O final do milênio criou um zeitgeist que parecia despertar crenças milenaristas medievais: seitas esotéricas ou ocultistas, envolvendo suicídios coletivos, começaram a pipocar em várias partes do mundo. E na cultura pop, Nostradamus e profecias sobre o fim do mundo (inclusive o Y2K, o “bug do milênio”) estavam em alta. Não foi por acaso que as mitologias gnósticas chegaram ao mainstream hollywoodiano, consolidando o gnosticismo pop em filmes como “Show de Truman” e “Matrix”. É neste espírito de final do século XX que se inspira a série Netflix espanhola “Feria: Segredos Obscuros” (2022). Em 1995, uma pequena cidade é atingida por um evento inexplicável: 23 pessoas aparecem mortas junto a uma antiga mina, envolvendo algum tipo de seita ocultista. Repleta de alusões ao Gnosticismo, a série tenta combinar a mitologia gnóstica com todos os tropos dos filmes sobre seitas e cultos: sacrifícios de sangue, sexo ritual, morte, portais interdimensionais etc. E até uma metáfora política do regime franquista na Espanha.
Com a aproximação da virada do milênio, houve uma série de eventos ao redor do mundo envolvendo seitas, cultos e mortes. Em 1997, quando o cometa Hale-Bopp estava no brilho máximo, a polícia encontrou em uma mansão em San Diego, Califórnia, encontrando os corpos de 39 mortos de uma seita chamada Heaven’s Gate – suicídio coletivo com motivações místicas: acreditavam que suas almas seriam levadas por um disco voador oculto pela calda do cometa.
Em 1998 a polícia espanhola conseguiu impedir que 32 membros de uma seita cometessem suicídio coletivo junto ao vulcão Teide. Acreditavam que um disco-voador viria resgatar os cadáveres antes do fim do mundo. Quatro anos antes, 23 membros da seita Ordem do Templo do Sol cometeram suicídio na Suiça, em uma fazenda no Cantão Friburgo.
O final do milênio criou um zeitgeist apocalíptico, com sinistras profecias como o Bug do Milênio Y2K (o caos que seria provocado em sistemas informatizados na passagem de 1999 para 2000) e as profecias de Nostradamus a cerca do fim do mundo que voltaram a emergir na cultura pop – cinema, literatura, HQs etc.
Não foi por menos que o mainstream hollywoodiano passou a se interessar pela mitologia gnóstica que, até então, inspirava diretores, roteiristas e escritores cults, de livros de Philip K. Dick a filmes como Zardoz ou O Homem Que Caiu na Terra. A partir de Dead Man (1995), com Johnny Depp, o Gnosticismo Pop invadiu a cultura popular, cujo auge foram filmes como Show de Truman e Matrix, no final do século.
Afinal, uma mitologia marcada por conspirações cósmicas que aprisionam o homem em realidades ilusórias, universos paralelos, amnésia e paranoia cairia muito bem no espírito de época marcado pela ansiedade e temor atávicos pela virada do milênio - combinado com uma invasiva tecnologia digital que dissolvia a realidade analógica em bites.
Foi inspirado nesse espírito de final de milênio que dupla de diretores e roteiristas espanhóis Carlos Montero e Augustín Martinez criaram a série Netflix Feria: Segredos Obscuros (2022- ), uma mistura de trama policial, dramas adolescentes e uma seita com cultos envolvendo uma colcha de retalhos de elementos, bíblicos, católicos e gnósticos.
Zahara de la Sierra, um dos mais belos vilarejos de Cádiz, torna-se “Feria”, uma pequena cidade pacífica e economicamente decadente atingida por um incidente inexplicável: 23 pessoas aparecem mortas junto a uma antiga mina, envolvendo algum tipo de seita ocultista que, aparentemente, ninguém da localidade sabe a respeito.
Feria, uma cidade que já viveu seus melhores dias de riqueza em torno da mineração, vê em 1975 a mina ser fechada pelo governo do General Franco (no mesmo ano da morte do caudilho). Porém, a velha mina não gerava apenas dinheiro e empregos. Era também o local de um templo secreto de uma seita cujo substrato filosófico é o Gnosticismo.
A série investe em todos os tropos clássicos de filmes sobre seitas e cultos sinistros: adolescente virgem que deve ser ofertada em sacrifício de sangue, sexo ritual, portais que devem ser abertos para o outro mundo, um pequeno vilarejo com moralidade hipócrita, corpos receptáculos de demônios, símbolos coptas representando selos que deverão ser abertos, numa espécie de contagem regressiva para o fim do mundo – é o que almeja a seita, já que este mundo não passa de uma ilusão e o corpo apenas um invólucro de carne que aprisiona a Luz espiritual.
Porém, para os estudiosos do Gnosticismo, a série é muito mais a fotografia de um zeitgeist (a ação se passa em 1995) do que uma descrição fiel da mitologia gnóstica. Principalmente porque sabemos que, embora a base do ocultismo Ocidental, o Gnosticismo nunca teve a ver com seitas, cultos ou cerimônias – aliás, sempre foi historicamente avesso a tudo isso. Por isso sempre habitou o underground, perseguido pelo Catolicismo hegemônico e apropriado por correntes espiritualistas como a Teosofia de Blavatski ou o Ocultismo de Aleister Crowley.
A Série
A história começa em 1995, em uma pequena vila remota, mas pitoresca, chamada Feria. Por ocasião de uma festa na aldeia, as duas irmãs Eva (Ana Tomeno) e Sofia (Carla Campra) passam a noite com amigos no bosque que circunda a vila. Nenhuma delas sabe que, após se despedir dos pais, algo estranho está acontecendo em casa.
