quinta-feira, março 10, 2022

As tiranias tecnológicas da empresa moderna na série "Ruptura"




Chega de tentar equilibrar as exigências do trabalho com a vida pessoal. Chega de estresse e burnout. Chega de levar problemas para casa. Chega de ficar depressivo no domingo com medo da segunda-feira. Na série Apple TV+ “Ruptura” (“Severance”, 2022- ) esses problemas terminaram. Ou aparentemente. Afinal, como o bom e velho Freud dizia, o reprimido sempre retorna. Em um futuro próximo uma revolucionária técnica neurocirúrgica chamada “Ruptura” cria dois selfs totalmente incomunicáveis em funcionários de uma misteriosa corporação: o eu da vida pessoal não lembra do eu que trabalha na empresa. É como vender parte de si à corporação. A série “Ruptura” é uma espécie de “The Office” hipo-utópico: revela desde as suaves tiranias dos escritórios modernos até o grande projeto de engenharia social do Capitalismo: controlar o tempo livre dos indivíduos através do esquecimento.

Em 1953, o escritor assumidamente gnóstico, Philip K. Dick, publicou o conto “Paycheck”, antecipando dos temas anticapitalistas e antiautoritários que marcariam suas obras nas décadas seguintes – um homem chamado Jennings acorda sem a memória dos últimos dois anos em que trabalhou para uma misteriosa corporação. Aparentemente seu eu anterior concordou em ter a mente apagada após o trabalho, para garantir os segredos corporativos. O Jennings atual não entende o porquê de ter aceitado isso. Mas concorda: “Talvez não tenha sido tão ruim, afinal... Quase como ser pago para dormir... É como vender parte de si mesmo, da sua própria vida. E a vida vale muito nos tempos atuais”.

Como sempre, PKD foi profético quanto a importância estratégica da manutenção dos segredos corporativos e do apagamento individual cada vez mais valorizado numa cultura organizacional marcada pelo espírito da “inteligência emocional”: saber trabalhar em equipe, ter resiliência diante do stress e a capacidade de criar o autodistanciamento necessário que possibilite a clivagem entre o eu da vida privada e do tempo livre, e o eu organizacional, profissional.  

Essa divisão do eu na chamada “inteligência emocional” (conjunto de técnicas de controle das emoções e sentimentos pessoais para alcançar a motivação, liderança, cooperação etc. no mundo do trabalho) é a última novidade de uma luta histórica do Capitalismo contra o indivíduo, mais precisamente à sua liberdade e autonomia conquistada com o tempo livre – tempo conquistado através das históricas lutas pelos direitos trabalhistas, que garantiram o espaço de tempo em que o indivíduo está livre do ritmo e controle do patrão e do capital.

O tempo livre sempre foi uma dor de cabeça para a disciplina fabril: fora do mundo do trabalho, o operário poderia tomar contato com ideias “perigosas” (sejam políticas, morais, religiosas ou éticas) que o faria questionar as metas e interesses do capital. Ou do próprio ritmo em si do trabalho: disciplina, obediência cega, foco, motivação, determinação etc.

Por isso, o Capitalismo criou a Indústria Cultural: para, subliminarmente, através do entretenimento, incutir nos corações e mentes dos espectadores, a mesma lógica do mundo do trabalho. Mas, mesmo assim, essa engenharia social ainda dá espaços para a incerteza: e se o trabalhador não quiser assistir os filmes ou os canais de TV certos?


 

A série da Apple TV + Ruptura (Severance, 2022- ), criada pelo showrunner Dan Erickson e parcialmente dirigido por Ben Stiller, combina a premonição de PKD com a atmosfera excêntrica e estranha de uma onipresente corporação que transformou o dispositivo de “Paycheck” um dispositivo cotidiano e legalizado – a técnica de “Ruptura” no qual, através de uma cirurgia, o cérebro é dividido entre o trabalho e a vida pessoal. 

Dois selfs incomunicáveis, o lado “innies” (o eu do trabalho) e o “Outies” (a vida do lado de fora da empresa). Aparentemente um doce negócio, já que cada funcionário grava um vídeo para o seu lado “inne” saber que o “outie” aceitou os termos do contrato de trabalho por livre e espontânea vontade. Tudo parece ser um doce negócio, quase como se estivesse sendo “pago para dormir”, como ironizava PKD. Chega de se esforçar em equilibrar as exigências do trabalho com a vida pessoal. Chega de estresse e burnout. Chega de levar problemas para casa. Chega de ficar depressivo no domingo com medo da segunda-feira. 

Porém, a primeira temporada da série irá mostrar que as coisas não funcionam tão bem assim. Como o bom e velho Freud dizia, o reprimido sempre retorna...




A Série

Tudo começa quando conhecemos a nova funcionária da Lumon Indistries, Helly (Britt Lower). Ela desperta com estupor anestésico sobre a mesa de uma sala de reuniões, sem memórias de como parou ali. Diante dela, apenas uma pequena caixa de som de onde sai perguntas aparentemente aleatórias. “Eu estou morta?”, reage Helly, para depois ver a si própria em um vídeo em que explica sua aceitação ao procedimento de “Ruptura”.

