Onde se encontram a política da Guerra Fria, a corrida entre duas superpotências para conseguir cavar o buraco mais profundo do planeta e a lenda de que de um desses buracos ao invés de serem ouvidos movimentações de terra, ouviram-se sons de gritos e gemidos como se viessem do próprio Inferno?
Esse local existe: a península de Kola, no Círculo Polar Ártico. Em meio à beleza natural estão as ruínas de uma estação científica de pesquisa soviética. É conhecido como Poço Superprofundo de Kola o buraco mais profundo cavado pelo homem na Terra, com 12,2 km de profundidade. Ali uma pesada tampa de metal com grandes parafusos enferrujados lacra o buraco: será que para ocultar algum segredo sombrio?
O fato é que nos anos 60-70, além da corrida espacial entre EUA e URSS, havia uma corrida rumo ao chamado “manto” terrestre – a crosta terrestre é uma fina camada de 40 km até chegar ao manto, com 3.000 km de profundidade. Abaixo dele, o Núcleo da Terra.
Do lado dos EUA, o Projeto Mohole cavava um ponto do oceano, enquanto os soviéticos cavavam na Península de Kola. A perfuração cessou em 1992 quando a temperatura na parte mais profunda do buraco chegava a 180 graus, inviabilizando o funcionamento das brocas.
Em 2013 uma artista plástica holandesa chamada Lotte Geevan fez um experimento: baixou um microfone com escudo térmico captando o som estrondoso do planeta que os cientistas não conseguiram explicar – Lotte descreveu os sons como “a respiração da Terra”.
Mas algumas pessoas acharam que sova como o Inferno. Isso fez surgir a lenda urbana na Internet de que sons de gritos e gemidos viriam do próprio Inferno (tal como descrito pela Divina Comédia, de Dante Aligheri) que os 20 anos de escavação acabaram inadvertidamente encontrando. Áudios adulterados em plataformas como YouTube ajudaram a viralizar ainda mais o hoax. E a coisa só aumentou com notícias de que o buraco tinha sido lacrado pelas autoridades. O que, afinal, tentam esconder?
A produção russa The Superdeep (Kolskaya Sverhglubokaya, 2020) se inspira tanto na história real do poço de Kola quanto na lenda do Inferno sob o Círculo Ártico, com a seguinte sinopse:
O Kola Superdeep Borehole é o objeto secreto de maior escala do país. Em 1984, sons inexplicáveis, como os gritos de muitas vozes, foram gravados a mais de 12 quilômetros de profundidade. Na sequência desses eventos, o objeto foi fechado. Uma pequena equipe de pesquisa desceu abaixo da superfície para descobrir que segredo o poço mais profundo do mundo estava escondendo. O que eles descobriram acabou sendo a maior ameaça da história. E o futuro da humanidade está em suas mãos.
A narrativa se passa nos anos 1980, o que dá a oportunidade do filme explorar a estética soviética rígida e sombria – instalações de pesquisas estéreis e minimalistas, oficiais soviéticos com rostos crispados e ameaçadores, tecnologia e painéis de controle rudimentares e trajes de proteção antiquados o dá ao filme uma assinatura visual bem interessante. Tudo com a trilha de synth pop característica daquela década.
The Superdeep faz alusões explícitas aos clássicos A Coisa, de John Carpenter, e Alien, de Ridley Scott. Isso é importante, pela redefinição da monstruosidade e do Mal: embora a narrativa seja baseada numa lenda irônica (um poço soviético, portanto comunista e ateu, que encontra o próprio Inferno tal qual os católicos imaginam com demônios e pessoas queimando seus pecados em meio as chamas), The Superdeep faz uma releitura pós-moderna: o Mal já não é mais disforme (a monstruosidade tradicional), mas informe através de monstros moles – dismórficos ou com morfologia híbrida ou xenomorfo.
The Superdeep é um exemplo das transformações cineteratológicas – de “Cineteratologia”, a disciplina que estuda as mudanças das representações dos monstros em particular (e do Mal em geral) no cinema como expressão da sensibilidade ou o espírito do tempo de cada momento histórico.
O Filme
A narrativa acompanha Anya (Milena Radulovic), uma epidemiologista que num passado não muito distante participou das instalações médicas das escavações do poço de Kola, envolvendo-se com questões éticas provocadas pelos interesses militares do governo soviético.
Algum tempo depois, Anya comemora o ano novo com sua família, enquanto na TV o presidente Gorbachev faz o tradicional discurso de Ano Novo. Até o telefone tocar e o passado que queria esquecer retornar: um oficial militar a convoca para se juntar a uma missão secreta envolvendo mais uma vez o super poço – foi perdido todo o contato com as instalações subterrâneas e o governo acredita que o experimento científico saiu dos trilhos – assustadores sons de gritos e gemidos parecem vir das profundezas do poço.
