O final do domingo mais uma vez revelou, no programa de maior audiência da Globo, o Fantástico, a estratégia morde-assopra da grande mídia em estreita parceria com a psy-op militar. De novo, o experiente jornalista Álvaro Pereira Jr. foi convocado: dessa vez contra a China – em programa anterior foi a Rússia e a “pouco transparente” vacina Sputnik V. A matéria dá uma mãozinha à conspiração de que a Covid-19 “escapou de um laboratório na China”, com direito a personagem macabro: a “mulher morcego”. Efeito metonímico: o reforço do “hoax” da guerra bacteriológica comunista. Certamente Trump e Bolsonaro compartilhariam nas suas redes sociais a matéria global. Cadê o discurso da “Ciência” e do “mais vacinas, sem ideologia”? Atrás desse “morde-assopra” esconde-se o momento atual da escalada militar até entre as potências centrais do Capitalismo: o Grande Reset Global que promove a necropolítica e o necrocapitalismo para eliminar o refugo social – aqueles que nem para serem explorados servirão.
Até aqui a linha editorial da grande mídia, e em particular da Globo (emissora supostamente oposicionista e alvo do ódio bolsominion com o "#GloboLixo"), vem repetindo a afirmação de que pouco importa especular sobre a origem da Covid-19: essa obsessão só alimentaria teorias conspiratórias e polarizações – o que importa mesmo é a vacina, seja de onde vier. Viva a Ciência e nada de ideologias.
Porém, o programa Fantástico desse último domingo mais uma vez fez o experiente jornalista Álvaro Pereira Jr. pagar mais um mico. Há algumas semanas, no mesmo programa, o jornalista foi até a fábrica que produz a vacina Sputnik V, na Rússia, para forçar uma situação e “dar pernas” a uma não-notícia: junto com seu cinegrafista forçou a entrada no laboratório. Por razões óbvias, a segurança não permitiu.
Forçou um desfecho previsível para comprovar a pauta pré-estabelecida nos aquários das redações da amissora: russos não são confiáveis, não são transparentes, querem sempre esconder algo... Conclusão implícita: o veto da Anvisa contra a Sputnik naquela mesma semana teria, portanto, todo sentido.
E no Fantástico de 06/06/2021, dessa vez o alvo foram os chineses. “O tema voltou a atrair as atenções: qual é a origem do vírus que causa a Covid-19?”, abre com tom incisivo o apresentador Tadeu Schmidt... A sentença genérica e indeterminada (atraiu as atenções de quem?) já é sintomática do que está por vir.
As opções de respostas dada pelo apresentador foram as mais sensacionalistas que fariam vibrar um teórico da conspiração QAnon: “contato de um animal infectado e um ser humano? Ou um acidente dentro de um laboratório na CHINA?”, abre a matéria na qual Pereira Jr. conversa com “cientistas do Brasil e do Exterior”.
O solerte repórter adverte que a matéria “não se trata de teorias conspiratórias malucas como as de Trump e de outros políticos que o seguem (Bolsonaro não é citado)... se trata de Ciência... a gente vai falar, VEJA BEM, da POSSIBILIDADE do vírus da Covid ter escapado de um laboratório...”.
Mas o que vemos adiante são ilações e especulações que seguem o mesmo modus operandi das “teorias conspiratórias” de Trump e Bolsonaro.
A matéria carrega nos recursos retóricos e semióticos: se no plano verbal, tudo é “possibilidade”, no campo retórico-semiótico é certeza: começa falando da “MULHER MORCEGO”, a cientista Shi Zheng estudiosa sobre vírus de morcegos. Repete diversas vezes uma mesma foto da cientista com codinome tão bizarro: ela num traje de proteção dando um aspecto alienígena à figura de apelido assustador.
Numa ilação ainda mais especulativa, fala em “conflito de interesse” envolvendo a equipe da OMS que foi investigar o laboratório da Dra. Shi Zhenj (Instituto de Virologia de Wuhan) e que concluiu que o escape de vírus do laboratório era altamente improvável. E, novamente, o modus operandi de dar pernas a não-notícias: “contatados pelo Fantástico, nenhum dos membros da equipe da OMS foi autorizado ou aceitou dar entrevista...”. Tudo sob um tema instrumental de thrillers de mistério...
Morde-assopra e posicionamento no mercado de notícias
É comovedora a “inocência” de Álvaro Pereira Jr. de que investigadores da OMS irão conceder entrevista ao bel-prazer da grande mídia de um país cujo governo é notório oposicionista das medidas da organização de saúde. Questões geopolíticas. Mas, claro, a Globo está ao lado da “Ciência” sem “viés político”.
Assim como a incensada estrela da CPI da Pandemia (ou será do Genocídio?), a infectologista Luana Araújo, bolsonarista que numa clara estratégia de reposicionamento de discurso para ganhar a atenção das câmeras (assim como o influencer Felipe Neto, preocupado com baits e engajamento), criticou o tratamento precoce como “delirante, vanguarda da estupidez” – impressionante como as platitudes metodológicas ditas pela articulada dra. Luana soaram como pérolas de sabedoria. Também pudera: na atmosfera tão obscurantista que sufoca Brasília, é muito fácil tornar-se um sábio...