Quando os funcionários entram no misterioso conglomerado da Lumon (ninguém sabe, afinal, o que a Lumon produz), um interruptor literalmente é acionado enquanto se movem entre os andares, ativando um implante colocado no cérebro. Quando o funcionário vai para casa às 17h15, suas memórias da vida pessoal são restauradas, enquanto qualquer lembrança da Lumon é bloqueada.

Então conhecemos Mark (Adam Scott), o novo chefe do Departamento de Refinação de Dados (outro trabalho aparentemente sem sentido, que consiste em caçar números numa tela e colocá-los na lixeira do computador), que aparentemente aceitou a Ruptura para criar um segundo eu livre do trauma da morte da sua esposa num acidente. 

Mark chefia um departamento com funcionários que trabalham satisfeitos em seu escritório retrominimalista, classificando os números no terminal de um computador vintage. Neles encontramos todos os arquétipos dos sitcons sobre escritórios: Irving (John Torturro), um veterano certinho; Dylan (Zach Cherry), um brincalhão cínico; e o próprio Mark, um cara legal lutando com as reponsabilidades que herdou, depois que o ex-líder da equipe (Yull Vasques) desapareceu de repente – esse será o drive de toda a conspiração que ronda a Lumon.



Helly (interpretado por Lower com uma notável intensidade nervosa) será a ovelha negra da equipe: apesar dos treinos, exercícios de ligação e punições na “sala de descanso” (uma espécie de solitária, na qual a vítima se submete a exercícios de lavagem cerebral), ela tenta de todas as maneiras se demitir, enquanto questiona a atmosfera surreal e kafkiana daquela corporação.

As forças contra ela incluem uma chefe ao mesmo tempo inexpressiva e aterrorizante, Harmony Cobel (Patricia Arquette); políticos que pressionam para ampliar o uso da tecnologia de ruptura; e os eus fora do escritório.

Brincalhão e mordazmente engraçado, Ruptura é como um pesadelo projetado pelo diretor/roteirista Charlie Kaufman, desde o cenário ameaçador de um escritório de meados do século passado, até a maneira como descreve a vida hermética dos innies.

Um dos pontos altos da série é como figura as tiranias suaves do local de trabalho moderno. Trabalhadores problemáticos recebem uma sessão com um conselheiro de “bem-estar” (Dichen Lachman), que os acalma com curiosidades reconfortantes sobre a vida dos seus outiers lá fora. O assustadoramente alegre responsável de RH, Milchick (Tramell Tillman), concede pequenas vantagens como uma sessão de dança de cinco minutos ou uma “festa de waffle”, uma recompensa patética, mas que se torna pungente quando percebemos que os dias dos innies se resumem a uma rotina entediante: começa no café da manhã e termina antes do jantar.




Nos cinco episódios até aqui disponíveis (são liberados semanalmente), percebemos que a Lumon não se contenta apenas com o processo de ruptura. Precisa se garantir também no outro lado: vigiar a vida dos outiers: os funcionários da empresa moram num pequeno subúrbio de classe média criado pela própria Lumon. Lembrando as indústrias inglesas da Era Vitoriana que construíam vilas operárias, ao lado da fábrica, manter os trabalhadores sob o guarda-chuva da vigilância – principalmente, evitar contatos execissivos com sindicalistas e anarquistas.

Esse ponto da série lembra precisamente as origens da Indústria Cultural no Capitalismo: com o crescimento do tempo livre dos trabalhadores (com o desenvolvimento tecnológico e conquistas de direitos trabalhistas), deixá-los por muito tempo livres poderia resultar em sérios problemas de disciplina no trabalho.

Simplesmente, os meios de comunicação e a indústria do entretenimento vieram terceirizar esse serviço de vigilância fabril do Capitalismo da Era Vitoriana.

O que torna a série Ruptura mais um exemplo da hipo-utopia na ficção-científica: paradoxalmente, um sci-fi sem futuro: os futuros hipo-utópicos retratados são sempre próximos ou retro, pois são projeções hiperbólicas das mazelas já existentes no presente.

Afinal, a técnica de Ruptura mostrada na série é a realização tecno-científica de todo esforço da psicologia e neurociências em tornar o trabalhador “focado” de tal maneira que ele lide de forma “inteligente” com os perrengues emocionais, éticos ou morais. 

Porém, o reprimido sempre retorna: o mal-estar sempre vem à tona na sensação de alienação e estranhamento, tema central na série. Simbolizado no enigma do conglomerado Lumon. No meio de tantos escritórios e departamentos com trabalhos absolutamente sem sentido, sempre vem a pergunta: afinal, o que a Lumon produz?



 

Ficha Técnica

 

Título: Ruptura (série)

Diretor: Ben Stiller

Roteiro: Dan Erickson

Elenco:  Adam Scott, Zach Cherry, Britt Lower, Christopher Walken, Patricia Arquette, John Torturro

Produção: Endeavor Content, Red Hour Films

Distribuição: Apple TV +

Ano: 2022

País: EUA

  

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