quarta-feira, março 16, 2022

O quebra-cabeça da manipulação tecnocientífica da memória no filme "Ultrasound"


Apesar da identidade ser estável e perene, ela é baseada em sensações frágeis e lábeis que constituem interpretações muito pessoais da nossa verdade: as memórias. É esse paradoxo do psiquismo que se torna o ponto fraco de qualquer manipulação mental. Principalmente por ferramentas tecnocientíficas. Pior ainda se tiver por trás corporações ou governos. “Ultrasound” (2021) é um quebra-cabeça ao estilo de Christopher Nolan em “Amnésia” ou “Inception” que ecoa as conspirações do Deep State da Guerra Fria (e parece que estamos de volta!) de projetos como MK-Ultra e Blue Bird de manipulação mental. O início do labirinto começa com um homem que, numa noite chuvosa, é obrigado a abandonar o carro com pneus furados e pedir ajuda numa casa. Lá encontra um casal amigável e prestativo... mas lembre que em “Psicose”, Norman Bates também era...

Desde que os filmes gnósticos transitaram do tom CosmoGnóstico para Psicognóstico (isto é, do protagonista prisioneiro em mundos tecnológicos virtuais para o prisioneiro no interior dos próprios pesadelos e alucinações), a mente tornou-se um tema recorrente nesse século.

Nas primeiras décadas, os temas PsicoGnósticos ecoavam o projeto tecnocientífico que este Cinegnose denominou como “Cartografias e Topografias da Mente” - filmes como “Vanilla Sky” (2001), “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças” (2004), “Sonhando Acordado” (The Good Night, 2007), “Ciência dos Sonhos” (La Science Dês Revês, 2006), “Alice no País das Maravilhas” (2010) de Tim Burton, “A Origem” (Inception, 2010) e a série televisiva “O Prisioneiro” (The Prisoner, 2009) etc., expressavam no cinema o esforço multidisciplinar do mundo tecnocientífico envolvendo as neurociências, ciências cognitivas, Cibernética, Inteligência Artificial e Teoria da Informação para não só desvendar o funcionamento da mente como também procurar um modelo de simulação que permita não só compreender a dinâmica dos processos mentais e da consciência, mas, principalmente, manipulá-la e controlá-la – clique aqui.

Parece que o esforço de mapeamento da mente das duas primeiras décadas do século (estetizado pelo cinema) conduz nessa década que se inicia a uma segunda fase cuja série Ruptura (2022- ), analisada em postagem anterior (clique aqui), é uma produção que sinaliza isso: depois da cartografia e topografia da mente completas, é o momento de “apertar os botões” dos locais certos do cérebro para obter o resultado desejado – e esses botões parecem conduzir a distúrbios de identidade dissociativa que criam as condições emocionais perfeitas para a manipulação e controle externos. 

O objetivo final: o hackeamento da mente por corporações, movimento políticos, Governos etc.

O filme Ultrasound (2021), estreia no cinema do diretor Rob Schroeder, é mais um filme sobre a mente e suas prisões interiores. Se em Ruptura, o processo dissociativo é mediante uma invasiva inserção cirúrgica de um chip no cérebro, em Ultrasound a operação é fenomenológica, porém não menos invasiva, e mais profunda: a manipulação e inserção de memórias.

O filme é baseado na HQ “Generous Bosom”, do escritor Conor Stechschulte, que também escreve o roteiro de Ultrasound.

O fato da nossa identidade estar baseada na memória (é, afinal, o que nos distingue das máquinas – por isso, nunca precisamos ser “reinicializados”) reside num paradoxo: como nossa identidade, estável e perene (necessária para desempenharmos nossos papéis na sociedade) pode ser construída por sensações tão lábeis e fugidias? – sensações táteis, cheiros, pregnâncias perceptivas (gestalts). Que formam multicamadas de imagens e ressonâncias.

Por ser uma coisa inconstante e uma interpretação profundamente pessoal da nossa verdade, seria o flanco mais aberto para qualquer manipulação externa de um indivíduo. Afinal, apesar de serem frágeis e fugidias, é nelas em que confiamos o que somos.

Como o próprio nome do filme indica, Ultrasound trata de protagonistas prisioneiros em memórias manipuladas não por neurocirurgias. Mas por algo tão sutil como as memórias: sons – ondas, tons, espectros sonoros. 




