quinta-feira, junho 20, 2019

Livro "A Morte da Verdade: a culpa é dos russos e pós-modernos

A Internet era um sonho do Vale do Silício, um paraíso inspirado na fé pela natureza humana criado por pioneiros tecnológicos. Então, apareceram “agentes mal-intencionados” que deturparam tudo com o pecado – fake news, pós-verdades, obscurantismo e preconceitos. Na capa do livro que nos conta essa história bíblica vemos uma serpente que se esgueira para fora de um balão de HQ. Essa serpente é Donald Trump e a chamada “direita alternativa”, ajudados por hackers russos. Mas também inspirados nos pensadores pós-modernos como Baudrillard e Derrida que teriam destruído a âncora filosófica da Verdade – a noção de Realidade, fazendo o Paraíso decair no niilismo e relativismo.  A crítica literária norte-americana Michiko Kakutani vai encontrar o pecado original das fake news nos hackers russos e pensadores do pós-modernismo no seu livro “A Morte de Verdade”. Kakutani revela um discurso que transforma não só a teoria das fake news em um novo rótulo do jornalismo corporativo no mercado das notícias. Também é uma forma ideológica de varrer para debaixo do tapete as mazelas da financeirização global, das "machine learnings" e algoritmos do Vale do Silício – a culpa é sempre dos russos e franceses...

Era uma vez a World Wide Web, imaginada em 1989 por Tim Berners-Lee como um sistema de informação universal, conectando pessoas e compartilhando informações. “Um caso raro em que aprendemos informações novas e positivas sobre o potencial humano”, escreveu o insider do Vale do Silício, o cientista da computação Jaron Lanier. “Um empreendimento coletivo com a doce fé na natureza humana”, completou Jaron.
Mas, como tudo, tem um lado sinistro: agentes mal-intencionados começaram a explorar a web com informações errôneas, desinformação, crueldade e preconceito. Quais foram os culpados que profanaram esse paraíso tecnológico onde não existia a presença da propaganda, punição ou exploração do medo e da morte? Ora, os pensadores pós-modernos como Derrida e Baudrillard e, como não poderia deixar de ser, também os malignos hackers russos interessados em destruir os valores da democracia, ajudando a colocar Donald Trump no poder.
Em resumo, dessa maneira a crítica literária por quatro décadas no New York Times e um prêmio Pulitzer, Michiko Kakutani, explica a ascensão da chamada “direita alternativa” e a proliferação dos fenômenos das fake news e pós-verdade no livro “A Morte da Verdade”, Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2018.
Aliás, a capa do livro de Kakutani parece reforçar essa narrativa do Paraíso perdido: uma serpente se esgueira para fora de um balão de diálogo de histórias em quadrinhos. 

Michiko Kakutani

Guerras culturais  

São 270 páginas em que a autora tenta transformar a guerra particular do establishment acadêmico norte-americano contra o discurso de extrema-direita de Trump em uma crise epistemológica da própria Ciência. Trump e a chamada “alt-right” teriam inventado todos os males que assolam a Internet e redes sociais – notícias falsas, a crise do discurso racional, a pós-verdade, relativismo e o obscurantismo científico. Com o luxuoso auxílio dos espertos hackers russos (invocados agora também pelo ministro Sérgio Moro ao ser pego com a boca na botija) e os pensadores pós-modernos.
    Acertadamente, Kakutani acusa como diversionista a bandeira das guerras culturais desfraldada pela alt-right– os debates acalorados sobre religião, raça, gêneros, currículos escolares, aquecimento global etc. como cortina de fumaça para as políticas anti-imigração e destruição de direitos e garantias sociais. Porém, seus argumentos caem no mesmo feitiço das artimanhas de Trump: o livro quer ataca-lo no mesmo campo das guerras culturais.  
Em primeiro lugar, acusando as “implicações culturais” do pensamento do pós-modernismo de nomes como Foucault, Derrida, Lyotard e Baudrillard – o colapso das narrativas oficiais, o niilismo, o desconstrutivismo, o relativismo e o desaparecimento das noções filosóficas de realidade e objetividade.
“Podemos afirmar com segurança que Trump jamais teve contato com as obras de Derrida, Baudrillard ou Lyotard e os pós-modernistas dificilmente poderiam ser culpados por todo o niilismo que paira livremente pelo planeta” (p.53), até admite a autora. 
Para mais tarde descrever como, lentamente, as ideias da academia migraram para o mainstream político depois de a crise da noção de “realidade” (a âncora filosófica da “verdade”) foi se infiltrando na cultura popular da literatura, cinema e música pop através de artistas como David Bowie, David Lynch, Quentin Tarantino, Thomas Pynchon, Philip K. Dick, entre outros.  

Bowie, Tarantino, Lynch: deixaram entrar na cultura pop a chaga do pós-modernismo...