No dia seguinte elas voltam para casa e nota a ausência dos pais, Elena (Marta Nieto) e Pablo (Ernest Villegas). Quando aguardam preocupadas a volta dos pais, são surpreendidos pela entrada na casa de um grupo de policiais armados até os dentes. A invasão é liderada por um comissário que veio diretamente de Madrid, Guillén (Isak Férris) – há uma forte suspeita que seus pais seriam responsáveis pelo um suicídio coletivo que ocorreu em uma mina próxima, fechada desde o ano da morte do General Franco.
Algumas horas antes, 23 cadáveres foram encontrados na entrada da mina: pessoas que – além de uma mulher, mãe de uma amiga íntima de Sofia – não moravam na aldeia e cuja identidade ainda é desconhecida. De acordo com o vídeo de vigilância, os pais de Eva e Sofia acompanharam as vítimas até a mina. Pablo acompanhou a entrada de todos e foi embora. Mas Elena os acompanhou para dentro, para depois desaparecer sem deixar rastro.
Após a chegada de uma grande força-tarefa policial, chega o circo midiático que transforma a cidadezinha de Feria na atração de programas sensacionalistas da TV espanhola. Como é lógico imaginar, a vida das duas adolescentes imediatamente muda radicalmente: no vilarejo elas são vistas com desconfiança e a polícia acredita ser impossível que elas não soubessem nada sobre a seita religiosa a que os pais pertencem, como descobriram. Depois de serem encontradas cartas de mais de dez anos encontradas entre os objetos de Elena, uma realidade extremamente complexa e perturbadora vem à tona: numerosos seguidores do Culto da Luz acreditavam que as mulheres eram a “chave” para abrir um portal entre o nosso mundo, considerado uma realidade ilusória criada por um deus menor (o Demiurgo Yaldabaoth), e o “Reino”, a verdadeira realidade, onde não há dor, culpa, medo e nem mesmo amor e paixão.
Com o desaparecimento de Elena, porém, para os seguidores da Luz as coisas ficam mais complicadas: devem de fato descobrir quem é capaz de substituí-la e desbloquear cinco selos mágicos, abrir o portal para o Reino e uma nova vida.
Será que, para além dessa porta, escondido nas profundezas da mina, há realmente um paraíso escondido ou é apenas um inferno disfarçado com outro nome? Será que a abertura desse portal desencadeará tão somente o fim do mundo? Caberá às irmãs descobrirem, especialmente porque Sofia pode ser a nova chave para desbloquear os selos, a nova Elena que os membros da seita precisam.
David Lynch e Gnosticismo
Feria: Segredos Obscuros lembra bastante a maneira como David Lynch retratou uma pequena cidade norte-americana no clássico Veludo Azul (1986) – uma investigação policial leva um jovem casal a descobrir um submundo de crimes e drogas por trás de uma cidade com cercas floridas e famílias religiosas e aparentemente honestas.
A série faz essa mesma desconstrução, ligando o conservadorismo católico a era do caudilho general Franco e a hipocrisia moral: um padre pedófilo que secretamente participa da seita herética e o envolvimento de membros da elite política do vilarejo nos rituais secretos desde 1975.
Na medida em que os episódios evoluem (oito episódios nessa primeira temporada) acompanhamos um conjunto de alusões ao Gnosticismo: Eva (o personagem bíblico numa releitura gnóstica), Sofia (o Divino Feminino gnóstico que, tal qual o Aeon que decaiu no mundo material, e que busca iluminar as almas humanas para que transcendam esse cosmos), um drug dealer participante da seita chamado Mani (alusão ao filósofo gnóstico do século III criador da vertente do “maniqueísmo”) e o avô de Sofia e perseguido político do franquismo, Valentim (teólogo gnóstico do século II).
Chegamos a ver a psicóloga que acompanha as investigações policiais folheando o livro “Evangelhos Gnósticos” de Elaine Pagels.
As alusões gnósticas chegam ao ápice quando chegamos a uma atmosfera ao estilo das obras de Philip K. Dick: mais do que uma ilusão, a realidade é uma armadilha de sucessivas reencarnações – “nascer, amar, adoecer e morrer”, referência à serpente mítica que morde a própria cauda, Ourobouros, ou o conceito budista da “Roda do Sansara”: o fluxo contínuo de dor e sofrimento nas sucessivas encarnações.
Porém, as referências gnósticas acabam enredadas nos tropos tradicionais dos filmes sobre seitas fanáticas. Daí percebemos que o substrato gnóstico na série serve apenas de chamariz (ou verniz místico) para justificar o fanatismo letal de uma seita de malucos que brincam com um perigo real: abrir o portal não para o “Pleroma” (para os gnósticos, a Luz que existe “acima” desse mundo), mas para o próprio Inferno de onde poderá emergir o próprio Yaldabaoth em “pessoa”. Para impor um mundo de terror, pior ainda que o franquismo na história da Espanha.
Portanto, o leitor interessado em conhecer melhor o Gnosticismo deve ter cuidado. Como retrato do espírito do tempo de final de século ou metáfora política da Espanha, a série é perfeita. Mas totalmente superficial ao tentar fazer um mix entre a mitologia gnóstica com os clichês dos filmes de terror envolvendo seitas, sexo e morte.
Ficha Técnica
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Título: Feria: Segredos Obscuros |
Diretor: Augustín Martínez e Carlos Montero |
Roteiro: Augustín Martínez e Carlos Montero |
Elenco: Carla Campra, Ana Tomeno, Isak Férriz, Marta Nieto, Ernest Villegas |
Produção: Filmax |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2022 |
País: Espanha |