Anya se junta a uma equipe militar que a ajudará em sua jornada subterrânea através de elevadores de alta velocidade com uma tecnologia nada confiável. Ao chegar ao destino, é recebida pelo principal cientista da instalação. Ele se propõe a ser o guia para o grupo descer ainda pelos próximos lances de elevadores. Mas, é claro, ele parece ter outros planos: está determinado a enterrar sua assustadora descoberta com todos.
É um clássico em narrativas sci-fi: aquele cientista sabe que o governo soviético tem interesses militares por alguma coisa de sinistra que foi descoberta no fundo daquele poço. Por isso, tudo deve ser feito para que “a coisa” não suba à superfície. Nem que precise soterrar a todos naquele gigantesco buraco.
É quando da ficção científica, The Superdeep desloca-se rapidamente para o horror: há algum tipo de monstruosidade que foi despertada das profundezas. Algo mortal e decidido a subir para a superfície e a única coisa que parece conter a criatura é o permafrost – tipo de solo encontrado no Ártico constituído por terra, gelo e rochas permanentemente congelados.
Cineteratologia dos monstros moles
O curioso em The Superdeep é a releitura que o filme faz sobre lenda urbana dos sons do Inferno de Dante Alighieri da península de Kola.
Na “Divina Comédia” Alighieri imaginava o Inferno dentro do imaginário da monstruosidade clássica: aquelas criaturas excedentes ou excessivas em grandeza ou pequenez: gigantes, centauros, ciclopes; anões, gnomos, pigmeus; com muitas partes corporais em falta como os gastrópodes, isquiópodes etc. Portanto, a teratologia (de “terato”, aquilo que possui deformidade congênita) clássica baseava-se em categorias como o disforme, o mau, o feio, o disfórico.
Além da deformidade, os monstros clássicos eram dotados de uma espécie de “excedência espiritual”: são maus e negativos, moralmente abomináveis e comandados por desígnios malignos dos propósitos infernais. Em síntese, os monstros clássicos poderiam ser chamados de “monstros duros”, seja com uma forma híbrida ou humanoide deformada – havia ainda parâmetros para se medir a “monstruosidade” da criatura: a morfologia e a moral. O monstro é o disforme, o mau e o feio.
Tanto Alien (1979) como A Coisa (1982) podem ser considerados os divisores de água da monstruosidade no cinema ao inaugurar a era dos “monstros moles”: de Alien surgiu a morfologia híbrida envolta em gosma que serviu de modelo para todos os futuros aliens resultantes de manipulações genéticas e zumbis de toda espécie e variações com feridas e pústulas que acabam deixando pelo caminho pedaços dos próprios corpos que, por sua vez, se transformam em ameaças mortais.
Enquanto A Coisa cria os monstros polimórficos, de disseminação viral ou por propagação (esporos, pólen etc.) como modelos de informidade, assumindo a forma que for necessária, de acordo com o corpo do seu hospedeiro.
Mas não só a morfologia é suspensa. Também os parâmetros da moralidade. O Mal deixa de ser imoral para entrar no território da amoralidade: os monstros atuais não são nem bons nem maus: são predadores que, do ponto de vista da performance evolutiva, provam serem fascinantes máquinas de sobrevivência. Daí o interesse corporativo (Alien) e militar (The Superdeep) em usarem esses seres em armas ou ferramentas de conquistas políticas ou de mercados.
Em The Superdeep a monstruosidade se propaga por esporos, cuja engenhosidade evolutiva vê nos humanos o hospedeiro perfeito para subir à superfície e sobreviver ao permafrost, graças ao calor do corpo humano.
Uma colônia ambulante de fungos e bactérias que agrega corpos humanos vivos numa massa de gosma informe, lembrando muito A Bolha Assassina (The Bloob, 1958). A diferença é que no filme russo a “bolha” necessita dos corpos vivos e conscientes. Imagine então a escala de horror das imagens em CGI do filme...
Essa é a sensibilidade do nosso tempo que corresponde à própria viragem do capitalismo: da sociedade organizada pela solidez do fordismo ao capitalismo da financeirização global: a extrema liquidez dos mercados financeiros, altamente competitivos cujas práticas especulativas são amorais, voltadas para a sobrevivência e performance.
Da sociedade organizada em torno da ética do trabalho (da moralidade protestante tão estudada pela sociologia clássica de Max Weber) à sociedade do darwinismo social dirigida pelas categorias amorais como performance, evolução e desempenho.
Ficha Técnica |
Título: The Superdeep |
Diretor: Arseny Syuhin |
Roteiro: Arseny Syuhin |
Elenco: Milena Radulovic, Sergei Ivanyuk, Nikolay Kovbas, Viktor Nizovoy |
Produção: Trio Films, SSB Films, AMedia Studio |
Distribuição: Russian World Vision |
Ano: 2020 |
País: Rússia |