que gostavam quando eram vivos. Essa é a comédia de humor negro de Jim Jarmusch “Os Mortos Não Morrem” (The Dead Don’t Die, 2019), um filme político e espiritualmente amargo: retoma o simbolismo político original de George Romero em “A Noite dos Mortos-Vivos” (1968) para dar uma complementação existencial gnóstica: e se nos formos como os mortos-vivos, vagando pela Terra sonolentos e arrastados?

Um expatriado húngaro que mora em Nova York; presidiários que só pensam num plano de fuga; um contador do Leste americano perdido no Oeste sem saber se está vivo ou morto; um casal de vampiros, cujo amor ultrapassa séculos, auto-exilados em Detroit; um solteirão convicto que cruza os EUA. Desde 1984, o diretor Jim Jarmusch coleciona em sua cinematografia (Estranhos no Paraíso, Down By Law, Dead Man, Amores Eternos, Flores Partidas etc.) uma notável galeria de anti-heróis – em geral, “estrangeiros” que parecem viver numa sensação de alienação e estranhamento com esse mundo.

Depois de ter revisitado o gênero clássico do western, dando uma reciclada espiritual-xamânica, agora é a vez de Jim Jarmusch revisitar gênero dos filmes sobre zumbis – uma mitologia sólida construída no último meio século, desde o seminal A Noite dos Mortos Vivos (1968) de George Romero, a representação mais acabada e contemporânea dos mortos vivos que deu início às suas diversas “encarnações” no cinema.

Em postagem anterior, este Cinegnose já discutiu como a produção de filmes sobre zumbis é uma espécie de sismógrafo de acontecimentos históricos, políticos e econômicos de cada período, claramente observável a conexão entre os picos de filmes do gênero com períodos de crise – clique aqui

Essa revisita de Jim Jarmusch em Os Mortos Não Morrem (The Dead Don’t Die, 2019), na qual cidadãos de uma pacata cidadezinha são atacados por zumbis que ressuscitam de um cemitério local, em primeiro lugar recupera a essência da crítica social do simbolismo zumbi que Romero trouxe às telas em 1968: se no passado fazendeiros brancos se apropriavam das tradições vodu para manter pessoas sob controle nas suas plantações, em Romero tudo mudou – um protagonista negro tem que se livrar de uma horda de zumbis brancos. Evidente metáfora política de uma década de conflitos raciais e de lutas por direitos civis.

Por seu turno, embora seja uma comédia, o filme de Jarmusch é amargamente político – uma visão triste e mortal de uma cidadezinha na América profunda com uma latente tensão racial (p. ex., um dos personagens usa um boné no qual lê-se estampado: “Make America White Again”) na qual todos parecem tão sonolentos e arrastados num cotidiano sem perspectivas que os próprios moradores já parecem zumbis.  

Esse parece ser o mote principal de Os Mortos Não Morrem: somos tão apegados aos nossos preconceitos, valores e objetos de consumo que parecemos como sonâmbulos, mortos vivos em vida.

Jarmusch acrescenta mais um elemento que, mais tarde, seria explorado em filmes como Não Olhe Para Cima e The Seed: estamos em tal estado de sonambulismo que seríamos cegos o suficiente para não percebermos quando um apocalipse real começasse a acontecer – para Jarmusch, não seria tanto a questão das redes sociais e das bolhas virtuais, mas o apego ao cotidiano consumista de gadgets, mercadorias e modas, a partir das quais supostamente nos definiríamos.

Para Jarmusch, os zumbis não querem morrer não apenas para consumir carne humana, mas para voltar a vagar pela Terra para voltar a consumir os objetos e mercadorias que deixaram nesse mundo.




O Filme

A premissa é simples: dois policiais da pequena cidade de Centerville – Cliff Robertson (Bill Murray), que é o chefe, e Ronnie Peterson (Adam Driver) – enfrentam o eremita local, Hermit Bob (Tom Waits), por uma acusação trivial: o roubo de uma galinha. 

Depois de resolvido o caso, dirigindo de volta para a delegacia, os oficiais percebem que a hora do dia é 20h20, mas o sol ainda está alto no céu; de repente o rádio da polícia sai ar, assim como serviço de celular. Eles sentem que algo grande e terrível está acontecendo,

Ronnie diz aquele que será o refrão do filme “Isso não vai acabar bem”. E ele está certo: a Terra foi desviada de seu eixo supostamente por algum tipo de exploração geológica comercial no Polo Norte, o “fraturamento polar” – embora autoridades nos telejornais desmintam a causalidade. As horas do dia e da noite passam a ser instantaneamente imprevisíveis. Os animais enlouquecem; e os mortos logo se levantam de seus túmulos e — movendo-se, como fazem os zumbis, no ritmo lânguido de pessoas para quem o tempo não significa nada — comem os vivos.