Como este Cinegnose vem observando desde o início desses tempos bicudos, a Globo adota uma estratégia de morde-assopra, principalmente desde que a CNN Brasil iniciou suas operações.
Na verdade, uma estratégia de posicionamento no mercado de notícias: enquanto a CNN cria simulacros de debates “democráticos” (na verdade ringues de luta no qual um incauto convidado enfrenta luminares da emissora como Caio Copolla e Alexandre Garcia) para encobrir sua vocação “chapa-branca”, a Globo (e, em particular, o canal fechado Globo News) cria a imagem de intocável oposicionista de Bolsonaro.
Morde-assopra e guerra semiótica criptografada
O jornalismo da Globo participa intimamente da guerra semiótica criptografada de embaralhamento das informações. Em última instância, dá uma luxuosa ajuda às psyops militares.
Jogo proposital de contradições para criar dissonância cognitiva e desinformação. Defende máscaras e distanciamento/isolamento social. Mas silencia diante das imagens diárias de transporte público lotado, enquanto estigmatiza o lazer dos pobres como “pancadões” e praias populares.
Faz tímidas observações diante das imagens da elite aglomerando nas ruas da cidade turística de Campos de Jordão, mas é implacável com as ruas de comércio popular no Centro de São Paulo cheias, nas quais “empreendedores” tentam sobreviver a tudo.
Apoia acriticamente a estratégia “semafórica” de mudanças de cores sucessivas das fases de contenção da pandemia (o “abre e fecha”) dos governos estaduais e condena comércio que abre ilegalmente – como se alguém conseguisse entender a biruta de aeroporto das estratégias sanitárias.
Condena a ausência de vacinas, mas fala pomposamente em “Programa Nacional de Vacinação” (PNI) – dando destaque a drive-thrus e pessoas sortudas mostrando para a câmera o certificado de vacinação... em caprichadas matérias motivacionais com trilha musical inspiradora.
E exibe uma matéria no programa de maior audiência da emissora que, tranquilamente, seria compartilhada por Trump e Bolsonaro em seus perfis nas redes sociais. Apesar de repórteres e apresentadores repetirem o mantra diário “que venham as vacinas!” e defenderem a “Ciência” contra as “teorias conspiratórias”.
Grande mídia está perfeitamente integrada nesse jogo perverso de embaralhamento e dissonâncias que começa com o próprio governo diante do qual simula fazer oposição: enquanto o ministro da saúde defende máscaras e distanciamento, o presidente aglomera sem máscara em eventos anti-democracia; “escritórios paralelos” infiltram kits de tratamento precoce no SUS, enquanto criam PNI com cronogramas confusos, com novos “grupos prioritários” que surgem da noite para o dia, exigindo pré-cadastramento em aplicativos tecnologicamente instáveis...
Necrocapitalismo e Necropolítica no Grande Reset Global
O que há por trás desse verdadeiro “escritório das sombras”? - o jogo combinado Governo/grande mídia: o simulacro da linha editorial de oposição.
Duas pistas: primeiro, a críptica afirmação do comentarista carniceiro neoliberal da Globo, Carlos Alberto Sardenberg, na sua coluna na rádio CBN: “as reformas estruturantes liberais necessitam de um Executivo forte” (09/05), ao comentar as dificuldades de o ministro Paulo Guedes tocar rapidamente sua agenda de reformas e privatizações no Congresso, antes das eleições.
E segundo, os analistas da grande mídia e o mercado comemoram surpresos o aumento do PIB de 2,31% no primeiro trimestre de 2021, projetando expectativa para 4,35% nesse ano. Tudo isso num país com 15 milhões de desempregados (subnotificados), inflação crescente, dólar alto, juros com viés de crescimento e desindustrialização acelerada – agora com o anúncio da Canon que fechará sua fábrica no Brasil, depois da Ford, LG e Sony.
Sardenberg quer dizer que todas as reformas orientadas pela cartilha confeccionada por Milton Friedman e seus “Chicago boys” somente foram aplicadas em ditaduras (o eufemístico “Executivo forte”), como a do Chile do general Pinochet. E o otimismo do mercado pelo crescimento paradoxal do PIB numa conjuntura de crise econômica e inflação somente quer dizer uma coisa: a pandemia abriu a janela de oportunidades para as reformas que estão possibilitando a concentração de riquezas mais brutal da história moderna.
Mas esse jogo de morte-assopra que a grande mídia opera em conjunto com a psyop militar (inclusive performando o simulacro da crise militar supostamente criada por Bolsonaro para que as Forças Armadas figurem com legalistas e salvadoras da Nação) vai muito além de uma simples guerra semiótica para que as Forças Armadas realizem o projeto do partido militar realizar um golpe pelas vias democráticas formais – um golpe híbrido, bem diferente dos golpes old fashion dos anos 1960-70 na América Latina – sobre isso clique aqui.