Pensamento invertido

Ora, provavelmente por Kakutani ser uma crítica literária, ela inverte as relações de causalidade – como se o debate filosófico e cultural é que produzisse estragos no mundo político e econômico. Filósofos como Baudrillard e Derrida nada mais fizeram do que refletir ou teorizar sobre transformações que o capitalismo tardio pós-guerra estava gerando na sociedade com a aceleração tecnológica e as transformações nas relações de trabalho e exploração.
Derrida falava da crise das grandes meta-narrativas (Iluminismo, Razão, Ciência, Progresso) no livro “A Condição Pós-Moderna” como um reflexo do próprio desenvolvimento científico e tecnológico no Capitalismo – usado não para a emancipação dos dogmas, mitos e superstições, mas como instrumento de destruição, guerras, dominação e exploração. Como a detonação das bombas atômicas na Segunda Guerra Mundial, marco simbólico do início do Pós-Modernismo.
Assim como Baudrillard falava do “crime perfeito” (o “assassinato do real”) não como se o seu pensamento tivesse cometido esse crime epistemológico: Baudrillard refletia como a aceleração tecnológica em direção à virtualidade do real (dos parques temáticos como Disneylândia aos capacetes de realidade virtual do Vale do Silício) criava mundos solipsistas, niilistas, no qual o hiper-real era mais preferível do que “o deserto do real”.

Kakutani às voltas com RAVs

Russos são “RAVs”

Kakutani parece confundir o mensageiro com a mensagem. E Imputa a culpa nos... franceses. Afinal, a tecnologia (marco de pureza do progresso norte-americano) é supostamente neutra e só cria seus “lados sombrios” quando “agentes mal-intencionados” sequestram as bem-intencionadas ferramentas tecnológicas.
Por isso, no livro “A Morte da Verdade”, depois dos franceses vêm os russos. Mais uma vez, como crítica literária de longa data do mainstream jornalístico norte-americano, Kakutani repete o mantra dos RAVs (russos, árabes e vilões em geral), repetido desde os filmes hollywoodianos até o jornalismo corporativo daquele país.
Por que “hackers russos”? Eles fazem parte de “uma conspiração orquestrada pelo Kremlin, intensificada desde a reeleição de Putin em 2012, para usar meios não militares e assimétricos de alcançar seus objetivos de enfraquecer a União Europeia e a OTAN e minar o liberalismo democrático global e ocidental” (p. 159). 
Uau!!!! Ao recitar esse mantra RAVs quase que o discurso de Kakutani se iguala à extrema-direita tão criticada, a não ser por uma pequena sutileza moralista quando afirma: “Não há ideologia comunista na Rússia de Putin e Surkov, apenas ‘poder pelo amor ao poder e ao acúmulo de vasta riqueza” (p. 183).  
Outro Uau!!!! Então a serpente que envenenou a Verdade também surgiu de um mesquinho desejo de poder dos russos, algo assim como na animação Pink e o Cérebro na qual um rato de laboratório tem o desejo de dominar o mundo como um fim em si mesmo.
Isso revela que mais uma vez a crítica literária inverte as relações de causalidade: a má-fé epistemológica de filósofos e o desejo de dominar o mundo de um líder político assassinaram a Verdade através das fake news e pós-verdades. 


Alt-right e Globalização

Talvez restrita ao horizonte da crítica literária, Kakutani não consegue ver que o crescimento da alt-right foi uma decorrência das próprias contradições internas da Globalização – o movimento da financeirização criou tamanha desordem pelo crescimento da desigualdade, pulverização do Estado de Bem Estar Social, guerras, crises de refugiados e a ameaça de crashs financeiros sistêmicos (como o de 2008 e o derretimento da Zona do Euro), que o mainstream político teve  que se reinventar: criar um movimento político nacionalista e populista para drenar todo o ressentimento, revolta e mal-estar, antes que a esquerda ou movimentos antiglobalização fizessem isso.
Como bem demonstrou o documentário curta metragem Fake News Fairytale (2018, já analisado pelo blog, clique aqui), os russos não têm o privilégio de ser a pátria dos hackers. Na verdade, a campanha de Trump recrutou jovens desempregados e sem perspectivas de várias partes do planeta para ganharem dinheiro com publicidade digital em troca de produzir perfis falsos e fake news. Como na pequena cidade de Veles, no interior da Macedônia, cidade economicamente destruída pelos movimentos da financeirização global. Assim como Detroit, nos EUA.
Como já discutimos em postagem anterior, “fake news” é um rótulo criado pelo jornalismo corporativo para criar uma grife de distinção dentro do mercado das notícias: assim como temos os produtos “orgânicos”, também temos as notícias “checadas” e livres do agrotóxico da desinformação – clique aqui.
Desde a invenção da propaganda e do jornalismo, há notícias falsas, desinformação, manipulação e mentira.  
Se há algo de inovador no crescimento planetário da alt-right (o episódio Brexit no Reino Unido, Trump nos EUA, Bolsonaro no Brasil, Orban na Hungria, Duterte nas Filipinas etc.) não está nos “Rasputins de Putin” (trocadilho impagável de Michiko Kakutani), mas em como o paraíso da pureza das boas intenções tecnológicas do Vale do Silício, com seu algoritmos e machine learnings, desembocou nas estratégias de manipulação de Big Data por empresas como Facebook e Cambridge Analytica.
E, mais do que o “Rasputin Putin”, figuras como o ex-produtor de Hollywood Steve Bannon está por trás desse serviço de empurrar para debaixo do tapete os males provocados pela globalização financeira. 

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