O que torna o filme um verdadeiro quebra-cabeça não só para os protagonistas como para os próprios espectadores, lembrando a narrativa assíncrona dos filmes de Nolan como Amnésia ou Inception e Michel Gondry de Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças. Labirintos e ambiguidades percorridos por narradores não confiáveis, exigindo total atenção de todos os detalhes das cenas.

O Filme

Ultrasound é um gênero híbrido e obscuro, um low sci-fi com uma narrativa em slow burning que exige do espectador paciência para entender o que está acontecendo – na verdade, nem os próprios protagonistas sabem, criando no espectador uma verdadeira experiência labiríntica imersiva.

O filme começa numa típica introdução como fosse um clássico terror ou suspense. Na verdade, uma pista falsa entre inúmeras: em uma noite escura e tempestuosa, Glen (Vincent Kartheiser) dirige sozinho em uma estrada deserta na chuva. Ao passar por cima de alguns pregos, percebe que os pneus furaram de uma maneira irreparável. Glen abandona o carro e procura abrigo em uma casa próxima. As pessoas lá dentro, Art (Bob Stephenson, o grande ator do filme) e Cyndi (Chelsea Lopez), um casal que parece amigável. Mas lembre que em Psicose, Norman Bates também era. Logo percebemos que também os anfitriões parecem desequilibrados e desonestos.




Logo percebemos que há algo estranho: Art fala e bebe demais e... oferece a própria esposa para Glen. Ele fica perplexo e desconfiado. Porém, a excentricidade de Art faz topar o convite e vai para o quarto onde Cyndi o espera. 

Glen acorda no dia seguinte, para não encontrar mais ninguém naquela casa. Volta para casa, mas Art de alguma maneira consegue encontrá-lo, para mostrar para ele um vídeo com Cindy agora grávida.

Essas sequências estão repletas de inconsistências e assincronias (ora, Cindy aparece com a barriga de grávida, ora não).



Evitando ao máximo incorrer em spoilers, no segundo ato do filme encontramos Glen em outra situação: como cobaias em um experimento cuja assistente é Shannon (Breeda Wool) em um laboratório, no melhor estilo dos filmes de Cronenberg, que desempenhará um papel fundamental na parte mais focada do filme quando finalmente o espectador une as peças do quebra-cabeça.

Shannon será o motor do terceiro ato: a descoberta de que aquele laboratório, no qual aprimora o controle mental e comportamental por meio de ondas sonoras (muitas delas, abaixo do espectro normal de audição), na verdade está desenvolvendo uma arma com aplicações políticas e militares para corporações e o próprio Governo – aqui encontramos ecos da teorias conspiratórias dos projetos de Deep State na era da Guerra Fria como os Projetos MK-Ultra e Bluebird: criar artificialmente distúrbios de identidade dissociativa para criar “candidatos manchurianos” – gatilhos hipnoticamente inseridos na mente para criar assassinos e até soldados que ignorem o medo e a fadiga.




Ultrasound é estruturado como uma memória: nunca está totalmente enraizado em um tempo ou lugar, mas flui livremente, levando a mente a uma longa jornada para um destino desconhecido.  “Ultrassom” é um quebra-cabeça, mas com conspiração política, além de confrontar traumas pessoais em seu núcleo. Os pontos fracos para a manipulação mental.

Mais do que isso, Ultrasound confronta a total violação da autonomia corporal que cada personagem sofre nas mãos daqueles que moldam suas memórias. Glen realmente acredita que não pode andar. Uma mulher chamada Katie (Rainey Qualley) está totalmente convencida de que está grávida. 

Esses momentos empurram o filme para um campo perturbador, mostrando toda a extensão de quão fácil pode ser convencer a mente de uma nova verdade. 

Sim, isso pode ser ficção científica, mas entre a natureza da baixa tecnologia do dispositivo que cria a frequência e as histórias anteriores de lavagem cerebral na História, os eventos em Ultrasound não parecem muito forçados. É assustador.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Ultrasound 

Diretor: Rob Schroeder

Roteiro: Conor Stechschulte

Elenco:  Vincent Kartheiser, Breeda Wool, Chelsea Lopez, Tunde Adebimpe, Bob Stephenson

Produção: Lodger Films

Distribuição: Magnolia Pictures

Ano: 2021

País: EUA

 

Postagens Relacionadas


Memória, identidade e controle mental no filme “Upstream Colour”



Tecnologias nos deixam vulneráveis à pandemia do esquecimento em “Memórias do Amor”



Geografias interiores: cartografias e topografias da mente



“Black Box” e a endocolonização: “Total Recall” se encontra com “Corra” e “Amanésia”


 

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review