Outra pista nos é oferecida por Jeferson Miola, integrante do Instituto de Debates, Estudos e Alternativas de Porto Alegre (Idea). Para ele, a escalada militarista não está ocorrendo apenas no Brasil: há uma conexão entre o caso brasileiro e “lógicas militaristas” também em crescimento em potências centrais do capitalismo como França, Alemanha e EUA – clique aqui.
Por exemplo, na Alemanha há uma infiltração cada vez maior de extremistas nazistas nas forças policiais e militares, inclusive de elite. Enquanto na França militares da reserva defendem uma intervenção militar “para salvar o país”. Mas salvar do quê? De muçulmanos, imigrantes, refugiados e das “concessões feitas ao islamismo”.
Enquanto nos EUA, Trump cogitou usar a maior potência militar do planeta contra o seu próprio povo, durante os protestos pelo assassinato de George Floyd.
Baseando-se nos estudos de Marildo Menegat, da UFRJ, Miola aponta que a “escalada militar” (e acrescentaria, da extrema-direita) está conectada com o atual estágio de ultra-financeirização do capitalismo que progressivamente cria um enorme contingente que deixou de ser o clássico “Exército Industrial de Reservas” – os desempregados que no capitalismo clássico tinham duas funções: arrochar os salários no mercado e mão de obra de reserva reaproveitável num eventual aquecimento econômico.
Esse novo estágio do capitalismo também está sendo nomeado como “Quarta Revolução Industrial” ou, como messianicamente define o fundador do Fórum Econômico Mundial, Klaus Schwab, “O Grande Reset Global”.
Seja qual for o nome, são diferentes rótulos eufemísticos para encobrir uma dramática realidade: a reestruturação radical nas formas de produção de mais-valia e valor está criando um enorme contingente de seres humanos descartáveis porque nem para serem explorados servirão mais. Uma realidade que projeta a curtíssimo prazo o aumento de conflito, tensões e violência num mundo de crescente miséria e fome.
O Exército Industrial de Reserva desapareceu para no lugar se transformar em refugo humano: os excessivos, redundantes, indesejáveis, deslocados: desempregados crônicos, economicamente desalentados, deficientes, refugiados, imigrantes, aposentados etc.
O que acompanhamos é o fim do pacto na luta de classes que representou o chamado Welfare State do pós-guerra: a ultra-financeirização, com a passagem do dinheiro eletrônico para o digital, turbina ainda mais a espiral especulativa que não precisa mais do trabalho humano para produzir valor.
Logicamente, sem subverter o conceito de valor-trabalho de Smith e Marx: a ultra-financeirização é a estratégia de concentração violenta de riqueza e poder até a próxima crise financeira provocada por uma gigantesca massa de riqueza gerada sem lastro. Até surgir um novo salto, análogo ao dinheiro digital atual – um futuro quark coins?
Portanto Necropolítica e Necrocapitalismo se tornam políticas públicas como nova engenharia social para implantar essa “Quarta Revolução Industrial”
(a) Necropolítica: O sociólogo camaronês Achille Mbembe define “Necropolítica” como a última forma de dominação que reside no poder em determinar quem deve viver e quem deve morrer. A necropolítica determina quais vidas serão mais ou menos vulneráveis.
(b) Necrocapitalismo: James Tyner aponta para uma dinâmica muito além da questão do “deixar morrer”. A morte torna-se lucrativa: é o “Necrocapitalismo”. Em seu livro “Dead Labor: Towards a Political Economy of Premature Death” (University Minnesota Press, 2019), Tyner descreve como a precarização do trabalho no capitalismo expõe cada vez mais o trabalhador precarizado (“figures of dead labor”) à morte e violência. Nesse contexto, as vidas mais vulneráveis tornam-se mais curtas, e a morte lucrativa. Porque as massivas casualidades da pobreza são banalizadas e a culpa para a ser imputada às próprias vítimas.
Dessa forma, os militares serão convocados para gerir, policiar, reprimir a crise social e eliminar o excedente social. No Brasil assistimos a gênese desse capitalismo de catástrofe, com os militares tomando de assalto o Ministério da Saúde para impor a necropolítica.
Enquanto o “empreendedorismo” (o período transitório antes da morte) é o que restará para os refugos do capital, comandados pela lógica do Necrocapitalismo: formas de trabalho com alta vulnerabilidade e insalubridade (motoristas e entregadores por aplicativo, p. ex.), porém altamente lucrativos para o novo capitalismo de plataforma – uma das meninas dos olhos da “Quarta Revolução Industrial”.
E a grande mídia tem um papel crucial nesse processo: o jogo de morde-assopra e a criação de simulacros de medo, como o de Bolsonaro e a simulação da crise militar em torno de um golpe que já aconteceu e ninguém percebeu.