Jarmusch preenche o filme com uma variedade vertiginosa de personagens idiossincráticos e um elenco de atores que lembra o universo cinematográfico de David Lynch e dos irmãos Coen. 




Mindy Morrison (Chloë Sevigny), é a outra policial da cidade, e está sempre perplexa e paralisada pelo medo; Hank (Danny Glover), dono de uma loja de ferragens, suporta a presença rabugenta de Frank (Steve Buscemi), um fazendeiro rabugento e racista que usa o boné de beisebol com o slogan “Make America White Again” e que suspeita do ermitão Bob de ter roubado suas galinhas. Bobby (Caleb Landry Jones) administra o posto de gasolina e que também transformou o ponto em uma butique de recordações e souvenirs de filmes de terror (a grande metalinguagem que o filme faz de si mesmo); 

Zelda Winston (a sempre estranha Tilda Swinton), a nova agente funerária da cidade, também é uma especialista em espadas de samurai, sempre com uma postura marcial rígida – logo veremos o que fará com suas habilidades para matar os zumbis. Entre outros numa galeria de tipos pra lá de estranhos.

Qual a conexão entre o “faturamento polar” e o apocalipse zumbi? Por que um disco-voador aparece para levar Zelda em um raio de luz trator? Por que Ronnie é o único que pressente que as coisas não acabarão bem? Por que nas rádios só toca a música “The Dead Don’t Die” de Sturgill Simpson? A reposta é a maneira com no filme inteiro Jarmuch brinca com a metalinguagem e um elemento de roteiro chamado “Deus ex-machina” – quando o roteirista insere algo arbitrário ou inverossímil para consertar um beco sem saída narrativo. E quanto a Ronnie, ele sabe que as coisas não acabarão bem porque ele “leu o roteiro” do diretor, como fala a certa altura.




Porém, por trás de toda metalinguagem, cinismo e ironia, Jarmusch retoma a seriedade mística-xamânica-espiritual de Dead Man

A, digamos assim, voz da consciência da narrativa é o ermitão Bob, de Tom Waits. É ele que, à distância observado tudo através dos seus binóculos, faz o diagnóstico e decreta a sentença para os vivos e os mortos.

Os zumbis que tomam a pequena cidade de Centerville vagam pelo lugar que conhecem e começam a repetir as mesmas ações que faziam quando estavam vivos: encontrar uma raquete de tênis para fingir que está jogando, um zumbi arrasta uma guitarra, zumbis crianças invadem uma loja de doces em ruínas, murmurando maravilhados as marcas de chocolates e assim por diante.

Quando atingidos ou decepados, os zumbis não sangram, mas liberam baforadas de fuligem: das cinzas às cinzas, do pó ao pó...

 Por que os mortos não morrem? Porque estão tão apegados ao materialismo que o fascínio consumista permanece mesmo no pós-morte. Voltam à vida atrás do que deixaram, e também para encontrar os vivos tão sonolentos e indiferentes quanto eles. 

Há aqui um eco da alienação gnóstica humana: todos nós estamos dormindo no sono do esquecimento. Na verdade, toda a sociedade seria organizada e colocada em funcionamento para manter todos dormindo – seja pela anestesia ou hiper-excitação criada pelo consumo e entretenimento.

Jarmuschi retorna ao insight político de Romero em 1968, para acrescentar o componente gnóstico: na verdade, vivos e zumbis sofreriam a mesma miséria existencial. Vagam pela crosta da Terra sonolentos, apegados aos seus objetos como náufragos se agarram aos destroços no oceano.



 

Ficha Técnica

 

Título: Os Mortos Não Morrem 

Diretor: Jim Jarmusch

Roteiro: Jim Jarmusch

Elenco:  Bill Murray, Adam Driver, Tom Waits, Chloë Sevigny, Danny Glover, Steve Buscemi, Tilda Swinton

Produção: Focus Features, Kill The Head, 

Distribuição: Universal Pictures

Ano: 2019

País: EUA

 

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